28/01/2012

Despedidas VI


porque  a vida
é um parto


E de repente, no meio deste vendaval que se alevantou, descubro que a Lua está em trânsito pela sexta casa do meu mapa astral, formando um ângulo harmonioso com o meu Sol. Ou seja: uma boa fase para organizar as coisas da minha vida, avaliar as questões pendentes e tentar solucioná-las. Daqueles dias em que olhamos para o espelho e dizemos: putz, ainda bem!

Embora haja quem pense o contrário, eu vivo tentando encontrar certezas. As dúvidas atormentam-me (se é que isso é uma forma de tormento), são elas que me procuram e não eu a elas. Assim que me aparece um trânsito astral que me sugere mais tranquilidade do que a que tenho normalmente, dou pulos de alegria. Quando abro as cartas e me aparecem a Sacerdotisa, o Julgamento, idem: serenidade, visão clara, separação de joio e trigo sem demora. Mas nem sempre é assim – a Torre aparece aqui e ali, soçobrando a minha vida, arrancando pedaços do que achei fosse um alicerce seguro. O naipe de espadas coloca-me em movimento em direção ao próximo estágio, o de copas alimenta-me o mundo do sentir, que é o que movimenta todo o resto. As cartas converteram-se, com o tempo, em refúgio e caminho de busca, um espelho fiel que retrata o que eu própria sei sem ver. Quando tenho a sorte de me tornarem útil aos outros, apaziguam-me.

As cartas do tarot estão presentes na minha vida há muitos anos. A primeira carta que tirei na vida foi a Imperatriz, a carta da maternidade por excelência. Não devia ter mais de 6 ou 7 anos de idade, mas lembro de ter ficado emocionada com a imagem, e por isso mesmo não a esqueci. As cartas andaram à minha volta aqui e ali, e finalmente ganhei o primeiro baralho e me diverti de brincar. As cartas ligadas à gestação, à gravidez, aos nascimentos continuaram pulando de dentro do baralho sem que eu as chamasse. E eu entendi que haveria filhos no meu futuro. Acertei, parece.

Porém, ligando os pontos, como o fez Steve Jobs naquele discurso que circulou à exaustão pela internet, percebo que não foram apenas os meus filhos, as minhas gestações, os meus nascimentos que as cartas mostraram. Essas cartas continuam presentes e ativas, mas multiplicadas nas crianças que tenho a honra e o privilégio de assistir entrando na nossa vida terrestre.

Esta semana, marquei uma consulta com a doutora/amiga Irene. Em parte porque era preciso mesmo, em parte porque está no rol das pessoas de quem quero despedir-me. Gosto da serenidade de Irene, e da maneira como chama todas as mulheres de “filhota”; gosto do carinho compreensivo que emana por todos e como é ao mesmo tempo irreverente e pragmática e decidida, às vezes impaciente, até. Irene formou-se há 43 anos. Aos poucos, pensa deixar o consultório, e eu ouço a Márcia, sua secretária de anos, recusar novos clientes, porque “a doutora está diminuindo o ritmo”. Olho-a enquanto ela preenche a minha ficha, e me pergunto se conseguirá diminuir a toada, e ir fazer outras coisas que talvez lhe deem menos prazer do que atender as necessidades das mulheres que batem à sua porta. E penso nas mulheres que não a conhecerão e que não terão à beira a sua força e a sua compreensão do que acontece, de fato, de fato, de fato, na hora de parir. Coisas que vão muito além das técnicas, quaisquer que sejam.

Irene apareceu na minha vida ia já a gravidez do Cândido adiantada. Achei estranho seu consultório, aqueles roxos por todo canto, das poltronas ao carpete, passando pelas paredes; pensei em levantar-me e ir embora, mas alguma coisa me fez esperar. O livro que levava na mão, introdução básica que inventei para qualquer médico com quem pensasse ter um filho, foi parar dentro da bolsa. Mas Irene viu uma pontinha assomando e perguntou o que era. E eu dei-lho, e ela sorriu ao pensar em fazer um parto em casa, novidade numa vida de tantos anos de obstetrícia. E sorriu mais uma vez, desta vez para o Ricardo, e disse: “Ricardo, havia uma música... uma música que era assim:”, e de repente começa a cantar a mesma música que a mãe de Ricardo lhe cantava quando era pequeno. Assim se iniciou uma parceria de carinho e respeito; uma parceria que não precisa ver-se para acontecer. Não é apenas uma parceria firmada nos partos em casa do Cândido, da Ilundi, do Tiago, da Lina, do Silas, queridas crianças nascidas todas de dentro de mim, de uma forma ou de outra, eternas estrelas do caminho, mas uma parceria que se estenderá quer nos vejamos, quer não, quer nos encontremos, quer não.

Pessoas assim, como a Irene, invadem-me nestes últimos dias de Botucatu. Deixo-as que me percorram. A minha memória resgata-as dos lugares onde as deixei esperando, uma memória comovida pelo assombro de que sejam tantas, e tão fortes, e tão poderosas, e tão marcantes no meu nascer cotidiano.

26/01/2012

Despedidas V

porque
a palavra é

foto: Samuel Athias


“A palavra me excita”. Quem diz não sou eu, mas Manoel de Barros, poeta em seus 90 anos, o que torna a afirmação altamente respeitável. No saboroso documentário “só 10% é mentira”, que deverei ao Daniel  dos Santos por toda a eternidade, o poeta fala e esparrama poesia por todos os poros. Há trechos de grande poder sonoro, de imensa força evocativa, mas para chegar até eles precisei assistir várias vezes, até conseguir passar além dessa frase tão simples, tão forte, tão verdade: a palavra me excita. Tomo-a emprestada, porque também a mim a palavra excita. Como ele, sou procurada pelas palavras, excitada por elas até o fundo da alma. A diferença reside no que faço com elas, no que elas desabrocham: o que nele é maestria, em mim mera tentativa.

Palavras como “precariedade” (que deriva de prex, a mesma raiz de prece, o que nos leva diretamente à necessidade de prece para deixarmos de ser precários), ou “acaso” (do latim casus, por sua vez derivação de cadere, que significa cair; quase que literalmente “aquilo que cai na nossa frente”), levam-me às alturas. Levam-me aos dicionários, às perguntas, aos outros que sabem tanto, e me surpreendem com a sua capacidade de procriação absoluta. São revelações em forma de letra, que é a única forma que as coisas têm de me revelarem o mundo, acho. Reviro-as por todos os lados e, como acontece ao poeta, percebo que se procuram pelo cheiro, umas às outras, como se pressentissem quem está à porta antes de abri-la.

Há palavras que chegam em grupos. Estão dentro dos textos, e pulam diante de mim como se ganhassem vida própria, tivessem outro colorido, brilho particular. No poema (ou oração?) que os alunos waldorf mais velhos declamam todos os dias de manhã, há duas palavras com um poder de catapultar excitação. “Na amplidão do espaço”.

Pare de ler. Feche os olhos e repita em voz alta: “na amplidão do espaço”.

Eu não sei se as vogais, se as consoantes, se o encontro do todo, mas “amplidão” e “espaço” chamam-se irresistíveis uma à outra e fundem-se num aspecto único do tamanho do céu sem fim. Se precisasse eleger um momento do qual sinto saudade, daquela saudade de doer dentro do peito, de tão funda e potente, aquela saudade em que os dias passam e o coração não cessa de evocar - seria aquele momento em que essas duas palavras, “amplidão” e “espaço”, abandonam o interior dos jovens para se fazerem companhia no espaço aéreo de uma sala de aula. Nessas horas, se não estivesse atenta, perder-me-ia no mar de verdes espalhados do alto da janela, e confundiria o verso seguinte, e me atrapalharia tanto que qualquer um perceberia. E eles ririam, os jovens, que rir é coisa que quem é jovem sabe fazer sem ter vergonha, nem própria, nem alheia. Um alívio.

Pode ser que a ouvidos desatentos algumas palavras pareçam quase nada. Porque são do dia a dia, talvez, palavras simples. Como “praça”. Ou “dentro”. Parecem tão pouco, e no entanto induzem-me o estado de excitação. Quando as encontro, e me apodero delas (ou elas de mim, que vem sendo o mais comum), perseguem-me dia e noite; povoam meus sonhos e só sossegam quando lhes dou atenção e procuro as suas raízes, os seus prolongamentos, seus espaços únicos onde podem possuir-me através do papel onde as registro, agrestes e ácidas e doces e ternas.

As palavras que me excitam podem chegar escritas ou faladas, engasgadas, sussurradas, esboçadas. No exercício de seu poder, escavam-me profundezas repentinas e abruptas. Atingem-me no que me veste mais indefesa e frágil, uma surpresa a meio da multidão desatenta. Demandam, como eu mesma, antes cuidado que contenção. O meu ouvido insiste em reverberar frases teimosas, uma espécie de passado em conluio com o futuro, uma  perseguição mascada nas entrelinhas. É ele quem ouve dentro de mim os espaços de alma em aberto, e porque me avisa corro a protegê-los com um véu de palavras, daquelas com propriedades anti-sépticas e cicatrizantes.

“Não me subestime: às vezes me faço de cego para ver mais longe”. Quem diz não sou eu, nem Manoel de Barros, mas Cazuza. E hoje eu também não me faço de cega. Durmo com os olhos abertos, guardiã das  presenças estacionadas a meu lado.

Despedidas IV

porque o equilíbrio
é precário


Nada como uma mudança para perceber a quantidade de coisas que se juntam, por dentro e por fora da alma, e não é possível carregar. Por não conseguir que seja de outra forma, muito ficará nos sótãos, aguardando o tempo e a coragem de mexer em guardados mais antigos, ou escondidos. Já há bastante com o que as prateleiras seguram, os armários guardam, as gavetas escondem.

Começo pela cozinha. E logo me pergunto por que por aqui, pelas panelas. A cada uma que espano, a lembrança do que conteve. Histórias que não tenho tempo pra parar e pensar, sequer escrever, porque o tempo ruge, e a tentação de ficar-se no passado por mais tempo pode atrasar-me o futuro.

Vêm ver o que me acontece – achei que estava rindo por dentro, mas não: é por fora também. Nesta casa vazia de crianças que viajam, filho grande que já se foi, até meu pensamento se torna audível. Divirto-me dando nome a cada panela, ligado à sua memória mais marcante. E assim todas recebem nomes de amigos que aqui ficam – “aqui”, note-se, sendo o espaço do meu coração, que amigos não precisam de casas, nem de cidades, nem de distâncias que se materializam só nos mapas rodoviários.

Panelas são seres intrigantes, como os amigos. Umas, entregam-se sem medidas; cozinham qualquer coisa, sorriem para qualquer ingrediente, gostam de qualquer colher, não quebram e raramente trincam. E, mesmo quando o fazem, descobrem-se úteis de outras maneiras, ou apenas enfeitam a vida da gente, guardando a história numa prateleira para onde se olha de quando em quando em busca de conforto. Outras, têm seus caprichos: não falam com este ou aquele tempero, discutem com a colher, deixam cair a tampa. Há as que sempre queimam as coisas no fundo, deixando aquela crosta esturricada que dá trabalho depois a quem a lava. As que derramam com incrível facilidade. As que sujam tudo em volta. As que resistem a sair do armário, ficam escondidas lá no fundo, quietas mas (eu sei) atentas. Não as quero trazer pra fora antes do tempo. Uma coisa aprendi (espero): a respeitar o Tempo.

Decidi, anos atrás, pendurar algumas do teto, para desocupar os espaços e livrá-las de estar por baixo da pia, escondidas atrás da cortina de chita. Naquela altura, logo percebi que esse lugar se destina apenas a algumas, especialmente às que têm cabos longos porque gostam que as peguem de longe, sem muita proximidade com as mãos. Tudo bem. Abaixo delas, sob a bancada, uma pilha de panelas grandes e bojudas, umas de pedra, outras de barro. Acomodam-se umas às outras, uma irmandade serena que insiste em ir inteira para cima do fogão: em dia de seu uso, são quatro, cinco, seis coisas diferentes, tudo borbulhando sob o fogo, numa conversa gostosa de comadres que por fim se encontraram no seu lugar preferido. Quando olham para cima, para as distantes panelas de cabo, riem e cochicham umas com as outras, numa alegria simples de gente que gosta de se divertir e aproveitar o que tem a seu lado. São, por excelência, as panelas das sopas.

As frigideiras são um caso à parte. Rasas, mas surpreendentes. Cheias de matizes. Aqui em casa, as preferências dirigem-se mais às frigideiras do que às panelas. Talvez porque a receita familiar que se aprende primeiro seja a das panquecas. Eu gosto da que me queima as mãos se esqueço do pano que lhe cubra o cabo. Mais ninguém gosta, e ela e eu olhamo-nos cúmplices.

Fogo é coisa que as panelas sentem de forma diferente. Estas daqui, à minha direita, gostam do fogão de lenha aberto, o fogo esperto de lenha seca, o calor repentino, que atordoa, que atiça o cheiro do tempero sem perder tempo. Outras, preferem a chapa do fogão, o calor que se espalha queimando quem se aproxima, o chiado que provocam ao saírem molhadas da pia e irem direto pro fogo. Já as da esquerda preferem a serenidade azulada da chama do gás, não gostam da sujeira do carvão, nem dessa overdose de cheiros que eu insisto em criar na cozinha quando acendo a lenha e espalho alecrim na chapa. São panelas comportadas e ordeiras, das que se usam no dia a dia.

Olho a pilha de panelas que formei diante de mim, todas expectantes. Sinto-lhes a agonia do saber estarem sendo escolhidas ou preteridas. Estou parada e quieta diante desse grupo de amigos e percebo que não há nenhum que eu possa deixar para trás. Num suspiro aliviado, começo a embrulhá-las  a todas em jornal do dia de ontem.

24/01/2012

Despedidas III

porque
a memória guarda o que quer
onde quer
como quer


Dentre os muitos prefixos linguísticos, essas pequenas partículas capazes de subverter, reforçar ou reencaminhar as raízes a que se ligam, há dois que prefiro: re e co. Coisas que gregos e latinos inventaram para nos fazerem pensar. Neste caso, ambos têm a sua origem em Roma. E vêm em meu socorro para entender coisas simples que de repente se tornam complexas - porque só as palavras têm esse dom.

Re responde usualmente pelo fazer de novo, pelo ir para trás e re-petir (pedir outra vez, no original), re-gredir, re-iterar, re-começar, re-cordar, re-gurgitar... Ações que, teimosas dentro delas mesmas, se necessitam re-visitadas, re-avaliadas. Ações que demandam que o pensamento re-flexivo se apresente e ajude a re-tomar situações. Não é necessária a ação concreta de duas ou mais partes, embora todas existam, e possam até ser levadas em conta. Co, por outro lado, atende por tudo o que pede concomitância, ação conjunta, companhia: lá estão as ações de co-mando, os movimentos de co-operação, a necessidade de co-rroborar, de co-ordenar, de co-laborar. Tudo junto, numa ideia de co-rrespondência entre as partes, entre os lados, entre os cenários. Difícil usar essas duas letras que parecem tão pequenas para alguma coisa que se queira isolada, separada, segregada, contida e alheia. 

Os anos fartos e generosos de Demétria preencheram-me de inúmeros aprendizados que começam com essas duas pequenas sílabas. Re-aprendi e re-descobri a cantar, a tecer, a tocar, a fazer, a amar, a falar, a gesticular, a calar, a escrever, a compartilhar, a ser franca; co-munguei de tanto e co-rrespondi e fui co-rrespondida em tantos sorrisos e afetos, que quase me sinto grávida de tão plena: tão grávida quanto da última vez, a que fez nascer minha sétima filha.

Chegada imprevista, a meio de uma noite que se tornou insônia inquieta e não descansou a não ser quando quatro diferentes testes de gravidez foram comprados. Todos positivos em poucos segundos. Não havia lugar para dúvida. Por muitos re que tentássemos, uma nova vida se insinuava pela fresta da porta, impreterível, inalienável. E, durante uns dias, impronunciável. Demorou a transformar-se em co.

Não é tão fácil apresentar-se a si mesma, e depois aos outros, numa sétima gestação. Por muito que se goste do estado interessante (e eu gosto), é como diz a amiga Marina: saímos fora de qualquer estatística, difícil conviver com o próprio lugar sem angústias. Sem ter o que re-pensar nem o que re-avaliar, um pouco de re-planejar talvez mas não ainda, fiquei aliviada quando o início das aulas se aproximou, e com ele o planejamento escolar, o re-encontro com o co-legiado de professores da Aitiara, a volta à vida com sentido, nesse sem sentido que pareceu essa de repente nova vida a caminho.

Atividade da primeira hora: um pouco da biografia de cada um, porque a história faz-nos, e o ato de nos fazermos história faz com que nos aproximemos uns dos outros. Ana Paula, hoje em terras catarinenses, termina seu relato contando da chegada dos filhos, o como marcou indelével a nova face da sua vida. Sem grandes planejamentos, algo me impele a que emende ao seu final o meu começo, adiantando dentro desse círculo mágico a gravidez invisível, numa necessidade súbita de que se tornasse real ali, o ventre cheio, e não apenas dentro de mim e da minha casa, grupos dividindo espaços imensos em meu coração.

Entre os muitos co que nasceram na minha vida dentro desse ser chamado co-legiado de professores, figura a aceitação plena dessa gravidez, a alegria de dividir a minha própria alegria latente com quem está ao meu lado e com quem com um apenas olhar me diz aceitar o desafio de se fazer junto na vida. Claro que não para sempre, já diz a música que o pra sempre sempre acaba, mas por muitos e muitos meses, nas mais variadas e desafiantes configurações, esse ser formado em círculo foi manancial de confiança e alegria, um amor destemido daqueles que se querem raros para que não nos acostumemos muito e achemos que são fáceis, banais e que podem re-fazer-se a qualquer tempo.

21/01/2012

Despedidas II


porque 
"amar o perdido
deixa confundido
o próprio coração"*



Por entre o nascer deste dia, amanheço na lagoa. As mãos do homem pintor puxam-me a memória para trás, as árvores refletidas na superfície parada da água, sentinelas do umbral que preciso reconhecer para voltar a mim mesma sem me perder na memória alheia. Sei que sou puxada para o interior de um fruto, habitado por quem já amadureceu semente e brotou futuro. Deixo-me conduzir de olhos fechados, à espera da primeira visita.

Subitamente a meu lado, entre os canteiros das pistas de uma Fernão Dias ainda em obras, Richard, Rodrigo e eu colhemos sementes de crotalária, esperança brilhante de sol em viagem de reconhecimento, levando o quase-menino Clóvis numa tentativa de salvação. Seu riso límpido, desconcertado por ser tratado como anjo sem que ninguém o tivesse avisado de que essa foi um dia a sua natureza, levanta-se das águas escuras da lagoa. Faz-me olhar em outra direção, na direção da estrada por onde desce um Rubens desvelado em Antonio, dois sorrisos no mesmo rosto amplo e claro e manso, na mesma crença absoluta na bondade do mundo. Atrás dele, numa repentina procissão, cada uma das fitas coloridas do mundo de Marielza, a leveza recusando ser peso, o peso admitindo a leveza. E no meio de tudo isso, do outro lado da estrada em que as crotalárias florescem e germinam sem ação do homem, por trás desse tempo sem tempo em que amanhece a lagoa, vejo uma silhueta de mulher fortaleza no seu acordar de manhã, o caramanchão da varanda trocado pelo muro libertador do prédio em frente, o vaso de flores maduras à janela, numa lembrança fortalecida do horizonte antigo.

Se desconcerto o sol que nasce e apago a luz, há muitos pares de olhos que se recolhem para dentro das águas desta lagoa, uns antigos como os de Laurinha, numa saudação do outro lado da vida, outros nem tanto como os de Karin, do outro lado da mesma vida redescoberta, e me pergunto quem se exilou e quem simplesmente partiu. Aqueles que se aglutinam em mim e me lembram de que sou muitos para constituir-me eu própria, saúdam a minha também agora partida. E não há peso. E não há dor. E não há sequer o que umedeça os olhos, apesar da imensidão que me invade. O sol que dispensa a treva, sem lhe perguntar se é hora, curva-se e dobra-se até o assoalho verde, uma relva molhada que se agarra a meus pés e me diz que espere ainda, que não me atrapalhe num reconhecer confuso de cada centímetro de percepção do que ainda foi.

E, simples e sorrateiro, aproxima-se o sentimento que persigo, diante dos meus olhos como névoa que uma garrafa de gênio começasse a desprender, uma garrafa de gênio em minhas mãos que esfreguei sem saber que esfregava. Nem quase ainda tem nome, mas acompanha-me todas as horas, acorda quando acordo e sabe que o faço a seu lado. À sua morada, dou o nome de gratidão.


* Memória, Carlos Drummond de Andrade
Foto: Samuel Balsalobre Athias

20/01/2012

Despedidas - I


porque
“as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão”*


(I - porque a vida demanda tempo e palavra para qualquer verdadeira despedida)

Foi agora mesmo, fim de madrugada. Levantou-se um vento diante da minha janela, um vento que pareceu nascer nas profundezas do chão e içar-se pelos troncos das árvores, agitar-se nas folhas e estender-se por sobre o teto da minha casa. Como uma mão que acenasse um adeus ainda prematuro, um presságio em forma de anúncio, um sinal de advertência; uma mão que duvidasse entre a separação e o distanciamento e o manter-se linha de pesca que suporte os quilos da distância, a pressão da saudade, o cimento preciso para alicerçar a continuação do caminho.

As madrugadas costumam colher-me grávida de palavras que descem sorrateiras pelo meio dos meus sonhos. Nos últimos anos, tenho me levantado a meio delas, para aprender que correr à escrita é o alívio de alma que me inicia. Perco horas de sono para ganhar horas de vida. Uma vida que reconheço, com a ajuda dos leitores do que resulta de tudo isso, na palavra que escoa de dentro de mim e se transformou, num pouco a pouco perseverante, na maior razão e tarefa de ser o tempo que sou.

O vento desta madrugada acorda-me feito um sacramento. Faz-me levantar, escrever e fechar os olhos. Ouvir no silêncio entrecortado pelos primeiros galos e pelas últimas cigarras um mundo que se liquefaz perante meus olhos, enquanto dinâmico e vivo se solidifica para outros. E eu preciso acreditar que é assim, a vida, as idas e as vindas como sempre dizemos, especialmente quando precisamos mudar em direções para as quais temos mais certezas que dúvidas. Não sei qual dos pratos da minha balança pesa ou se torna mais leve. Assim que acho que é o da direita, percebo que é o da esquerda, e em pouco tempo me dou conta de que a minha balança tem muitos, muitos pratos, e por todos eles dou graças e sorrio, ainda que me doam, e porque seu peso e leveza permanecerá por muito tempo em mim, ainda e porque tantas coisas.

Vários anos atrás, poucas horas depois do nascimento de um dos filhos que respirou pela primeira vez dentro das paredes desta casa, um coral de vozes surgiu do meio do escuro para cantar o recém chegado, como uma brisa que chegasse de mansinho e se instalasse à entrada da vida. Abri a porta devagarinho, sequer pude articular palavra. Agora que o dia começa a raiar lá fora, fecho a porta uma última vez; devagar, como naquela outra noite; ainda ouço em meus ouvidos a música de louvor aos que chegam de novo, a cada dia. Que este seja um bom dia.


* "Memória", Carlos Drummond de Andrade

19/01/2012

Atos


Vez por outra gosto de reler um texto de Paulo Freire, um texto curto, fruto de uma palestra dada em 1981 e incluída anos depois pela Cortez num pequeno livro: “A importância do ato de ler”. Dos três artigos que compõem o volume, é o primeiro que gosto de ler e ler outra vez.

Volto a ele pelo significado profundo que teve em diversos momentos da minha vida, da minha própria leitura do mundo que me cerca, de mim mesma dentro desse mundo, desse mundo que se avoluma e de repente me toma inteira por dentro. Paulo volta, nesse texto, à leitura dos primeiros signos da sua vida, a casa em que nasceu no Recife, as avencas de sua mãe, as grandes árvores no quintal que o viram pôr-se de pé, andar e aprender a ler – assim, nessa sequência singela e simples. Uma infância permeada pelos signos que ele, como ninguém, soube entender conectados a todos os outros que constroem a nossa vida, representações da realidade onde inclui com especial reverência as linguísticos – a “palavramundo”. Textos encarnados no “canto dos pássaros, na dança das copas das árvores anunciando tempestade, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores”. E numa transição terna, numa saudade que apelida de “mansa”, Paulo absorve e multiplica, junto a esses signos, o da leitura dos livros que inspiraram, ampliaram e modificaram a sua representação do que é o mundo.

Guiada pelas suas mãos, passeio mais uma vez pelos signos da leitura do meu próprio lugar e tempo; os que me rodeiam agora e os que já me deixaram, deixando-me impressa com a sua forma passada, sem saber então o que viria a ser de mim sob a sua marca. Anos atrás, num dos momentos de releitura desse texto, decidi lê-lo com um grupo de alunos – jovens que pensaram não entender o que dizia, que relação teria tudo aquilo com eles próprios, sua própria vida, a sua necessidade de leitura construindo-se ainda tão diáfana. Há dias, um deles me escreve, e me diz que de repente se lembrou de tudo aquilo, do que Paulo Freire dizia, e se surpreendeu de não ter percebido então o que no fundo já tinha feito sentido. Só que ele não percebera. Mas guardara.

A verdade é que passamos a vida lendo, às vezes sem consciência disso, e essa leitura acomoda-se dentro de nós à espera que demos por ela. Com sorte, mais tarde ou mais cedo é isso que nos acontece. A alguns a tarefa de ler como comumente se entende a leitura é custosa, doída: livros, textos compridos, que demandam concentração que às vezes falha, numa obrigação que nenhuma leitura comporta, porque ler é condição libertária, ave bala cabralina exigindo o oxigênio da sua sobrevivência. Em todos os outros momentos, seguimos vida afora lendo, sem saber que lemos – lemos as indicações da vida no que é óbvio e no que nem tanto, lemos os signos e as contas, os búzios, as estrelas, as cartas, os olhares, o toque do outro fundo em nossa carne. Lemos de cabeça inclinada e coração em sangue, a pele exposta vulnerável, as carícias e as palavras da vida numa aragem que não se esgota nem mesmo quando já passou. Gosto de pensar que, no dia de hoje, conseguirei ocupar-me por inteiro com a leitura do que me rodeia; uma leitura leve, correta, consciente, consequente, daquele tipo que me liberta, disponibiliza e autentica, num passeio que me leve aos mesmos bons caminhos que Paulo Freire consagrou sob seus pés.

13/01/2012

Perturbação


A pergunta veio insuspeita, assim como quem não quer saber nada mas pergunta; recebeu um silêncio espesso como resposta, um ”aguarda” que logo se resolveu numa só palavra, saída repentina da minha boca, como se minhas gengivas decidissem sentir enquanto o coração espera. Uma resposta em forma de parto, um expulsar tântrico de palavra resumo. Perguntam-me o que me faz escrever hoje, e eu só consigo ver diante de mim essa palavra: perturbação.

Uma perturbação provocada pelo exercício das palavras, do diálogo entre elas, de uma espécie de movimento longínquo que não se afasta nem no espaço nem no tempo: passadas horas, está aqui sem que se veja, sentada ao meu lado, palpitante nos veios da memória recente.  É o estado de perturbação que me provoca a escrita, respondo.

Decido investigar, para entender-me melhor e aprender a dar respostas que se comportem. Ir ao dicionário, aqui, pouco ajuda: perturbação é coisa ruim, parece, à primeira vista. Coisa de tumulto, distúrbio, mal estar passageiro, desordem, confusão. A minha perturbação não se alinha nesse verbete. E lá na última linha, quando acho que nada faz sentido, um sinônimo acomoda-se ao que sinto - ali escondido quase no fim da página, como se talvez pensasse pertencer a outro lugar. Perturbação sinônimo de comoção, emoção profunda que acorda, provoca, move e faz mover. Perturbação sinônima de motim, revolta do tempo, de um ser que se altera sem que o faça a sua estrutura. Um tempo de costas viradas aos relógios concretos, endurecidos, ponteiros amarrados ao aço frio dos mecanismos exatos.

Esta minha perturbação é filha do inesperado, um espanto que dispensa explicações. As palavras que faz nascer escapam por entre os espaços dos meus dedos - seja verso, seja prosa, um tropel incontido que eu só observo deste meu posto de escrevente. Não, não as psicografo. Sinto-as nascer e tomarem forma, buscarem seu espaço preciso no papel. Não sei se nascem dentro, ou se sou eu que nasço dentro delas. É mais provável que seja a segunda opção. Permito-lhes a ida e a vinda, o retorno, a variação, a dúvida, o olho fechado, a espera, a mão que se apoia para aconselhar ao coração que vibre mais baixo. Sou toda sua, numa entrega que se diz destino, que se esgueira e me desarma as indecisões, as manias, os pensamentos fossilizados, as inconvenientes esquinas em que estacionamos a alma de vez em quando. Vou-me ao papel e à tinta e retorno fortalecida, alma e coração e corpo em calma, em alívio, à espera da próxima perturbação feita palavra. Enquanto isso, volto ao domínio da ficção, palavra que chega com mais vagar e trabalho, de onde saio ultimamente só e apenas para pensar na gênese que a torna fartura à minha porta. Ou para responder aos bons amigos, que inspiram e perturbam os meus caminhos.

11/01/2012

Fado


Há coisas que exercem um fascínio peculiar. Parecem pertencer a outro momento de nós próprios, um outro lugar de outro tempo em que éramos outras pessoas. O fado é isso, na minha vida. Reconheço a minha infância inteira nas letras que ouço, nas melodias que entram por mim adentro, sem respeitar as portas que fui instalando ao longo da vida. As novas paredes com que decorei o meu interior sucumbem ao arremesso do dedilhado da guitarra e, quando dou por mim, já estou a cantar baixinho. Nem sei se quero, mas os olhos fecham-se sem que eu os comande, e em dois segundos tenho diante de mim as águas do Tejo, o poente, as curvas da estrada de Cascais, a noite estendida pelas vielas estreitas dos bairros populares de Lisboa. Porções generosas de melancolia acompanhadas de sardinhas e vinho da casa numa tasca qualquer da Estrela. O ponto mais ocidental da Europa a bater nas janelas da casa que alicercei em terras brasileiras.

Nos últimos anos reaproximei-me do fado graças aos amigos que me puxaram de volta a ele. Com eles, creio que sem que o saibam, repaginei a figura do meu pai, a penumbra avermelhada das casas de fados que o fascinavam (e a mim como consequência), as noites que pareciam não ter fim, os olhos marejados a meio delas, os discos a ocuparem o espaço da casa em que não havia livros.  Com ele, o fado, despedi-me finalmente dessa figura paterna que, como tantas em tantos, desperta emoções e lembranças tão contraditórias. Ficaram-me, assim espero, os bons momentos; aboli os demais como se abolem os vincos da roupa quando a passamos a ferro. O calor, a atenção e o cuidado para que nada se perca, nada se queime e a vida se apresente inteira como se fosse nova. Dobro-os com cuidado, engomados e brancos como as camisas alentejanas que se mandam bordar a vermelho, dentro de uma gaveta que possa levar comigo e abrir quando e se for preciso. Mas nem quero que seja, para não precisar repetir gestos antigos no futuro que está tão próximo.

Devo, a esses amigos, a conciliação com a melancolia que me corre por dentro mas não chego a reconhecer como minha, porque me cansa, porque faz tempo, porque pertence a alguém que se encontrou no meio do caminho e decidiu-se por outras paisagens; concilio-me porque a deposito toda dentro do fado, dentro dessa forma de destino que assume voz e música como protagonistas e me livra, a mim, de transportá-la para a vida de todos os dias. Como se abrisse um interregno na vida de quem reconheço ao espelho, e pudesse voltar atrás, como quem pisa nas próprias pegadas sem olhar para trás.

(Imagem: "Fado", de José Malhoa)