porque a vida
é um parto
E de repente, no meio deste
vendaval que se alevantou, descubro que a Lua está em trânsito pela sexta casa
do meu mapa astral, formando um ângulo harmonioso com o meu Sol. Ou seja: uma
boa fase para organizar as coisas da minha vida, avaliar as questões pendentes
e tentar solucioná-las. Daqueles dias em que olhamos para o espelho e dizemos:
putz, ainda bem!
Embora haja quem pense o
contrário, eu vivo tentando encontrar certezas. As dúvidas atormentam-me (se é
que isso é uma forma de tormento), são elas que me procuram e não eu a elas.
Assim que me aparece um trânsito astral que me sugere mais tranquilidade do que
a que tenho normalmente, dou pulos de alegria. Quando abro as cartas e me
aparecem a Sacerdotisa, o Julgamento, idem: serenidade, visão clara, separação
de joio e trigo sem demora. Mas nem sempre é assim – a Torre aparece aqui e
ali, soçobrando a minha vida, arrancando pedaços do que achei fosse um alicerce seguro. O naipe de espadas coloca-me em movimento em direção ao
próximo estágio, o de copas alimenta-me o mundo do sentir, que é o que
movimenta todo o resto. As cartas converteram-se, com o tempo, em refúgio e caminho de busca, um espelho fiel que retrata o que eu própria sei sem ver. Quando tenho a sorte de me tornarem útil aos outros, apaziguam-me.
As cartas do tarot estão presentes na minha
vida há muitos anos. A primeira carta que tirei na vida foi a Imperatriz, a carta da maternidade por excelência. Não devia ter
mais de 6 ou 7 anos de idade, mas lembro de ter ficado emocionada com a imagem, e por isso mesmo não a esqueci. As cartas andaram à minha volta aqui e ali, e
finalmente ganhei o primeiro baralho e me diverti de brincar. As cartas ligadas
à gestação, à gravidez, aos nascimentos continuaram pulando de dentro do
baralho sem que eu as chamasse. E eu entendi que haveria filhos no meu futuro.
Acertei, parece.
Porém, ligando os pontos, como o
fez Steve Jobs naquele discurso que circulou à exaustão pela internet, percebo
que não foram apenas os meus filhos, as minhas gestações, os meus nascimentos
que as cartas mostraram. Essas cartas continuam presentes e ativas, mas
multiplicadas nas crianças que tenho a honra e o privilégio de assistir
entrando na nossa vida terrestre.
Esta semana, marquei uma consulta
com a doutora/amiga Irene. Em parte porque era preciso mesmo, em parte porque
está no rol das pessoas de quem quero despedir-me. Gosto da serenidade de
Irene, e da maneira como chama todas as mulheres de “filhota”; gosto do carinho
compreensivo que emana por todos e como é ao mesmo tempo irreverente e pragmática
e decidida, às vezes impaciente, até. Irene formou-se há 43 anos. Aos poucos,
pensa deixar o consultório, e eu ouço a Márcia, sua secretária de anos, recusar
novos clientes, porque “a doutora está diminuindo o ritmo”. Olho-a enquanto ela preenche a minha ficha, e me pergunto se conseguirá diminuir a toada, e ir fazer
outras coisas que talvez lhe deem menos prazer do que atender as necessidades
das mulheres que batem à sua porta. E penso nas mulheres que não a conhecerão e
que não terão à beira a sua força e a sua compreensão do que acontece, de
fato, de fato, de fato, na hora de parir. Coisas que vão muito além das
técnicas, quaisquer que sejam.
Irene apareceu na minha vida ia já
a gravidez do Cândido adiantada. Achei estranho seu consultório, aqueles roxos por todo canto, das poltronas ao carpete, passando pelas paredes; pensei
em levantar-me e ir embora, mas alguma coisa me fez esperar. O livro que levava
na mão, introdução básica que inventei para qualquer médico com quem pensasse
ter um filho, foi parar dentro da bolsa. Mas Irene viu uma pontinha assomando e
perguntou o que era. E eu dei-lho, e ela sorriu ao pensar em fazer um parto em
casa, novidade numa vida de tantos anos de obstetrícia. E sorriu mais uma
vez, desta vez para o Ricardo, e disse: “Ricardo, havia uma música... uma música que era assim:”, e de repente começa a cantar a mesma música
que a mãe de Ricardo lhe cantava quando era pequeno. Assim se iniciou uma
parceria de carinho e respeito; uma parceria que não precisa ver-se para
acontecer. Não é apenas uma parceria firmada nos partos em casa do Cândido, da
Ilundi, do Tiago, da Lina, do Silas, queridas crianças nascidas todas de dentro
de mim, de uma forma ou de outra, eternas estrelas do caminho, mas uma parceria
que se estenderá quer nos vejamos, quer não, quer nos encontremos, quer não.
Pessoas assim, como a Irene,
invadem-me nestes últimos dias de Botucatu. Deixo-as que me percorram. A minha
memória resgata-as dos lugares onde as deixei esperando, uma memória
comovida pelo assombro de que sejam tantas, e tão fortes, e tão poderosas, e tão marcantes no meu
nascer cotidiano.