27/02/2012

Exercício


(500 palavras de um personagem que insiste em fazer-se nascer)

“Sabe o dia que se esgueira, como uma enguia viva, para dentro das nossas almas? O dia que se infiltra, que se ateia fogo a si mesmo, que se boicota a felicidade desde a hora em que sol assoma até a que a lua já está alta no céu? O dia embolorado, rançoso, entristecido ao olhar-se de frente? Pois esse é o dia de hoje. Um dia enguia, sinuoso dentro do corpo da minha alma, arrastando-se na lama em que me atolo sem ajuda, escorregando lento e destilado por entre a cor da manhã. Ninguém aparece para salvar-me, lembro de ter pensado. Ninguém levanta um braço para socorrer-me, e eu sequer consigo gritar por socorro. Lembro de ter pensado horas e horas, diante do nada, só vendo essa enguia esguia engolindo-me mais a cada hora, engordando satisfeita com o alimento que lhe forneço assim, de graça, sem galanteios e sem mesuras. Estende-se ao comprido por cima do que sobra de mim, ossos fracos e amarelados, secos quase como farinha que queimasse ao sol, e que sequer precisasse ser moída. Sinto-lhes a firmeza perdida, a solidez desperdiçada, oferecida a essa enguia que reluz sob o sol, mil tons de cinza brilhando como escamas, embora sua pele seja lisa e densa.

Alguém que me acenasse do outro lado faria que meus ossos se levantassem, mas há uma solidão nesta terra que habito, uma solidão feita de caminhos vazios de formigas, só seus traçados e algumas folhas perdidas pelo caminho. Os buracos dos formigueiros estão ocos, com seus amontoados de terra digerida formando circunferências de montanhas em torno do orifício. Releio os sinais da terra através desses caminhos, solitários e sozinhos como eu próprio.

Pergunto-me se alguém lembrará da minha presença, ou se todo este silêncio que me rodeia será uma estratégia para que abandone a mim mesmo por fim. Se todo este silêncio onde leio a palavra abandono existirá para evidenciar que devo ir, deixar-me cair em algum lugar e parar de lutar.

Meus braços cansados estão pendurados ao lado dos meus ossos, como se fossem suas sombras. A enguia já deixou seu posto de triunfo, deslizando como água para dentro da terra. Não tenho mais o conforto úmido e gelado de seu corpo sobre a minha parte mais dura, mas recuperei a minha sombra, e assim posso recuperar a minha forma de andarilho da vida, mesmo sendo feito só de sombra e ossos. Mesmo que os ossos fiquem parados, à espera da sombra lhes dê notícia da vida do lado de fora.

Mas há um fosso que se abre a toda a volta, um fosso que nem a sombra consegue atravessar, porque assim que o tenta há uma força que a empurra para baixo, em direção às ondas vorazes onde vive o reino das enguias. A sombra será engolida, e logo a seguir os ossos. Ainda que me agarre às bordas duras desse fosso à minha volta, sou todo engolido, e transformo-me naquilo que eu já era antes de ter nascido.”

A cidade nova


Nesta nova vida urbana, nem pensar em usar carro – bicicleta o dia inteiro, de manhã até de tardezinha. Um dos filhos vem junto, animado, curioso com a cidade que se descobre de pouco em pouco. Prudente, passa os dias indo e voltando, testando caminhos, reconhecendo esquinas, dominando esse ser estranho chamado cidade, apoderando-se dos seus detalhes. Como nenhum outro, reflete como gente grande; gosto das conclusões a que chega, e que me conta devagar, mostrando o quanto o seu coração pensa. Perguntam-lhe se está gostando da mudança e seus olhos traem a saudade do que ficou pra trás; mas logo me diz que é assim mesmo, as coisas novas às vezes demoram pra ser gostadas. Ou algo parecido. O seu olhar atento é um consolo nos meus dias não tão ensolarados.

Saímos para comprar novas cordas para o violão. E esticamos um pouco a pedalada, vamos avançando por ruas que são só números – e ele me diz que também assim acontece em sua nova escola: há professores que só lhe conhecem o número. Porém, confiante e otimista como seu professor Silvio lhe ensinou, logo se lembra da professora de inglês – “ah! Ela me chama pelo meu nome!”. Mudanças que, torço até o fundo da alma, possam fazê-lo crescer em solidariedade, em percepção, em compaixão pelo outro, que se revela tão distinto mas tão amável por isso mesmo. E digo amável no sentido de poder e querer ser amado.

Chegamos à rua 36; descemos e voltamos rodeando a igreja São Geraldo, cheia de lembranças difíceis. A mim, tudo me é familiar, embora de uma forma um tanto vaga; parece que deixei algumas coisas do lado de fora da alma, estacionadas ao relento sem saber como as amadurecer. Ao mesmo tempo, tudo parece diferente. Ocupo-me em resignificar cada pedaço de cidade, sem saber às vezes o que fazer com as recordações. Veem de repente, sem que eu as ouça abrir a porta, e nocauteiam-me a meio dos quarteirões. São muitas, muito mais do que eu tinha consciência. Encontro pessoas que sei conhecer, mas não sei quem são. Como se pertencessem a outra encarnação e me visitassem nessa, mas só com um aceno de cabeça: “sim, estamos aqui – para onde você pensou que tínhamos ido?”. (Até a rua em que moro me faz lembrar, pela placa da esquina onde está escrito o seu nome, que há lugares de onde se vem, o tempo inteiro - mesmo que muitas vezes não lhes usemos os nomes e os reconheçamos de outra forma. Talvez por isso todos a conheçam como rua 10 e raros saibam do seu nome.) Pergunto-me se devo reconstruir outros novos laços, ou se devo deixá-las onde estão. Até porque, ao mesmo tempo, outras se aproximam, chamam a minha atenção, chocam-se comigo nas esquinas e dizem-me um "bom dia" interessado.

Outra filha chama – nova saída, para ver outras coisas, organizar uma vida nova dentro da vida antiga, cuidando que ambas tenham espaço para habitarem estes seres queridos que avançam pelos seus próprios caminhos, tão diferentes entre si, exigindo-me uma ginástica que me deixa cansada mas inspirada. E lá vamos, a pé e de bicicleta, para que a diferença com o antes se note mais, para que não se fuja dela, para que o destino chegue de outra forma, talvez mais ativa, talvez mais dependendo da própria perna. Para que sejamos mais fortes, provavelmente.

26/02/2012

Reciprocidade


Uma amiga querida, daquelas que levamos anos para encontrar e depois não esquecemos jamais, pede-me, à distância de uma dor que só adivinho, que lhe escreva algo sobre reciprocidade. O caminho etimológico dessa palavra é tão complexo que merece um gráfico, coisa que não sei fazer, motivo que me leva a tentar uma explicação linear:

  1. "Recíproco alcança-nos diretamente de reciprocus: uma palavra latina que significava ir para trás e para diante, ida e volta. Usa o sufixo re-: de novo, outra vez. E deriva de procus – pretendente (isto é: alguém que pretende, ou quer, alguma coisa; um angariador; usava-se também para referir-se a gigolô). Procus, por sua vez, derivou do prefixo grego pro, que responde por “antes”. Que, a seu tempo, derivou de prex – oração, pedido."

Maravilhas da etimologia! Ora vejamos: essa palavra que atormenta minha amiga remete-a sem ela saber à falta de oração (ato de pedir ou implorar); à falta do que vem antes; à falta de alguém que pretenda, que queira, alguma coisa (que ela pode dar?); à falta de poder ir e vir e aposentar as certezas, as verdades, as singelas capacidades que construímos para nos adaptarmos tolamente àquilo que os outros esperam de nós. Imaginando que assim seremos felizes e que deixaremos de avançar e recuar na vida, e que esta então será um lago de tranquilidade, sem nuvens, sem tempestades, uma linha direta que nos conduza diretamente ao paraíso.

E de repente acordamos uma manhã e pensamos: “Mas que raio de solidão! Onde está quem devia estar aqui ao lado? E que disse que estaria?”. E lá vamos nós em busca da reciprocidade, do manter-se em movimento, do ir adiante e atrasar-se logo depois (o que equivale a ter um próprio ritmo). Difícil é quando falta algo de antes, falta esse alguém que pretenda também, porque a reciprocidade a dois demanda passadas equilibradas e sincrônicas, nem sempre fáceis, nem sempre reais, nem sempre juntas.

O caminho da reciprocidade atravessa de vez em quando o da retribuição. Como se um se nutrisse do outro. No entanto, há uma diferença básica: retribuir ainda nos liga à ideia (e ao fato) de tribo, que nos acompanha há milênios, e que faz com que entendamos que há laços que nos ligam, visíveis, e que têm a ver com a nossa relação de sangue, de etnia, de grupo – de tribo. A re-tribu-ição indica que algo deve ser dividido, compartilhado entre vários, aqueles que, numa perspectiva ou em outra, são nossos iguais. A reciprocidade é apenas movimento, um pêndulo no espaço que faz com que, de madrugada até agora, eu queira ser recíproca, eu queira avançar e recuar junto ao pensamento da minha amiga, preso na redoma de si mesmo lá longe, onde meus olhos não alcançam mas a minha alma sente. E, ao mesmo tempo, que não queira que nada seja retribuído, porque não é preciso que sejamos do mesmo lado, da mesma rua, da mesma família, da mesma ideologia, da mesma presença. Até porque a graça desse pêndulo que, recíproco, se estica e oscila entre nós é, justamente, poder refazer-se dia a dia, indo e voltando como um gesto imenso, sereno e solene, nessa dimensão que é a das relações entre dois seres humanos, e que não se norteia pela sua origem, mas pela sua capacidade de entrega.

Essa amiga, ao longo dos nossos anos de amizade, cheios de mesas postas para incontáveis chás e cafés, mostrou-me o ser discreta sem deixar de ser contundente. Longe de ter aprendido, sobretudo a parte da discrição, observo-a aqui de longe, tal qual se materializa diante de mim como exercício de memória, e admiro-lhe a seriedade e a forma categórica como se move para diante e para trás, ela recíproca em tudo, à espera de que o mundo também o seja. Sou-lhe recíproca daqui de longe, mas nada posso retribuir-lhe: como ela, oscilo entre polos que muitas vezes não entendo, feliz e aflita de que eles existam. E prefiro mil vezes ser-lhe fiel na reciprocidade que prometo, indo e vindo num abandonar de certezas que me abram as portas do que está por vir, sabendo que também ela estará recíproca ao meu lado quando alguma delas se fechar e me deixar inconsolável.

24/02/2012

Coisas de obra


Há algumas pessoas na vida com quem é difícil perder a paciência. Na minha, Valdete é uma delas. Conheço o Valdete há uns 20 anos. Nem eu nem ele nos lembramos de como começou, mas já tem isso: duas décadas.

Valdete é pedreiro, construtor de casas, materializador de sonhos. Depois de ter construído a nossa casa, tornou-se nosso afilhado de casamento. Vivemos dividindo a mesma obra durante meses; compartilhamos feijoadas, moquecas, bolos e xícaras e xícaras de café. E viramos amigos. Ao contrário de outras histórias, fazer reforma em casa era uma alegria: Valdete vinha e era uma conversa só, um bom humor só. Seus auxiliares, sempre gente que precisava de ajuda. O Luizinho enganou a todos meses a fio, com a sua garrafinha térmica com um café que não dividia com ninguém e que um dia descobrimos que vinha era cheia de pinga. E Valdete, aquela paciência, dizia: “Luizinho, cê não vê que essa maldita tá acabando com você, meu filho?”. E Luizinho sorria com seu sorriso desdentado e dizia: “Saber eu sei, Valdé, mas fazer o que?”. Já se foi, o Luizinho; no meio de um porre caiu na represa e só apareceu três dias depois, já comido pelos peixes. Os olhos do Valdete enchem-se de água quando me conta a história: “era como um filho, sabe?”. Valdete coleciona filhos dessa forma.

Nasceu na Paraíba, o Valdete. Tem uma natureza mansa. Tranquila. Justa. Trabalho mal feito ele resolve de um jeito só: faz de novo. Sem perder o bom humor. A paciência às vezes escapa, mas só se percebe nos olhos. Nessas horas, acho que o Valdete sabe que é melhor manter a boca fechada. Eu já aprendi um tanto de coisas com ele, e ele nem desconfia.

Quando nossa filha Gaia nasceu, Valdete estava trabalhando em casa, fazendo um muro lá na frente. Vim avisar que logo ia ter bebê por ali, e ele aflito, sem saber se subia se descia do andaime, se me levava pra maternidade, se me carregava no colo... Quando ela nasceu, e ele entrou em casa pra vê-la, Luizinho e os demais atrás dele, era a reverência em pessoa, o visitante de um presépio acabado de descer do céu. Se usasse chapéu, certamente o traria entre as mãos, amarrotado pela emoção e pelo nervoso. Quando Gaia partiu, Valdete passou longas horas no velório, desconcertado, os olhos vermelhos e inchados, e me deu um abraço que disse mais do que as palavras diriam.

Valdete morava numa chácara, naquela época. Perto do Natal, decidiu engordar uns porquinhos. Veio um amigo e pediu-lhe um pernil: “pago depois, pode confiar”. Nunca mais. E Valdete, avesso à cobrança que sugeríamos, filosofava: “Sabe o que acontece, Ana? Desse aí eu já sei o preço, que é só de um pernil. Se não me paga, tem a vantagem de nunca mais me procurar mesmo, e amigos desses eu quero todos é bem longe”. 

Às vezes o santo do Valdete não bate com o de quem o contratou – e sofre, porque deu sua palavra e não pode deixar a obra, e o mal estar envenena-lha os dias. Com tudo isso e por causa de outra obra, abandonou-me várias semanas. A obra parada, o entulho fora da caçamba, o monte de areia se esparramando por baixo das patas dos cachorros, entrando em casa por todas as frestas, pilhas de tijolos na expectativa, o reboco que ainda existe caindo paredes abaixo... Faço o que posso, que é pouco, e me deixa deveras descontente. E Valdete sumido. Ligo pra ele e ele responde: “Ô Ana, saudade docê! E aí? Te abandonei não, viu? É que tá complicado pro meu lado.” E promete aparecer no finzinho da semana.

Apareceu ainda agora. Promete que vem semana que vem. E me oferece aquele sorriso de sempre, de gente de verdade, que vive de verdade e gosta dos outros de verdade. Minha irritação desaparece como num passe de mágica: impossível brigar com pessoas assim, que nem o Valdete, sequer discutir. Sorte é tê-las por perto, da maneira como puder ser. Sorrio de volta e respondo: “Ô Valdete, some não. Segunda feira tem café prontinho a hora que você chegar.”.

23/02/2012

Personagens

Em toda narrativa, sobretudo nas mais longas, há um momento em que se tem a certeza da falta. Falta alguma coisa, e não se sabe o que. Há várias saídas: pode ser uma questão de foco (tenta-se outro), pode ser uma questão de excesso de descrição (diminui-se), pode ser uma questão de diálogos mal construídos (típico, e fatal). E por aí vai.

Mas às vezes é o tempo. A sua passagem. E a consequente espera. Muito parecido àquilo que amadurece dentro de um fruto, ou dentro de um útero, ou dentro de um coração que estava assim, à espera.

Aprendi que essa espera é traduzida pelo ato de engavetar um texto. Literalmente. Tiro uma cópia papel, coloco-a dentro de um envelope, e guardo-o dentro de uma gaveta. Onde, aliás, há já outros envelopes guardados. Por um lado, é um desespero, sobretudo quando se está em pleno processo, quase que dependente dessa história que se materializou. Por outro, é um alívio, porque no fundo não é difícil se desfazer da própria imaginação. E, desta vez, ao desengavetar o envelope, descubro a falta: um personagem. Estava ali, presente e claro. Tinha nome (embora não fosse o correto), tinha os gestos, tinha a fisionomia, até uma história anterior à ação do romance, aspirações, gostos, uma forma peculiar de olhar. Mas ao mesmo tempo não estava, porque faltava uma espécie de concretude que só se revela de repente, quando é hora. E percebo que, ao que já estava ali, tão nítido, juntam-se detalhes que fazem com que a ação dos outros personagens mude, porque a entrada do que é novo inevitavelmente provoca mudanças. E ainda bem.

Pois a esse romance (porque é de um romance que se trata) já se dedicaram alguns leitores - e agora, quando lhes conto o que acontece, quando lhes prometo que agora sai, que agora termino - digo-lhes também que foi assim, de repente, com a surpresa de um personagem que, além de assumir seu verdadeiro nome, mudou também de configuração, de importância, de relevo, e deixa uma marca clara e firme onde era só areia molhada.

E, como do interior de um útero em sombras, nascem páginas e páginas, num fluxo contínuo que preciso segmentar e organizar para que esse personagem, que agora é novo, vivo, forte, irresistível, possa se entremear aos demais, fazer-lhes parte, pertencer-lhes. Demora, cansa os olhos, as costas, às vezes até falta o ar - mas vale muito, muito a pena, porque maleável ele se acomoda, gentil ele se aproxima, generoso ele se oferece.


Foto: Gaya Rachel Neves

20/02/2012

Esquinas


Acordei plural, hoje. Sete janelas de texto abertas à minha frente: a primeira, uma série de poemas vazantes a meio da noite, um turbilhão de palavras tentando explicar-me na madrugada; depois, um artigo com destino certo, sério e relativamente denso, que confesso hoje me cansa (mas tem prazo...); uma tradução, instigante graças a deus; uma revisão curta, mas dura; um romance a caminho do fim, trabalho redobrado; outro livro, surpresa com a qual ainda não sei andar ao lado; e uma carta, que não sei como terminar. Pulo de uma para outra, sem saber por onde continuar, tudo em estágio de pensamento que sei é preciso respeitar. Por isso, abro mais uma, esta, como se fosse um refúgio, um sopro de ar sem compromisso, um encontro inesperado.

Andei de manhã cedo pela cidade, nesta nova opção urbana de vida que não me retirou a insônia do caminho. Tem seus atrativos, a cidade. Descubro que se compram esquinas: paro e rio, como é que pode uma coisa dessas? Ainda assim, penso, talvez essa seja a solução: uma esquina na encruzilhada, para que possam haver dois horizontes, duas calçadas, duas vias de chegada e partida. Uma forma plural de vida, que consiga saber atravessar a rua sem atropelos, venham carros de um lado e do outro; passa-se de uma calçada à outra sem tumulto, suavemente, como um estado de amor a tudo. Demanda o triplo de atenção, provavelmente, qualquer deslize pode ser fatal. Há mais barulho, nas esquinas, e por isso se preferem às vezes casas a meio de quarteirão. Onde a vida corre mais calma, há vizinhos a ambos os lados. E os carros só passam na frente, sem surpresas.

Ruas convergem inevitavelmente para esquinas. E as esquinas tendem a deixá-las passar, livres, em seu caminho reto; às vezes as ruas sequer olham para ver quem vem do outro lado. Mas há as que param nas esquinas e olham de um lado e do outro, sobretudo antes de atravessar e seguir caminho. Exercitam mais a atenção, estas. O estado de presença. Às vezes demoram-se, vontade de serem lentas. São ruas presentes, de olhos abertos e sorrisos silenciosos. E algumas ficam, e deve ser bom tê-las na própria esquina.

Pergunto-me o que levará um sujeito a vender a sua esquina. Cansou-se do mundo? Desiludiu-se? Caçaram-lhe a vontade de atravessar para o outro lado? Ou talvez tenha atravessado. E tenha se mudado de esquina. Não é preciso viver a vida toda na mesma calçada de sempre. Os caminhos estão abertos ao querer dos passos: basta querer andar e atravessar a calçada. Ou comprar uma esquina e viver nela com a tranquilidade possível, dois endereços diferentes à escolha, duas direções que não se anulam nem se impedem. Nada de singular nelas: tudo plural, como eu hoje, aqui diante da tela.

17/02/2012

Vida virtual

A noite ofereceu-me bons papos, daqueles que nos mantêm acordados sabendo que o lógico seria um deixa-disso-vai-dormir. Quando a distância impede que os olhos se vejam, as letras que surgem aos poucos nas janelas de conversa parecem fios tecidos com a presença cheia de afeto do outro. 


Como é que se interrompe uma coisa assim? A saudade se atenua. As dores se dividem. As alegrias se espelham. E o bem que um faz tranquiliza o coração do outro.

Prestes a uma cirurgia em pleno carnaval, um amigo antigo, daqueles sem data, nem de produção nem de validade, embarca numa conversa que parece falha de sentido – mas há um senso por trás, e eu sinto-o enquanto primo as teclas que desenham o que escrevo na tela. De repente a vida virtual tão real, as palavras querendo ser, não há vazios, mas excessos de sentido. Um exagero concreto de tudos. 

Uma outra presença flutua pelos mesmos céus por onde eu mesma flutuo, e encontramo-nos lá, assim como nos encontramos neste canto de tela. E de repente a presença se concretiza, frágil e convicta ao mesmo tempo. Leem-se as entrelinhas, o que deixa de ser respondido, não se insiste, e aprende-se o tempo, o senhor de tudo, o tempo, o tempo.

Tenho recuperado, graças aos recursos virtuais, amizades que o tempo fez questão de iludir. Da primeira infância, pessoas que demoro a reencontrar na memória, as fotos ajudam mas não parecem da minha vida. Já outras são reencontros tão alegres, tão pouco comedidos, que parecem ser de fato de pele e osso, sangue e músculos que se reencontrassem num abraço caloroso. E ainda assim, mesmo sem o corpo a corpo que valeria um beliscão, é tão bom saber que estão lá, que não nos perdemos achando que não nos encontraríamos.

Amigos que só existem aqui inspiram-me um tanto de pensamentos. Alguns conhecem tão bem a minha escrita que a saudação já os faz perceber o meu estado de espírito. Vejo o que me dizem, com a liberdade que confere o nunca nos encontrarmos frente a frente, uma intimidade que se pode mais forte, e tanto se me dá que seja ilusão ou invenção o que contam, o que dizem, o que respondem. É alimento da mesma forma, e eu seleciono e aproveito tudo o que aos meus olhos posso aproveitar. E é muita coisa - são muitas, muitas palavras, que se juntam às que já vivem em mim e me fazem desaguar em forma de escritura no mar de papel que me rodeia. Só me resta agradecer.

16/02/2012

Calmante de ânimo


Nada como um dia após o outro, sobretudo quando os que se vivem parecem ter 48 horas - parece até que o dia é o mesmo, mas na verdade verdade não: já é outro, dentro do mesmo. O texto anterior deixou muitos incomodados. Uns me aconselham ao longo deste dia que são dois a arrumar gavetas, receita infalível da avó do missivista, que via na atitude uma predisposição a arrumar a própria vida. Outros se espantam e soltam um “Como assim, você muda e tá desse jeito?! Volte, corra!”. E tem os otimistas: “Relaxa, Ana, é claro que você vai se adaptar!”.

E tudo isso me cria uma orelha na frente da pulga. Melhor escutá-la (à pulga).

Adaptar tem a sua origem lá atrás – lá onde a raiz vivia sozinha, solta no espaço, pronta e adequada ao uso. Uma palavra apta. A ela juntou-se esse sufixozinho tão pequeno e simples,um ad que parece uma brisa de verão, leve e tão fina que mal se sente já se foi. E que se apresenta em outras palavras, que vêm até ao caso.

Como admirar. Lá está o sufixo a introduzir uma das palavras mais bonitas e evocativas do latim clássico: mirari. Surpreender-se, encantar-se, aturdir-se.  Se recuamos um pouco mais, chegamos a mirus, aquilo que é maravilhoso, estranho e digno de nota; nem sempre agrupamos essas três palavras numa mesma intenção, mas pensando bem... quantas coisas que nos rodeiam são maravilhosas, notáveis... e tão, tão estranhas. Tanto que quase as deixamos de lado, ou olhamos para outro lado fazendo de conta que elas não estão ali, tentadoramente maravilhosas e notáveis. (Os falantes de castelhano têm sorte: quando olham alguma coisa, siempre la miran!)

E, assim que a tudo isso se junta o ad, junta-se um “além disso”, um “para”. Admirar é por isso um "para se surpreender", "para se encantar", "para se aturdir" com tudo o que é maravilhoso, estranho e digno de nota. Esse olhar com encantamento é justamente o que se precisa quando o assunto volta – ou seja, quando é preciso ficar apto e pronto outra vez. Explica-se essa necessidade insana de se adaptar, o tempo inteiro, a tanta coisa. Tanto que até inventamos um "readaptar", para que fique claro que é preciso lembrar de se aturdir de novo com aquilo que já nos aturdiu antes. Ufa!

Para tornar-se apto mais uma vez (seja lá ao que for, à vida, ao cotidiano, ao amor, a si próprio) é preciso ajustar, modificar, encaixar e fazer caber. Movimentar a alma e o corpo na direção nova que se manifesta; sair da zona de conforto; penetrar no desconhecido; aceitar as mãos estendidas sem saber o que é mesmo que elas contêm; aprender novos números de telefone; conhecer as outras pessoas que fazem parte do próximo futuro. Tanta coisa. Mas sobretudo admirar e admirar e admirar. Pra que fique mais fácil o adaptar.

E é assim que as palavras nos salvam. J

Nuvens


Nem adianta o céu azul lá fora, menos ainda o calor que se anuncia para perto do meio dia: há muito pra fazer e quase nada daquele ímpeto necessário ao cumprimento das coisas. Passeio pela casa como se não me dissesse respeito tudo o que precisa acontecer. Faço listas que posso imaginar cumprir, mas só até o momento de terminá-las. Rasgo-as. E começo outras.

Ao menos comprarei o que falta. Embora disso dependa sair, andar e escolher. Não quero nenhum dos três: quero o estado de parada atenção interna, e mais nada. Há um vulcão dentro de mim em processo de doma, e eu quero perceber o exato momento em que o que é não basta e o vulcão consegue galgar-me a superfície. Para que aprenda qual é o momento, e o momento não me surpreenda ao abrir a porta.

Alguns dos filhos aparecem a intervalos regulares. Não posso ajudá-los, cada um de nós numa solidão de compartilhamento difícil.

Há experiências de vida assim; descem lentas como orvalho a meio da madrugada, escorrem como luzidios fios de cristal quando a alvorada se anuncia, e se transformam em mil cores boiando num lago em que mergulho a minha sede, mas sem conseguir saciá-la. Porque o lago é um espelho, e deste lado só vejo o reflexo. Sem mergulho. 

Só nuvens num dia cor de azul celeste.