Fiquei particularmente tocada
pelo pinguim do cartum ao lado. Enquanto os demais, apesar da expressão atônita, tentam
entender o que lhes diz o senhor sentado atrás da mesa, o coitado nem olha pra
ele, tão interessado está no seu colega paquiderme ao lado, doido pra puxar
uma prosa. A cena seguinte, se houvesse, certamente incluiria um sobrolho franzido (do senhor atrás
da mesa) e o pinguim remetido ao fundo da sala, perdão do campo, sozinho ele com o ar em volta.
Ao final da 4ª classe primária, em
1974, eu estava tal qual o pinguim aí em cima. Para progredir para a classe
seguinte, e ingressar no então ensino secundário, era preciso que,
metaforicamente, escalasse uma árvore tendo como ferramentas duas nadadeiras,
imensa curiosidade e essa vontade de mais conhecer os colegas sentados ao meu
lado do que qualquer outra coisa. Já se percebe onde eu fui parar naquela sala.
Os exames de admissão em Portugal,
assim como no Brasil, eram fundamentais para o caminho escolar. Se bem me
lembro, esse foi o último ano em que aconteceram por lá. Constavam de uma prova
de aritmética e geometria que devia ter uma duração de uns quarenta e cinco (longuíssimos)
minutos, seguida de uma outra, de ditado e redação (a parte fácil). Terminada
essa sessão, o júri se reunia e promulgava a sentença: "mau", "suficiente" ou "bom". "Mau" significava que podia voltar pra casa naquele instante mesmo; os “bons” e
os “assim-assim” ficavam e precisavam encarar a prova oral. Suplício completo:
uma banca na frente; dois professores perguntando, outros dois tomando
misteriosas notas – que em pouco tempo se convertiam em mau, bom ou suficiente.
Não me lembro nem das notas nem das perguntas, mas no ano seguinte estava uma
classe adiante.
Tínhamos todos 9 anos de idade –
um ótimo momento para descobrir que o mundo é uma coisa e você outra. Um
desconforto imenso. E enormes aprendizados. Aprende-se rapidamente, por exemplo, a
reconhecer que nem todos são pinguins, nem elefantes, nem peixes, nem macacos.
Há enguias, há águias, há preguiças, até antas. Já o que fazer com isso demora um pouco mais.
Dependendo da espécie, dura a vida toda.
Aprende-se também a esconder a
natureza pinguim: passa-se a gostar de água quente, deixa-se de comer peixe,
anda-se de quatro, prefere-se viver sozinho – e depois descobre-se que não
funciona. Que quando você é um pinguim, você é um pinguim. Tenta-se outra coisa:
viver agora rodeada de pinguins, sem mais nada para atrapalhar. Também não: quanta
monotonia, que falta dos lobos do mar, das focas, das aves que o Darwin veio
estudar!
Por fim, não resta muito a não
ser aceitar a própria condição e crescer como pinguim, nesse andar
descompassado e esse ar de estar sempre pronto pra festa. Aquelas coisas que um
olhar atento, quando existe, desmente em dois tempos. Aprende-se como vivem os pinguins
adultos, sem fazer concessões que lhes limitem os movimentos das nadadeiras.
Perdem-se uns pedacinhos delas pelo caminho, nas trombadas com os outros
animais que frequentam as águas polares ou dando encontrões nas rochas que
aparecem de repente em meio às ondas geladas.
Pinguins desacreditam desses
senhores sentados atrás das mesas (também há senhoras, não é uma questão de
gênero), que lhes pedem comprovação de que podem e sabem escalar árvores,
quando o seu horizonte é feito de águas e não de bosques. Desacreditam que
precisem provar o que não é provável (nem importante, acrescentam quando
conversam ao se encontrarem numa alegre sessão de natação), e desacreditam mais
ainda quando esse senhor sentado atrás da mesa se reúne com os demais da sua
espécie e se perguntam uns aos outros como fazer para respeitar o tempo de cada
um dessas criaturas simpáticas que lhes coube cuidar; leem e estudam e discutem e
meditam sobre o assunto. E chegam à conclusão de que os tempos não são como dantes;
que o mundo mudou, e com ele as suas mesas precisam mudar também, pelo menos de
lugar, os seus sobrolhos precisam suavizar-se, transvestir-se de outras formas,
assim como suas palavras; que a percepção do que é único e irrepetível, aquela
que inclui a todos, trará a beleza exuberante das nadadeiras para junto da
força possante das trombas. Assim que, porém, chegam à floresta, sentam-se à
mesma mesa, olham para todos com os mesmos olhos e esquecem-se de que decidiram
deixar o sobrolho de lado. A mesa, a árvore, a testa enrugada e as palavras
antigas e habituadas pesam demais. E é preciso uma força sobre-humana, daquele tipo que nos faz levitar depois de um tempo, para dizer: "agora, ninguém mais fará
a mesma prova".
Saudades do meu tempo de pinguim, naquela época não sabia que o que eu era, só queria ser igual...depois de tantos anos acho que nem sei mais o que virei, não sou pinguim, só luto para não me tornar no homem atrás da mesa!
ResponderExcluirBjus,
Lu.