02/01/2012

Livros dentro dos livros


Escrever uma história faz desaguar uma imensidão de outras histórias. Estou tentando chegar a qualquer estágio que possa chamar de “finalizado” de uma história longa, mas a cada dia infiltram-se dentro de mim novas histórias, ligadas àquela, e com elas a necessidade de saber algo que não sei – portanto, lá vou pesquisar, e assim o final cada vez se desaproxima mais de mim. Ainda não sei se é uma vantagem ou um inconveniente.

Procurar informações é coisa que gosto realmente de fazer. Em tempos de internet é uma alegria só, tudo a quase só um clique – dois ou três, na verdade, porque é preciso checar e rechecar as informações conseguidas. Mas é uma diversão só do mesmo jeito, até porque eu me pego rindo o tempo inteiro, feliz de ver o tamanho do quanto o ser humano é capaz de interessar-se por coisas tão variadas, e compartilhar o que sabe com os demais.

Dentro da história que me tem em mãos (porque já passei do ponto em que eu (achava que) a tinha nas minhas próprias), aparece-me de repente um livro antigo, com data de impressão de 1888, um espécime daqueles que precisavam ser abertos pelos seus primeiros donos, com aquelas faquinhas que os avôs burgueses ofereciam de presente de aniversário a seus netos nos natais de meados do século XIX – o status da leitura alcançava cada vez mais pessoas à época, e as tais faquinhas (cabo de osso, cabo de madeira, cabo de pedraria trabalhada) foram um hit das compras naqueles tempos.

Os cortes dessas faquinhas deixavam uma peculiar textura no corte das folhas, irregular e manual, e é justamente para essa sensação concreta que eu preciso achar uma palavra, que a um só tempo descreva a textura, o sentimento, a tepidez desse tempo gasto em abrir folha a folha a história de uma história, e deixar essa marca inconfundível no corte de frente do livro.

Por isso a pesquisa: que terão dito outros sobre essa impressão, essa percepção tátil tão sutil e ao mesmo tempo tão potente? Eu mesma abri vários livros dessa forma, de Júlio Dinis a Vitorino Nemésio, mesmo tendo o século XIX beeeeem às minhas costas – mas não consigo evocar em uma palavra o sentimento nostálgico que me provoca lembrar o desejo de não antecipar o que vinha depois, abrindo mão de abrir tudo ao mesmo tempo.

Nessa pesquisa, descubro um alfarrabista dedicado aos livros raros: entre outras coisas, tem à venda um João Cabral, “O engenheiro”, autografado e dedicado (carinhosamente dedicado, diga-se de passagem) por R$2.900,; um Guimarães, um Mário de Andrade, todos eles autografados e a esses preços que só podem me fazer mesmo sorrir... Algumas dedicatórias mais entusiasmadas (mais caras); outras mais protocolares (entre as caras, as mais baratas). Descubro também uma pequena gráfica do norte do Rio de Janeiro que publica tiragens pequenas com o detalhe do “primor da perfeição”, pago conforme: uma luxúria de possibilidades de acabamento, de papeis, de dobraduras, de cortes, de aberturas, de fechos, de facas especiais que recortam silhuetas também especiais em qualquer tipo de papel.

O livro do meu livro aguarda pacientemente na janela aberta do editor de textos, piscando aqui embaixo, doido pra chamar a minha atenção para o que deve ser o centro inequívoco do meu interesse e trabalho – um piscar tranquilo, certo de que em algum momento desse prolixo divagar pelas informações do mundo virtual eu me lembrarei de que ele precisa de uma palavra para se tornar visível. Para ser real. Para permitir que eu feche os olhos e veja o onde, o como e o com quem. Para que eu possa tornar-me papel e deixar de ser sangue incandescente nas artérias.

(Termino sem a palavra... se houver quem queira colaborar, será uma alegria!)
(A foto é de um projeto do blog 3 R's :

22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

08/12/2011

Ensaio


Hoje assombra-me um coração conciso. Fino como tapete. Sintético como verbete de dicionário. Espremo-o, e o suco é pouco. Não o provo, porque desconfio que possa amargar-me o tempo. Salvam-me um lápis denso, o papel, as palavras que me rondam. Esvoaçam em volta de mim como noturnos insetos perdidos. (Nessa ordem é o seu esvoaçar: na noite, a asa, o desestino.)

Acendo-me e eles agitam-se mais; posso ver-lhes, através do opaco que se instala no ar ao redor, as asas - e a letra com que iniciam seu nome. Só assim meu coração sossega. Olha-se no espelho e diz-se: calma. Encolhe-se para caber no tamanho da minha vida e diz-se: calma. Respira e avança despreocupado da vidraça estilhaçada que lhe serve de chão e diz-se: calma. Olha-me com seu olho fixo, rebrilham fé e paciência caninas, e diz-se: calma.

Pode ser que seja o Mercúrio retrógrado. O inferno astral. A lua chegando ao seu desconfortável pleno. O dia de sol enevoado. A vida cheia de coisas que não cabem nos poucos minutos com que se faz uma hora. O desencaixe da alma. A saudade. A falta dela. Os fechamentos de um fim de ano.

Mas é só um coração conciso, apertado entre o sentido e o prendido, o vazio e o transbordante, a firmeza e a vontade gritante de se esvair como faz o sangue cáustico a inundá-lo, indiferente à vida que nada entende.

05/12/2011

Da felicidade


El hombre es una realidad utópica, que es y no es, que es lo que todavía no es y tal vez no pueda ser. Consiste en ser una realidad proyectiva, futuriza, deseante, nunca lograda, nunca conclusa, en suma, utópica. Nuestra vida consiste en el esfuerzo por lograr parcelas, islas de felicidad, anticipaciones de la felicidad plena. Y ese intento de buscar la felicidad se nutre de ilusión, la cual, es ya una forma de felicidad. (J.Marías)

Acontece-me às vezes. Ouço um recorte de conversa, um pedaço de fala, um fio dito por alguém e de repente as palavras tomam-me de assalto; destacam-se das demais, e ficam assim, flutuando à minha frente, e eu à mercê delas. Acompanham-me se saio ou entro, entranham-me a memória e tudo o que for espaço ocioso ao longo dos dias. Se deixo de pensar em outras coisas, penso nelas. Acorrem-me várias vezes por detrás do que faço, horas depois ainda estão ali, fazendo-me olhar para a vida como se acabasse de entrar nela. São, durante um tempo, o meu reduto de felicidade.


Às vezes, juntam-se a outras e transformam-se em textos mais longos. Outras, vivem sozinhas durante anos, e tenho aprendido a não as gastar com a frequência que pode gastar alguns amores, mesmo sabendo que é de ausências que morre a maioria. Troco de lentes para podê-las perceber com olhos alheios. Como dizem os espanhóis, “Nada es verdad ni mentira, todo depende del cristal com que se mira”.

Mais às vezes ainda, acontece-me de, num mesmo dia, num mesmo encontro, num mesmo espaço de poucas horas, ser agraciada com várias palavras. Assim foi, neste sábado, nos 81 anos da minha amiga Marina.

Marina ensinou-me, ao longo dos últimos 30 anos, uma porção de coisas. A como dobrar as fraldas para conseguir o máximo de absorção possível (e o mínimo de trocas que vem junto!); a curar panelas de pedra; a preparar frutas em calda; a olhar para os demais com a vista clara; a apreciar as rugas e os cabelos brancos como vincos de memória; a ser-se quem se é, desagrade ou não a quem estiver ao lado; a rir da vida quando ela segue por onde nem suspeitávamos; a curar as feridas sem as lamber; a gostar de pechinchas; a ver a vida com os olhos sadios de quem gosta dela por inteiro. Marina fez 81 anos e fez uma festa: todas as comidas, todos os filhos e todos os amigos, que se querem de todas as idades e de todas as latitudes, na variedade que Marina aprecia. Poesia, música, filosofia, ao longo de uma noite que se fez enorme como é o coração de Marina. Às 4 da manhã, ainda estava animada. Por ela, nem teríamos terminado.

No meio de tudo isso, três palavras que, ainda não sei por que, caminham dentro de mim como caminha, dispersa pelos meus poros, a circulação acelerada do sangue do meu corpo.

“Moro sem forro”, dizia-me Taibo.

E eu não consegui ouvir o resto. Ou ouvi, mas não me lembro, porque “moro sem forro” avançou para dentro de mim como uma onda imensa de águas cheias de estrelas, reluzindo como uma pérola recém vislumbrada. E tomou-me o resto da noite. Parece-me que, para escapar do “moro sem forro”, tentei prender-me a outras coisas das tantas que esse senhor de também 81 anos de idade ofereceu nessa noite: o ditado espanhol no forte sotaque galego dos que nascem em Vigo, uma frase bonita sobre as antecipações da felicidade plena que são os nossos momentos felizes. (Como o que me deixa, no dia seguinte, o coração em relevo agreste e quente, só por uma troca de olhar inesperada e súbita, que sequer pode ser, mas é.)

Mas eu já estava afogada de felicidade nesse “moro sem forro”, que sobe e desce em mim desde então. De outra forma que não a concreta, da casa de telha vã de Taibo na serra da Mantiqueira, sem ter diante de mim as montanhas que seus olhos saúdam ao acordar, também eu moro sem forro. Resisto às lajes e aos lambris que me separem das telhas. Quero ver os caibros e as ripas que sustentam o que impede que chova em mim, e não quero a superfície lisa e reta, nem a inclinação suave do cedrinho que pareça proteger-me do que vem do alto. O vento que atravessa silvando as frestas das minhas telhas mantém-me acordada e, como Taibo, gosto de acordar de manhã com a brisa que atravessa o telhado e vem curiosa bater em meu rosto. 





28/11/2011

Jornal de domingo no primeiro dia de Advento


Neste primeiro domingo de Advento, abro a Folha sem grandes esperanças. Embora seja jornal de domingo e há anos eu goste dos jornais de domingo, onde seja, na língua que seja. Mesmo que metade da sua massa seja de anúncios classificados, as análises literárias tendem a aparecer nesse dia, assim como as resenhas que muitas vezes orientam onde gasto meu dinheiro, os cronistas e articulistas que se publicam aos domingos e só aos domingos... Entre outras coisas.

Vou direto, normalmente, aos cadernos que prefiro; além da Ilustrada e da Ilustríssima, o Cotidiano.  Provavelmente porque seja aí que encontre, via de regra, o dia a dia das pessoas que se querem comuns, aqueles dramas pequenos cortando vidas simples em pedaços complexos. Abro o caderno de trás pra frente, que é como gosto de ler jornal: passo os olhos pelo percurso inverso de quem o montou, divirto-me lendo primeiro o que o editor quis que se lesse por último. Longe de exercer meu direito a ser do contra, mais perto da vontade de querer nortear-me eu mesma nas minhas escolhas.

Enfim, vou lendo. Descubro, na página 7, que esta é a última semana da coluna impressa do Gilberto Dimenstein. Ouço aqui ao lado, assim que comento o quanto gostei, que é controverso, olha lá... Mas o sujeito escreve realmente bem, num tom de despedida sincera e emocionada num texto da estatura dos seus melhores. Serendipity é o mote da sua gratidão pela Folha e pelo espaço que pôde ocupar dentro dela, o mote para a breve revisitação da própria vida: os prêmios coloca-os a um lado; a outro, o “encanto de transformar o acaso em aprendizado”, e isso é serendipity, a sua “palavra mais bonita”. Demoro a retomar a leitura e a descobrir por onde anda esse sujeito que ajudou a adolescente Esmeralda a colocar em forma de livro a sua vida dentro do crack, leitura que compartilhei com muitos alunos que ainda hoje se lembram dos seus relatos cáusticos e ásperos. Demoro a chegar ao final. E o final é na verdade o princípio, aquilo que gostaria de dizer a quem está, como Gilberto, de partida: “para viver experiências, sempre estamos nos despedindo de alguma coisa de que gostamos”.

E para garantir que eu não me esqueça de levar a mensagem adiante, antes mesmo de agarrar em um dos cadernos que povoam a minha mochila, retrocedo duas ou três páginas e quem me sorri do outro lado na negra tinta de gráfica é o poeta Sergio Vaz, em mais uma surpresa que vem me nutrir este início de Advento que apenas inicia. É com apreço, com encanto, com admiração que gosto desse homem. O seu sorriso largo, que não está na foto mas na minha memória, vai atravessar-me, tenho certeza, o dia inteiro.Um sorriso de Morte e Vida daqui a pouco, um Severino feito tarde de chuva que não veio, uma voz a levantar-se na planura da vida pra gritar tão alto, de cima da laje da sua/nossa/de todos Cooperifa, que quase consigo ouvi-lo daqui, tão longe da agreste periferia paulistana:

No caminho do crer e não crer
Vivo na dúvida do milagre
Entre as brumas da uva e do vinho
Sou eu quem destila o vinagre.

Caminho no chão em busca do céu
Num fogo e água que não tem fim

Porque
Não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.


17/11/2011

"Um pouco de possível, senão sufoco"


8h
“Aos tropeços.” Foi assim que me responderam hoje quando quis saber como ia a vida. Tinha razão o meu interlocutor: há dias que vão assim, aos tropeços, num sobressalto, numa espécie silenciosa de grito, uma inquietação cansativa que só termina quando o sono vence.  Eu tenho uma cada vez menor tolerância a dias assim, e hoje infelizmente é um deles.

9h30
Quando acontece, vou atrás de palavras. Às vezes com uma rede de borboletas, mas isso é quando as minhas mãos são mais leves que as nuvens. Hoje, caço as palavras de forma diferente, uma espécie de guerrilha em que preciso pular-lhes em cima, feito leoa disposta a alimentar os filhotes apesar do que for. Digamos que os filhotes são os meus neurônios, e a carne das palavras o sangue que os refaz.

12h 
Poucas pessoas conseguem acalmar-me. O melhor a fazer (aqui em casa sabem-no bem) é deixaram-me onde estou, sem grandes perguntas, muito menos cobranças, deixemos as dúvidas e os questionamentos para amanhã. Porque, também, assim como vem, vai. E não: não é menopausa, porque são anos e anos de tropeçadas irregulares. Algumas coisas ativam-me a inquietude, e nada têm a ver com hormônios. Não: um de meus problemas é estar cansada de esperar.

14h30
Primeiras presas do dia: palavras que derivam de pathe/sentimento, transformado pelos romanos em pati/suportar. Derivadas: paciência; paixão; empatia; padecer. Pausa e silêncio. Assuntos para outro dia. As palavras olham-me como eu a elas: “guardo-vos numa gaveta para ter-vos em outro momento”.

19h00 
Últimas presas do dia: palavras de Gilles Deleuze, que ainda é gentil o suficiente para me oferecer de bandeja as que dão título a esta crônica. Passo o dia à procura e eis que me encontro: da sua cadeira estofada, com apenas 1/3 de seus pulmões funcionando, esse homem de corpo-sem-órgãos diz-me, assim como se fosse óbvio, que “se não se pode captar a pequena marca de loucura de alguém, não se pode gostar desse alguém... [porque] é este lado que interessa (...) o ponto de demência de alguém ”. Inversão do lugar comum em que se acotovelam almas gêmeas; essas que compartilham, irmanadas; que se aproximam na obviedade do que é sempre o mesmo dia sem surpresas. Hoje, pelo menos, prefiro a outra imagem, a desconstruída, desconexa, ilógica, assustadora, impossível de ser manipulada por sua qualidade única e irrepetível. Gosto disso. Um pouco do possível, para que não sufoque. Agora que termina, o dia  melhora.

15/11/2011

De pé, com a dor na mão

(a propósito da exposição de Alberto Pinheiro no MAC de Botucatu)

Aprendi hoje que resistência à dor é a diferença entre dois valores: o limiar de dor e o limiar de tolerância. O primeiro é aquele ponto ou momento em que se reconhece como doloroso um estímulo (por exemplo, água a 44°C para a maioria dos mamíferos). O segundo, o momento em que esse estímulo alcança tal intensidade que deixa de ser aceitavelmente tolerado (no mesmo exemplo, água a 48°C). A resistência à dor é a diferença entre os dois limiares. A dor a que podemos aceitavelmente resistir. Dores de parto podem estar muito próximas a esse limiar de tolerância, e portanto ir além do que entendemos como resistência à dor. Cheguei à conclusão, depois de sete dessas experiências que Santo Agostinho dizia livrarem-nos a nós, mulheres, da impureza que está na origem do ser gerado, de que o limiar de tolerância obedece também à nossa capacidade de controle, acomodação, aceitação. Assim como obedece aos decretos silenciosos da sociedade em que nascemos e daquela que escolhemos ter como nossa, e por isso assumimos os riscos de a querer transformar. 

A exposição em cartaz no MAC de Botucatu, de Alberto Pinheiro, fala-me dessa resistência; sem palavras e sintomaticamente com muito ferro. Em cada peça, os dois limiares nus e crus: a dor que se aguenta e a que se torna insuportável. O resultado da exposição é a esperança: a resistência à dor; o tomar a transformação nas próprias mãos mesmo quando por entre elas parece escapar-se tudo.

Fiquei presa, muito tempo, diante da figura de uma arqueira, logo à entrada. Voltei mais tarde outra vez, porque a figura diz-me algo. Sim, o pássaro do pré sal também me diz, assim como o namoro sob a lua e a família da dependência química sob um chão de ilusão transparente. Mas a arqueira, a sua leveza, a sua precisão, a sua procura do alvo necessário, prendem-me o olhar. Estaco diante dela e diante da dor que a põe de pé e a faz levantar o arco: é a sua resistência que me fez voltar.

Impressionam-me, aqui e ali, as possibilidades infinitas de transformação da realidade em arte com que o Alberto vislumbra o oculto. Como desoculta e transfigura a verdade dura do ferro e encontra um mundo novo ao seu redor. Na matéria que é, pelas suas mãos, retornada ao seu caráter de espírito.

Conviver com o Alberto, seja aqui por meio das suas peças, seja ao vivo quando o encontro, provoca-me a mesma sensação: a da premência do olhar direto e em frente, solene e compassivo diante da quebra alheia, da desistência, da dor e de todos os seus limiares. Um olhar que apreende do outro mais a coragem da falta do que a falta da coragem. Porque é possível agrupar as palavras conforme queiramos, assim como é possível agrupar as nossas dores e colocá-las a serviço do outro. Ou não. O Alberto escolhe o sim. E eu escrevo para agradecer-lhe por isso.




Exposição “Metamorfose”, de Alberto Pinheiro
MAC - Museu de Arte Contemporânea Itajahy Martins - Av. D. Lúcio, 755
Terça a sexta das 9h às 17h; sábado, domingo e feriado das 12h às 17h
Até 4 de dezembro

12/11/2011

20 maneiras de responder a um email

Dia desses, uma amiga querida enfrentou um terrível problema. Enviou um email plenamente embaraçoso de tão honesto e ficou esperando resposta. Esperou. Esperou. Esperou. Seis dias, pelo que entendi, sem chance de descanso no sétimo, pelo que me parece.

Sabe um daqueles emails que doem se não são respondidos? Fiquei triste de vê-la nesse estado e pensei: "caramba, é nessas horas que se exerce a empatia".


E lá fui eu ser empática.


Tentei colocar-me no lugar dela: escrever um email que, considerando as circunstâncias, mais parecesse um quadro de Dali em forma de letras.  Mas quem nunca escreveu emails assim? Como aqueles que Pessoa, se encarnasse aqui ao meu lado, escreveria hoje achando ridículos, mesmo que perfeitamente consciente que ridículo mesmo é quem nunca os escreve...?


Coloquei-me também no lugar do destinatário, que na verdade mal conheço, e não resultou. 
Voltei à minha amiga; e decidi ajudá-la, enviando, a esse tal seu amigo, ideias de como responder, caso o problema fosse esse. Se puderem ser aproveitadas por outras pessoas enfrentando problemas semelhantes... 


Caro X (porque eu não vou entregar nem amiga nem sujeito, é claro): respostas possíveis ao email que você recebeu:


1. Querida fulana: estou sem palavras. (o mais votado do júri popular)
2. Cara fulana, por favor exclua-me dos seus contatos, por favor. (considerada a mais sincera)
3. Fulana, minha filha, vc é muito é sem noção... (enfim...)
4. Fulana, PQP, vai amarrar sua égua noutro lugar. (eu, no caso, riria...)
5. Literária, dos vizinhos ao lado:
         Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo
         Lo que me gusta de tu sexo es la boca
         Lo que me gusta de tu boca es la lengua
         Lo que me gusta de tu lengua es la palabra
(fala sério... pensou que ia ser só bobagem, né? Nada disso: Julio Cortázar!)
6. Fulana, eu gostaria muuuuuuuito de poder responder, mas não posso. (claro como a água turva)
7. Você não quer tomar um café um dia desses? eu não tou fazendo nada, e nem vc também, faz mal bater um papo assim gostoso com alguém? (pq a minha amiga é dos anos 80 e isso seria o êxtase!)
8. Fulana, meu anjo: vc já pensou em fazer terapia? Não terá errado o tanto de gotinhas do remedinho?
9. tum tum tum tum... o número para onde vc discou está temporariamente fora de serviço...(evasivo, mas bem compreensível...)
10. Eu te conheço? (estilo sacana...)
11. Tá precisando de serviço, é? (grosso)
12. Viu as manchetes da Folha hoje? (mudança de assunto)
13. Minha religião não permite respostas a perguntas desse tipo, desculpe...
14. Olha... vou te ensinar como não dançar bolero, tá?: dois pra lá... nenhum pra cá... (bem metafórico)
15. ééé... então... sabe... hmmm (aquela que não compromete)
16. Eu não entendi, vc pode refazer duas colocações? (acadêmico)
17. Ó... perdi meu óculos! (providencial)
18. Mensagem padrão: o destinatário encontra-se em férias em local desconhecido e inacessível entre o brasil e o chile. mensagem automática. por favor NÃO RESPONDA (entendeu, né?)
19.Ó xente, fiquei até vexado, bichinha...
20. Veja bem: há questões esotéricas panteosocráticas da rebimbela do segundo corpo da alma transversal que precisam ser melhor exploradas nesse âmbito complexo. 


21. Agora: boa mesmo, ainda mais chegando a esse número 21 que expressa a maioridade de um sujeito, é a pessoa responder com aquilo que está dentro de seu coração, e que pode agora ocupar o espaço em branco de uma página de email.

 
Com certeza essa seria a que a minha amiga mais gostaria de receber.

27/10/2011

Provas para pinguins

Fiquei particularmente tocada pelo pinguim do cartum ao lado. Enquanto os demais, apesar da expressão atônita, tentam entender o que lhes diz o senhor sentado atrás da mesa, o coitado nem olha pra ele, tão interessado está no seu colega paquiderme ao lado, doido pra puxar uma prosa. A cena seguinte, se houvesse, certamente incluiria um sobrolho franzido (do senhor atrás da mesa) e o pinguim remetido ao fundo da sala, perdão do campo, sozinho ele com o ar em volta. 


Ao final da 4ª classe primária, em 1974, eu estava tal qual o pinguim aí em cima. Para progredir para a classe seguinte, e ingressar no então ensino secundário, era preciso que, metaforicamente, escalasse uma árvore tendo como ferramentas duas nadadeiras, imensa curiosidade e essa vontade de mais conhecer os colegas sentados ao meu lado do que qualquer outra coisa. Já se percebe onde eu fui parar naquela sala.

Os exames de admissão em Portugal, assim como no Brasil, eram fundamentais para o caminho escolar. Se bem me lembro, esse foi o último ano em que aconteceram por lá. Constavam de uma prova de aritmética e geometria que devia ter uma duração de uns quarenta e cinco (longuíssimos) minutos, seguida de uma outra, de ditado e redação (a parte fácil). Terminada essa sessão, o júri se reunia e promulgava a sentença: "mau", "suficiente" ou "bom". "Mau" significava que podia voltar pra casa naquele instante mesmo; os “bons” e os “assim-assim” ficavam e precisavam encarar a prova oral. Suplício completo: uma banca na frente; dois professores perguntando, outros dois tomando misteriosas notas – que em pouco tempo se convertiam em mau, bom ou suficiente. Não me lembro nem das notas nem das perguntas, mas no ano seguinte estava uma classe adiante.

Tínhamos todos 9 anos de idade – um ótimo momento para descobrir que o mundo é uma coisa e você outra. Um desconforto imenso. E enormes aprendizados. Aprende-se rapidamente, por exemplo, a reconhecer que nem todos são pinguins, nem elefantes, nem peixes, nem macacos. Há enguias, há águias, há preguiças, até antas.  Já o que fazer com isso demora um pouco mais. Dependendo da espécie, dura a vida toda.

Aprende-se também a esconder a natureza pinguim: passa-se a gostar de água quente, deixa-se de comer peixe, anda-se de quatro, prefere-se viver sozinho – e depois descobre-se que não funciona. Que quando você é um pinguim, você é um pinguim. Tenta-se outra coisa: viver agora rodeada de pinguins, sem mais nada para atrapalhar. Também não: quanta monotonia, que falta dos lobos do mar, das focas, das aves que o Darwin veio estudar!

Por fim, não resta muito a não ser aceitar a própria condição e crescer como pinguim, nesse andar descompassado e esse ar de estar sempre pronto pra festa. Aquelas coisas que um olhar atento, quando existe, desmente em dois tempos. Aprende-se como vivem os pinguins adultos, sem fazer concessões que lhes limitem os movimentos das nadadeiras. Perdem-se uns pedacinhos delas pelo caminho, nas trombadas com os outros animais que frequentam as águas polares ou dando encontrões nas rochas que aparecem de repente em meio às ondas geladas.

Pinguins desacreditam desses senhores sentados atrás das mesas (também há senhoras, não é uma questão de gênero), que lhes pedem comprovação de que podem e sabem escalar árvores, quando o seu horizonte é feito de águas e não de bosques. Desacreditam que precisem provar o que não é provável (nem importante, acrescentam quando conversam ao se encontrarem numa alegre sessão de natação), e desacreditam mais ainda quando esse senhor sentado atrás da mesa se reúne com os demais da sua espécie e se perguntam uns aos outros como fazer para respeitar o tempo de cada um dessas criaturas simpáticas que lhes coube cuidar; leem e estudam e discutem e meditam sobre o assunto. E chegam à conclusão de que os tempos não são como dantes; que o mundo mudou, e com ele as suas mesas precisam mudar também, pelo menos de lugar, os seus sobrolhos precisam suavizar-se, transvestir-se de outras formas, assim como suas palavras; que a percepção do que é único e irrepetível, aquela que inclui a todos, trará a beleza exuberante das nadadeiras para junto da força possante das trombas. Assim que, porém, chegam à floresta, sentam-se à mesma mesa, olham para todos com os mesmos olhos e esquecem-se de que decidiram deixar o sobrolho de lado. A mesa, a árvore, a testa enrugada e as palavras antigas e habituadas pesam demais. E é preciso uma força sobre-humana, daquele tipo que nos faz levitar depois de um tempo, para dizer: "agora, ninguém mais fará a mesma prova".