Há coisas que exercem um fascínio
peculiar. Parecem pertencer a outro momento de nós próprios, um outro lugar de
outro tempo em que éramos outras pessoas. O fado é isso, na minha vida.
Reconheço a minha infância inteira nas letras que ouço, nas melodias que entram
por mim adentro, sem respeitar as portas que fui instalando ao longo da vida.
As novas paredes com que decorei o meu interior sucumbem ao arremesso do dedilhado da guitarra e, quando dou por mim, já estou a cantar baixinho. Nem sei se quero,
mas os olhos fecham-se sem que eu os comande, e em dois segundos tenho diante
de mim as águas do Tejo, o poente, as curvas da estrada de Cascais, a noite
estendida pelas vielas estreitas dos bairros populares de Lisboa. Porções
generosas de melancolia acompanhadas de sardinhas e vinho da casa numa tasca qualquer da Estrela. O ponto mais
ocidental da Europa a bater nas janelas da casa que alicercei em terras
brasileiras.
Nos últimos anos reaproximei-me
do fado graças aos amigos que me puxaram de volta a ele. Com eles, creio que sem
que o saibam, repaginei a figura do meu pai, a penumbra avermelhada das casas de fados que
o fascinavam (e a mim como consequência), as noites que pareciam não ter fim, os olhos
marejados a meio delas, os discos a ocuparem o espaço da casa em que não havia livros. Com ele, o fado,
despedi-me finalmente dessa figura paterna que, como tantas em tantos, desperta
emoções e lembranças tão contraditórias. Ficaram-me, assim espero, os bons
momentos; aboli os demais como se abolem os vincos da roupa quando a passamos a
ferro. O calor, a atenção e o cuidado para que nada se perca, nada se queime e
a vida se apresente inteira como se fosse nova. Dobro-os com cuidado, engomados
e brancos como as camisas alentejanas que se mandam bordar a vermelho, dentro de uma gaveta que possa levar
comigo e abrir quando e se for preciso. Mas nem quero que seja, para não
precisar repetir gestos antigos no futuro que está tão próximo.
Devo, a esses amigos, a conciliação com a melancolia
que me corre por dentro mas não chego a reconhecer como minha, porque me cansa, porque faz tempo, porque pertence a alguém que se encontrou no meio do caminho
e decidiu-se por outras paisagens; concilio-me porque a deposito toda dentro do
fado, dentro dessa forma de destino que assume voz e música como protagonistas
e me livra, a mim, de transportá-la para a vida de todos os dias. Como se
abrisse um interregno na vida de quem reconheço ao espelho, e pudesse voltar
atrás, como quem pisa nas próprias pegadas sem olhar para trás.
(Imagem: "Fado", de José Malhoa)