porque
"amar o perdido
deixa confundido
o próprio coração"*
Por entre o nascer deste dia, amanheço
na lagoa. As mãos do homem pintor puxam-me a memória para trás, as árvores
refletidas na superfície parada da água, sentinelas do umbral que preciso
reconhecer para voltar a mim mesma sem me perder na memória alheia. Sei que sou
puxada para o interior de um fruto, habitado por quem já amadureceu semente e
brotou futuro. Deixo-me conduzir de olhos fechados, à espera da primeira
visita.
Subitamente a meu lado, entre os
canteiros das pistas de uma Fernão Dias ainda em obras, Richard, Rodrigo e eu
colhemos sementes de crotalária, esperança brilhante de sol em viagem de
reconhecimento, levando o quase-menino Clóvis numa tentativa de salvação. Seu
riso límpido, desconcertado por ser tratado como anjo sem que ninguém o tivesse
avisado de que essa foi um dia a sua natureza, levanta-se das águas escuras da
lagoa. Faz-me olhar em outra direção, na direção da estrada por onde
desce um Rubens desvelado em Antonio, dois sorrisos no mesmo rosto amplo e
claro e manso, na mesma crença absoluta na bondade do mundo. Atrás dele, numa
repentina procissão, cada uma das fitas coloridas do mundo de Marielza, a
leveza recusando ser peso, o peso admitindo a leveza. E no meio de tudo isso,
do outro lado da estrada em que as crotalárias florescem e germinam sem ação do
homem, por trás desse tempo sem tempo em que amanhece a lagoa, vejo uma
silhueta de mulher fortaleza no seu acordar de manhã, o caramanchão da varanda
trocado pelo muro libertador do prédio em frente, o vaso de flores maduras à
janela, numa lembrança fortalecida do horizonte antigo.
Se desconcerto o sol que nasce e apago
a luz, há muitos pares de olhos que se recolhem para dentro das águas desta
lagoa, uns antigos como os de Laurinha, numa saudação do outro lado da vida,
outros nem tanto como os de Karin, do outro lado da mesma vida redescoberta, e
me pergunto quem se exilou e quem simplesmente partiu. Aqueles que se aglutinam em mim
e me lembram de que sou muitos para constituir-me eu própria, saúdam a minha
também agora partida. E não há peso. E não há dor. E não há sequer o que
umedeça os olhos, apesar da imensidão que me invade. O sol que dispensa a treva, sem lhe perguntar se é hora,
curva-se e dobra-se até o assoalho verde, uma relva molhada que se agarra a
meus pés e me diz que espere ainda, que não me atrapalhe num reconhecer confuso
de cada centímetro de percepção do que ainda foi.
E, simples e sorrateiro, aproxima-se o
sentimento que persigo, diante dos meus olhos como névoa que uma garrafa de
gênio começasse a desprender, uma garrafa de gênio em minhas mãos que esfreguei
sem saber que esfregava. Nem quase ainda tem nome, mas acompanha-me todas as
horas, acorda quando acordo e sabe que o faço a seu lado. À sua morada, dou o
nome de gratidão.
* Memória, Carlos Drummond de Andrade
Foto: Samuel Balsalobre Athias
AMEIIIIII ANA!!! OBRIGADA!!!!
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