24/02/2013

Alice, a que não morre

Recebo assim: "Dou-te a notícia sem preâmbulos. Como um corte, porque é assim. A Alice faleceu.". Frases curtas e secas, de onde escorre a história de uma vida inteira.

Alice é amiga de minha mãe, assim como quem me comunica a sua morte. Gente que me viu pequena e me fez crescer, mantendo-se dentro de mim como mastros de navios que não tombam. Aos olhos azuis do António, o missivista, vejo-os de vez em quando, nos momentos em que as águas do mar dos Açores me visitam acordada. Tenho saudades de ambos os azuis, seus olhos e o mar da janela de casa. À Alice, guardo-a em muitos lugares, porque a convivência se desenrolou no tempo, e acompanhou-me do nascimento até agora, numa forma de presença leve que me fez observá-la muitas vezes sem vontade de dizer nada. Professora de português nas Caldas da Rainha, companheira de minha mãe, era uma mulher surpreendente e corajosa, ria muito, sempre, e entre risos era cortante e incisiva, uma forma de dizer verdades que não admite resposta. Fomos vizinhas também, mesmo que eu não me lembre, e que tenha sido ela a me devolver uma memória fantasiada de uma Ana debruçada na janela, horas à conversa com quem quer quer passasse.

Fizemos uma viagem, ela, minha mãe e eu, há anos atrás, à Vidigueira, pequena cidade do Alentejo português. Alice e seu marido, o Custódio, que era médico, foram importantes pessoas na luta anti-fascista em Portugal. Custódio, que já morreu há anos, esteve preso em Caxias, e há quem se lembre dele acudindo os presos que precisavam de cuidados médicos. Quase no estalar da Revolução dos Cravos, foram responsáveis por colônias de férias para os filhos dos presos políticos. E, depois da Revolução, foram de um entusiasmo sem par, mudando-se para a alentejana Vidigueira, onde então despontava o movimento cooperativista agrário e onde me encontro com Alice, em viagem de rememoração. O movimento revolucionário no Alentejo, mesmo que haja quem o diga, está longe de ter sido um fracasso: saiu-se da miséria física e moral mais atônita em que se vivia.

Nessa viagem, visitamos antigos amigos de Alice. Rugas em forma de pessoas. Sentámo-nos muitas vezes à beira das casas caiadas, o pote de cal virgem a borbulhar ao lado, o pincel pronto para branquear qualquer mancha na parede. As ruas vazias debaixo de um sol de muitas dezenas de graus. O tempo parado, o vento parado, o som parado. Saí para andar pelos campos, lembro-me. Pelos campos de sobreiros e azinheiras, sangrando eles pelo corte recente da cortiça, retorcendo-se elas para dentro da terra em busca da água tão escassa, e o chão forrado de bolotas à espera dos porcos e dos javalis. E ao longe os montes, e mais longe a silhueta de um castelo, e mais longe ainda as curvas do Tejo que não vejo mas pressinto, e me encaminham para Lisboa. Volto, e Alice está de olhos fechados sentada à sombra de uma latada - e porque tudo está ligado e acontece agora em meio ao passado, vejo ao seu lado o meu avô, que também se chamava António mas não tinha os olhos azuis, tesoura em punho no corte das uvas já maduras que se penduram até alcançarem os seus dedos. Está nos Açores, o meu avô, e o seu olhar amalgama-se ao de Alice, que acorda de chofre e oferece-me uma piada, e um dito, e uma música da resistência.

Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 74, estávamos ela, minha mãe e eu diante do mar bravio da praia da minha infância, cantando a plenos pulmões "Somos livres, somos livres, não voltaremos atrás". As gaivotas passavam por cima de nós com seus gritos ácidos, e as nossas mãos levantavam-se e diziam-lhes adeus, antes de nos irmos embora, comer um peixe fresco e beber um copo de vinho temperado das lágrimas que choram o tempo que não cede. À tua saúde, Alice, tu que nunca voltaste atrás e não morres porque nós que ficamos havemos de te manter viva.



23/02/2013

A pele e o afeto

Num dos comentários a este blog, algumas semanas atrás, uma minha tia muito querida queixava-se, além mar, da minha escrita brasileira, que lhe dificulta a leitura do que escrevo. Concordo com ela, às vezes preciso mudar o meu registro linguístico, porque sei perfeitamente que escrevo mais para o leitor brasileiro do que para o lusitano, o que leva a algumas escolhas. Pode ser que seja um engano, mas assim é. Nesse processo que gravita entre o semântico e o lexical, algumas palavras complicam-me a vida mais do que outras. 

Demorei um tanto de tempo, por exemplo, para me acostumar com a palavra "vivenciar" (portugueses entender-me-ão). Não há como fugir dela ao pensar em educação nos tempos de hoje: na pedagogia waldorf, por exemplo, a vivência das coisas é o degrau a partir do qual se sobe a qualquer lugar. Não sei em que ponto andará este vocábulo pelas areias de Portugal. Houaiss foi de grande auxílio, incorporando-o ao léxico em (creio) 2009. Talvez tenha sido antes. De qualquer forma, meno male.

Vivenciar é coisa diferente de viver. Quem vivencia uma dada situação, deixa-se afetar profundamente por ela. (Quem diz isso não sou eu, é o Houaiss.) Já se sabe que podemos ir pela vida afora sem sermos afetados pelas coisas, muito menos profundamente. Assim, vivendo, simplesmente. Mas é o ser afetado que faz a diferença: o ser quando se imbui de afeto. 

Não à toa, referiam-se os latinos a affectus para indistintamente se referirem a afeto, paixão e amor; entendiam-no como condição, disposição e estado - tudo isso junto ou de forma separada. Para desenvolver afeto, diz-nos ainda a preciosa etimologia, é preciso tanto ser possuído quanto dotado dele. O afeto afeta-nos, permite-nos estados de transformação internos que o cotidiano por si só não permite. O ser afetado é o ser imbuído de desejo, de aspiração - de afeto vivenciado, tudo aquilo que o sujeito torna representativo dentro de si.

Situações às quais nos ligamos através do afeto transformam-se em outras muito diversas. Ontem, só por causa do afeto, terminei o dia numa palestra que chegou sem aviso prévio. Não sabia muito bem do que se tratava, mas minha companhia queria muito assisti-la. Fui, pelo afeto que tenho por ela, e lá estive presente imbuída de afeto, basicamente porque reconheço, cada dia mais e a duras penas, ser condição necessária à minha subsistência.

A palestrante, Marcy Axness, apresentou seu livro (Parenting for peace) e as suas constatações do quanto é necessária uma nova forma de educar para que tenhamos um mundo futuro mais pacífico. Uma nova forma de educar que envolva e parta do mais puro e primordial afeto - aquele que nos faz ir na direção do outro a partir das suas necessidades. Claro que a sua fala não foi essa (quem lá estava talvez não reconheça o que digo!), mas foi assim que a entendi e signifiquei dentro de mim. Colocar-se no lugar do outro, a verdadeira (e única) forma de compreender alguma coisa a respeito dele (e assim ter qualquer papel educador), pode ser um processo impactante e intenso. Se imbuído de afeto.

Paul Valéry dizia que o mais profundo é a pele. Marcy fala de inteligência celular. Localiza-a na membrana, o órgão capaz de dar e receber. Observo-a, na imagem que escolho por entre tantas que o google me oferece, e vejo a pele que nos demarca e contorna, colocando-nos em contato uns com os outros, células de uma vida que não se constrói a sós. Uma membrana tecida com poros como os nossos, que podem oferecer e absorver afeto. Não lhes é uma condição dada, talvez não dependa deles, mas do afeto que colocamos em disponibilidade ao afeto do outro, para sermos ancoradouro e navio ao mesmo tempo. Afinal, para que tudo valha a pena, é imprescindível que a alma não seja pequena.




Interessou-se pelo livro de Marcy Axness?

16/02/2013

Pactos e compromissos

Como não lhes conheço os nomes, invento-os: da esquerda para a direita, um tanto desfocados, Júlio, Samuel, Paulino e Josias. Quatro amigos camaradas, quatro histórias cruzadas encontradas num banco de supermercado num dia de quarta feira.

Invento-lhes uma memória também, já que lhes inventei o batismo. E descubro por entre as prateleiras de onde os observo, com os poucos elementos que me oferecem, o pacto que fizeram anos atrás: contarem uns com os outros,  "ainda que o jogo seja 0 a 0" (diz um deles, não consigo perceber qual), e sobretudo quando a morte inevitável aproximar seus passos. Qualquer lugar é lugar, desde então. E agora, todos aposentados e sem muito para fazer, fazem o que há de mais importante, que é dar linha livre ao pacto.

Discutiam justamente, nesse dia, a incrível vantagem de terem decidido firmar um pacto, em vez de terem chegado a um compromisso, que era a ideia original de seu Josias, que gosta de palavras que começam com "com". "É que pacto", ouço que dizem, "é coisa muito diferente de compromisso.  E não fique triste, Josias, que pacto é coisa que se com-põe, que se pega com quatro mãos, e se arranja da maneira que se quer. No nosso caso", e riem com gosto, "composição a oito mãos!" Deve ser bom assim, envelhecer distribuindo sorrisos novos, sem se preocupar com quem se esconde atrás das prateleiras para ouvir conversa alheia.

Seu Paulino, mesmo sem perceber que a única pessoa que o escuta sou eu mesma, discorre sobre o assunto. Descubro, através das suas palavras arrastadas de professor de latim de antigamente, que "compromisso" chega-nos (claro) do latim. Compromissum, basicamente um depósito em dinheiro como garantia. "Foi aí que começaram os problemas, lembram?", interrompe Samuel. Seu Paulino continua: "...que vem de compromittere, que é precisamente concordar em pagar a tal quantia". Anoto, para não esquecer, o que se segue: concordar, por sua vez, vem de promittere: prometer. A complicação piora: promittere deriva de omittere, que não é só o óbvio omitir, mas também deixar ir, ou largar a um canto. E mais: omittere deriva de mittere: jogar, arremessar (fora, depreendo), e daí ruma na direção do proto-indo-europeu per, que graças aos deuses não fazemos a mínima do que quisesse significar nesses primórdios dos primórdios. De garantias em dinheiro a omissões e coisas largadas e jogadas a um canto, começo a detestar seriamente esse tal de compromisso.

Nem preciso da conversa inaudível dos quatro senhores, concluo como eles: venham a mim os pactos, que de um simples pactum (acordo) ruma para um mais simples ainda pangere (compor): composição de desejos e aspirações, simples e serena, com cheiro de conforto e sinceridade e clareza e confiança. Qualquer coisa que se queira pôr, lado a lado. Garantia de, no máximo, liberdade. Liberdade de ir, e vir e, sobretudo, liberdade de ficar. Como o pacto destes senhores, de se amarem e se sustentarem até num banco perdido de supermercado em dia de quarta feira. Ou como qualquer pacto que se queira de vida plena, inteira, intensa e na direção que queira compor-se, com as mãos que estiverem ao nosso alcance.


Imagem: Tai Ribeiro, companhia  boa de supermercado!

02/02/2013

O entrelugar das vias metabólicas

Não há coisa que consiga suscitar-me mais movimentos internos do que a percepção de que há algo em palavras que ouço que lhes confere um poder que não consigo apreender de imediato, mas está lá. É uma espécie de compulsão (sadia), essa necessidade de guardar pequenas coisas que não são  ainda em mim o que por natureza são em si.

Desdobro-as depois, a essas palavras. Tenho várias, aqui ao meu lado, no caderno novo que inauguro para inaugurar-me nova, como é bom que se faça quando se começa novo caderno ou novo trabalho. Olho para a minha coleção de novas palavras, mastigo-as com os olhos. E penso no entrelugar de onde saíram e vieram alojar-se em mim.

Não é minha, a palavra entrelugar: devo-a ao colega professor. Um entrelugar ao qual de repente sinto pertencer também, um entrelugar de encontro entre o delicado e o explosivo, a ordem e o caos, o silêncio e o grito, o antes e o depois, o caminho terminado e o abismo adiante. Esse entrelugar tem nome, e endereço. Chama-se N.O.I.A. e fica em Botucatu; muito simbolicamente, liga duas ruas paralelas, cria um espaço de encontro entre o que está separado. A minha impressão é de que nesse lugar entra-se para se estar. À vontade, inteiro e em respeito.

Aos que desconhecem, explico: N.O.I.A é um cursinho preparatório para as provas de ingresso às universidades. Redutora a definição, porque este é um cursinho muito particular, que parte da "fé inabalável na humanidade", coisa boa de se ouvir da professora de biologia, como se um resumo do porquê estar aqui, e ser. A mesma professora oferece-me de bandeja o título desta crônica: as vias metabólicas. Ela fala das bactérias, eu sei, mas acho que no íntimo ela me diz outra coisa; vou à procura: "vias metabólicas são reações químicas que servem de substrato à reação que lhes sucede". É isso, este entrelugar: imensas reações químicas que servirão de substrato à reação que virá, às descobertas que eclodirão, às pessoas que se encontrarão e se reconhecerão. Às vezes tateando por entre os calos e as sutilezas que a vida inteira oferece, este entrelugar vai muito além da preparação para uma prova, e é aí que reside seu encantamento (além do fato de cumprir a meta dos vestibulares, sejamos pragmáticos também!). Aqui, ouço, a tônica é "não desistir nunca de nenhum aluno", e é aí que as reações que as vias metabólicas geraram mostram-se em todo o seu esplendor, a interdependência palpável nas palavras que se dizem. Sou professora há anos, estou habituada às falas tonitroantes e às intenções mais que positivas que não conseguem deslanchar na direção do concreto; mas não há tonitroância, aqui, antes reconhecimento de atitude necessária, ainda que custe ter de mexer na própria crença. "Num círculo de 360º", ouço logo a seguir, "por que agarrar-se a apenas um grau?" Porque desistir de parte? Porque abdicar da possibilidade de ser inteiro? Porque não se reinventar a partir do encontro com o outro?

Articulam-se polaridades e dá-se atenção aos "pequenos cheiros" de cada dia, neste entrelugar. Está-se atento e alerta. Aqui palpita um mundo que se quer observado, palpita a paixão pelo conhecimento, palpita o encantamento por conhecer o mundo em que se vive e o outro com quem se vive. Surpreendente, convenhamos, que este entrelugar seja um cursinho, espaço por natureza duro e mono-motivado. Há esperança, fé e garra por trás deste espaço-lugar de entre-morar: há "um vulcão em erupção, em função não do que somos, mas daquilo que quer se fazer em nós". E vejo que esse sentimento é motor do silêncio que se instaura, e vejo e sinto: este é o entrelugar que eu buscava. A todas as palavras que ouvi e mastiguei, nessa digestão que me alegra o dia e me dá sentido à alma, junto uma, que devolvo a todos os que me doaram as suas palavras hoje: gratidão.


28/01/2013

Coisas que parecem iguais

Não sou espírita, como não sou muitas outras coisas que me interessam, e das quais me aproximo de vez em quando. É bom, por vezes, precisar de ajuda e recebê-la, pelos caminhos que for; tanto quanto oferecê-la a quem dela precisa. Nessas trocas, nem sempre iguais, nem sempre equivalentes, há momentos em que é preciso pedir socorro, atitude que se aprende a ter, acho que não se nasce sabendo. O socorro é pedido, e depois é ficar atento, porque ele vem, na forma que escolher. Ontem, por exemplo, a meio de uma palestra no centro espírita que tenho frequentado, soube que há uma grande diferença entre acreditar e ter fé. Mas grande mesmo.

Voltei para casa pensando nisso, o que normalmente, dentro desta minha estrutura imperfeita, resulta ser positivo. No fundo, acreditar não é difícil. Primeiro porque, como se diz, cada um acredita no que quer, o que não deve incorrer em grandes prejuízos para ninguém. Há quem acredite em vida extraterrestre, em reencarnação, em comunicação entre espécies, em gnomos e fadas. Escolhe-se no que se acredita. Seja da boca pra fora ou da boca pra dentro, acreditar não demanda muito mais do que observar e anuir, consentir, concordar. Quase que uma atividade passiva. Acreditar nos outros: fácil, desde que não criemos expectativas que eles não possam atender e nem imagens a que não possam corresponder. E, assim como se acredita, é fácil desacreditar. Fácil e rápido.

Já a fé é feita de material distinto. A fé implica em viver conforme aquilo em que se acredita.  É ação, a fé. Decisão. Compromisso. Pode-se acreditar, mas não ter fé. Pode-se acreditar, mas não se conduzir conforme aquilo em que se acredita. Pode-se ter fé na vida extraplanetária, mas não considerar, no corriqueiro dia a dia, que há gente diferente da gente pululando por essas galáxias afora, e agir consoante o que se considera, conduzindo os próprios passos a partir do que eles podem impactar essa vida na qual se acredita - e se tem fé. Pode-se ter fé na reencarnação, mas não se conduzir de acordo com os pressupostos (dizia o palestrante, que se apresentou apenas como Paulo) que a reencarnação considera - pode-se fazer aos outros o que não se gosta que façam a si, pode-se desprezar o preceito fundamental da fraternidade, aquele que nos une a todos e permite que sintamos as dores alheias como se fossem as nossas próprias, esquecendo de fazer o que estiver ao alcance para reduzi-las ou aplacá-las. Pode-se acreditar na comunicação entre as espécies (e o assunto está fresco porque terminei de ler o livro da Sheila Waligora, "Eu falo, tu falas, eles falam..."), mas viver sem que esse acreditar nos faça agir e viver considerando e evitando aquilo que as magoa, que as insulta, que as agride, que as diminui na sua condição de seres viventes. E nas formas mais simples: posso acreditar que meu cachorro me entende quando falo serena com ele, mas esqueço-me e dou-lhe um grito quando ele pula em cima de mim.

Claro que ter fé é mil vezes mais difícil, mas muito mais, do que acreditar. Talvez porque ter fé seja, antes de qualquer coisa, compromisso, e nós tenhamos tanta, mas tanta dificuldade de nos compromissarmos, de abdicarmos de nós mesmos em função de outro. A fé num outro que demanda olhar, admirar, acompanhar e ser-lhe presente. Para mim (porque não há como generalizar) a fé no outro, nesse outro em que acredito porque está bem diante de mim e existe, e palpita, e me reconhece, demanda ver-lhe a parcela luz, a parcela divina que antecede a sua própria existência. Demanda acreditar que antes de tudo é matéria de irradiação luminosa, e demanda agir consoante o que acredito. Por isso, não posso barrar-lhe caminhos, não posso empedrar sua estrada, não posso podar os seus galhos nem quebrar-lhe os seus membros. O que posso é estar aqui onde estou, que aqui me encontrará quando lhe for necessário.


Imagem: Antonieta Miranda


22/01/2013

Do simbólico

Dia desses,  fiquei com vontade de comprar lã para tricotar. Há tempos que uma vontade dessas não aparecia. Comprei. Gosto de tricô desde pequena. Vivi a infância cheia de peças por acabar, casacos e coletes e meias começados e nunca terminados - a vida tinha a peculiaridade de me perseguir com novos brilhos e insistências, desviando-me dos meus reais e bem intencionados propósitos. Minha avó, observadora, tentou inutilmente ensinar-me crochê, achando que talvez me fosse mais fácil e rápido, mas desde o começo desgostei-me com aquela pobre agulha solitária; mesmo que não chegasse ao fim da peça, preferia o par de agulhas conversando entre si através do fio em transformação. Eram bonitas, as peças de crochê que ela fazia e com as quais me tentava, mas no fundo também ela preferia tricotar casacos e mantas e xales para toda a sua grande família. Também ela ouvia o diálogo silencioso entre as agulhas, como se fossem pessoas construindo afetos, e o fio entre elas a matéria prima da troca.

Tenho agora um par de agulhas em mãos. Iguais, do mesmo tamanho e espessura, e do mesmo material e cor. Tenho também um fio, lã que quis macia ao toque, duas cores entrelaçadas que quase se escondem uma na outra, porque querem desejar-se, talvez, invisíveis. Não creio que vá desmanchar nada do que tecer com estas duas agulhas, mesmo que estranhamente me apeteça a paciência e a espera de uma Penélope que trocasse o tear pelo tricô, mas presto-lhes atenção: por serem da mesma grossura, oferecem-me um tecido harmonioso, sem falhas nem inconsistências. São congruentes, estas agulhas. Interpretam o fio que se lhes oferece, trabalham-no sem esforço mas com constância e firmeza; não o largam, nem o quebram; não o apertam, nem o deixam frouxo. Minha avó dizia-me que nem uma coisa nem outra fazem bem, um ponto firme e solto ao mesmo tempo é o que se quer no tricô e na vida.

E o fio estende-se, uma metamorfose tecida sob o movimento articulado das agulhas. Cresce em comprimento e largura, deixando-se entrelaçar nesse diálogo sem palavras que ouço tilintar entre os meus dedos. Minha avó tricotava à noite, assim como rezava após o almoço. Terço entre os dedos, parecia dormitar, mas meditava. Em um e outro momento, eu invariavelmente mergulhava ao seu lado num livro, atividade que preferia a qualquer outra. Mas de vez em quando levantava os olhos e observava-a, demorava-me nos movimentos de seus lábios e de seus dedos, como se soubesse que ambos momentos eram semelhantes e eu precisaria da lembrança mais tarde, para mergulhar dentro de mim mesma de uma ou outra forma.

Nesse universo palpável que nos rodeia, onde tudo é símbolo de realidades mais profundas e internas, que acessamos ou não dependendo do quanto olhamos para as coisas com olhos de ver, são-me oferecidas estas agulhas, este fio, este tecido terminado. São chaves, capacidades dormentes em minhas mãos. Uso a mesma estratégia de menina: levanto os olhos e observo, em silêncio. A peça pronta que, dias depois, seguro nas mãos, porque não sou mais criança e aprendi a terminar o que começo, é a resposta à pergunta que faço.




11/01/2013

Limpeza

Passei um bom tempo em Minas nesta mudança de ano, revisitando espaços e práticas e pessoas que não via há tempos. Em Figueira, onde as coisas mudam conforme a necessidade se apresenta, coisa muito saudável e rara, reconheci um pedaço de passado que reincorporei à minha vida. Em meio às mudanças e às novas determinações nesse lugar inusitado, algumas coisas mantêm-se como eram há 20 anos, e deram-me uma sensação reconfortante de "nem tudo mudou na vida".

Um exemplo. Em Figueira, assim como em outros lugares, fala-se de "harmonizar" os espaços e as coisas quando se quer dizer limpar e arrumar. São ações práticas, importantes e indispensáveis à vida humana sobre o planeta. Eu não tenho nada contra qualquer uma das três palavras, mas concordo que "limpeza" e "arrumação" soem mais entediantes do que "harmonização". Percebo que as pessoas sorriem com os olhos quando dizem "vamos harmonizar os banheiros" ou "acabei de harmonizar o armário das vassouras", e provavelmente a mudança de palavra ajude a perceber a tarefa também de uma nova forma, a abrir uma nova janela na superfície cotidiana da vida. Uma consciência mais consoante com o propósito geral de Figueira, que é, entre outras coisas, manter a consciência naquilo que se faz. 

Hoje de manhã, "harmonizando" a casa, dispus-me a essa forma de presença. Limpei e arrumei, feliz da vida, retirando de pelo meio os empecilhos que podem atrapalhar o dia a dia. São coisas às vezes invisíveis, poluição mental transformada em cantos impenetráveis.

Atenta, vou pensando que há uma medida, nessa ação toda - não quero limpar a ponto de perder de dentro das coisas aquilo que são por causa do que passou por elas. Há os cheiros que é preciso preservar - que cheire a limpo, mas que não desapareça o cheiro adquirido com a vida. Há as pequenas manchas que se limpam, mas não de todo - como as rugas, são marcas do que viveu. Passo de um cômodo ao outro, e sou comedida em algumas ações, porque quero, muito, preservar a história.

Termino, e olho em volta. As coisas que ficaram, tal como ficaram (e que vou chamar logo mais de lembranças), olham-me de volta com um sorriso agradecido, porque não as tirei delas mesmas; um travesseiro deixou de ser um travesseiro, um copo deixou de ser um copo, até um cabo de vassoura deixou de ser um cabo de vassoura, porque há histórias marcadas em tudo, e reconheço-as pelas marcas, que às vezes são manchas, às vezes amassados, às vezes uma trinca por onde o passado chega e me atinge, inteiro e verdadeiro. As presenças alheias estão impressas até o mais fundo das coisas, que é onde vive o espírito com força e verdade. Por isso cuido das coisas, por isso as limpo mas sem as perder, por isso as olho e as afago, porque a vida pulsa dentro delas, assim como pulsa dentro de mim, que as limpo e acolho dentro das minhas mãos abertas e gratas.


Foto: Tai Ribeiro

05/01/2013

Novo ano

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes*. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que são invisíveis mas podem sentir-se. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio. 

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis  da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas "mãos de dedos que se abrem e fecham como leques" descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara.  E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

A todos, um feliz ano novo, cheio de oportunidades de olhar e sentir o outro na sua dor e na sua alegria.


*Todos os nomes usados são fictícios. Já as histórias não - e podiam ser as minhas ou as suas.

20/12/2012

Eliazar


Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.

Sustentou mulher e filhos com a venda das músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa entre melodia e palavra. O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as músicas que escreveu e viraram sucesso na voz de Jerry Adriani.

Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.

Trabalha na lavanderia montada dentro dos muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.

Recebe a visita da mulher muito de vez em quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que entretanto chegaram. Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo conseguiu.

Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar pra polícia. Achava bonito, usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês. Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns desfilados.

No dia em que foi preso, a mulher apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:

- O senhor veja o que vão fazer com ele aí dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro que querem me devolver.

Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o aumentam em uma década de anos.

Seu Eliazar serviu durante anos como achou que devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas. Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e a mulher também.

No dia em que prendeu o traficante, não havia trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou: os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos nossos”.

Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em que foi preso, tarde da noite. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também, a filha ainda faltava. Sai pra procurá-la. Aflito. Encontra-a na esquina antes de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a liberdade.

Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito, não sabe como suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com uma marca nas costas.  Escreve pouco nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia. Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco aberto no centro do peito.

(Os versos em itálico são de autoria do poeta Atiloa da Ribeira. 
No mais, qualquer semelhança é absoluta coincidência. As personagens são ficcionais.)