05/01/2013

Novo ano

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes*. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que são invisíveis mas podem sentir-se. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio. 

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis  da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas "mãos de dedos que se abrem e fecham como leques" descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara.  E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

A todos, um feliz ano novo, cheio de oportunidades de olhar e sentir o outro na sua dor e na sua alegria.


*Todos os nomes usados são fictícios. Já as histórias não - e podiam ser as minhas ou as suas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário