porque o equilíbrio
é precário
Nada como uma mudança para
perceber a quantidade de coisas que se juntam, por dentro e por fora da alma, e
não é possível carregar. Por não conseguir que seja de outra forma, muito
ficará nos sótãos, aguardando o tempo e a coragem de mexer em guardados mais
antigos, ou escondidos. Já há bastante com o que as prateleiras seguram, os
armários guardam, as gavetas escondem.
Começo pela cozinha. E logo me
pergunto por que por aqui, pelas panelas. A cada uma que espano, a lembrança do
que conteve. Histórias que não tenho tempo pra parar e pensar, sequer escrever,
porque o tempo ruge, e a tentação de ficar-se no passado por mais tempo pode
atrasar-me o futuro.
Vêm ver o que me acontece – achei
que estava rindo por dentro, mas não: é por fora também. Nesta casa vazia de
crianças que viajam, filho grande que já se foi, até meu pensamento se torna
audível. Divirto-me dando nome a cada panela, ligado à sua memória mais
marcante. E assim todas recebem nomes de amigos que aqui ficam – “aqui”,
note-se, sendo o espaço do meu coração, que amigos não precisam de casas, nem
de cidades, nem de distâncias que se materializam só nos mapas rodoviários.
Panelas são seres intrigantes,
como os amigos. Umas, entregam-se sem medidas; cozinham qualquer coisa, sorriem
para qualquer ingrediente, gostam de qualquer colher, não quebram e raramente
trincam. E, mesmo quando o fazem, descobrem-se úteis de outras maneiras, ou
apenas enfeitam a vida da gente, guardando a história numa prateleira para onde
se olha de quando em quando em busca de conforto. Outras, têm seus caprichos:
não falam com este ou aquele tempero, discutem com a colher, deixam cair a
tampa. Há as que sempre queimam as coisas no fundo, deixando aquela crosta
esturricada que dá trabalho depois a quem a lava. As que derramam com incrível
facilidade. As que sujam tudo em volta. As que resistem a sair do armário,
ficam escondidas lá no fundo, quietas mas (eu sei) atentas. Não as quero trazer
pra fora antes do tempo. Uma coisa aprendi (espero): a respeitar o Tempo.
Decidi, anos atrás, pendurar
algumas do teto, para desocupar os espaços e livrá-las de estar por baixo da pia, escondidas atrás da cortina de chita. Naquela altura, logo percebi que
esse lugar se destina apenas a algumas, especialmente às que têm cabos longos porque
gostam que as peguem de longe, sem muita proximidade com as mãos. Tudo bem. Abaixo
delas, sob a bancada, uma pilha de panelas grandes e bojudas, umas de pedra, outras de barro. Acomodam-se umas às outras, uma irmandade serena que insiste em ir inteira para
cima do fogão: em dia de seu uso, são quatro, cinco, seis coisas diferentes,
tudo borbulhando sob o fogo, numa conversa gostosa de comadres que por fim se
encontraram no seu lugar preferido. Quando olham para cima, para as distantes
panelas de cabo, riem e cochicham umas com as outras, numa alegria simples de
gente que gosta de se divertir e aproveitar o que tem a seu lado. São, por excelência, as panelas das sopas.
As frigideiras são um caso à
parte. Rasas, mas surpreendentes. Cheias de matizes. Aqui em casa, as
preferências dirigem-se mais às frigideiras do que às panelas. Talvez porque a
receita familiar que se aprende primeiro seja a das panquecas. Eu gosto da que
me queima as mãos se esqueço do pano que lhe cubra o cabo. Mais ninguém gosta,
e ela e eu olhamo-nos cúmplices.
Fogo é coisa que as panelas
sentem de forma diferente. Estas daqui, à minha direita, gostam do fogão de
lenha aberto, o fogo esperto de lenha seca, o calor repentino, que atordoa, que atiça
o cheiro do tempero sem perder tempo. Outras, preferem a chapa do
fogão, o calor que se espalha queimando quem se aproxima, o chiado que
provocam ao saírem molhadas da pia e irem direto pro fogo. Já as
da esquerda preferem a serenidade azulada da chama do gás, não gostam da
sujeira do carvão, nem dessa overdose de cheiros que eu insisto em criar na
cozinha quando acendo a lenha e espalho alecrim na chapa. São panelas
comportadas e ordeiras, das que se usam no dia a dia.
Olho a pilha de panelas que
formei diante de mim, todas expectantes. Sinto-lhes a agonia do saber estarem
sendo escolhidas ou preteridas. Estou parada e quieta diante desse grupo de
amigos e percebo que não há nenhum que eu possa deixar para trás. Num suspiro
aliviado, começo a embrulhá-las a todas em jornal do dia de ontem.
Ahhhhhhh! De repente, me deu vontade de cozinhar para minhas "panelas"!
ResponderExcluirMorro de fome!
Excluirantônimo jan 26,2012 16:35FM
ResponderExcluirmas de sede não morrerás!!!!!
....se me convidarem, de sede não morro com certeza.
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