Sabe um daqueles dias em que dá vontade de, como todos os grandes poetas deste nosso ocidente, de Homero a Milton, de Camões a Shakespeare, invocar a grande musa e por-se a trabalhar? Depositar nos seus invisíveis braços a carga que não sustentamos, eliminarmos toda preocupação com processo, resultado, sentido - e simplesmente pormo-nos a trabalhar?
Pois hoje é um desses dias. Porque nada me sai a contento. De nada consigo ou arrepender-me ou congratular-me, e esse é o estado de indefinição que, muito possivelmente, mais me inquiete, de uma forma que não domino e sequer desejo. Ouço ranger e estalar, como se casco de navio enferrujado, cada uma das minhas vértebras e costelas: desacomodam-se para dar passagem a um espaço de alma que estava ali, recolhido, ensimesmado, contente de caber no canto que lhe parecia reservado. Até descobrir que não. Que é mais. Que não se contenta com esses mililitros cedidos. Por mais que se alongue, torça, estique, corra: nada.
Por isso o lembrar-me das musas: para ver se encontro alívio. Antes delas, evoco Mnemosyne – aquela que vem em socorro para que eu não me esqueça, a deusa da memória por excelência. Porque a tendência a esquecer está impiedosamente ligada ao limite do que somos. Ao esquecer, perdemos humanidade, subtraímo-nos daquilo que viveu em nós e não lhe damos crédito. E o passado cola-se às nossas costas, agarrado às asas que não conseguimos despregar. Mnemosyne, uma das Titânides, nasceu da união entre Urano e Gaia; com Zeus, teve as nove musas – todas elas filhas assim da memória. A cada invocação a qualquer uma delas, de Calíope a Érato, de Euterpe a Tália, o que pedimos é a graça de sermos capazes de lembrar, de forma atenta, de tudo aquilo que vale a pena, antes de que tudo deixe de valer a pena.
Co-memorar faz com que nos lembremos juntos de que é preciso lembrar. Re-cordar, nesse sentido que essa palavra poderia ter, e fazer com que novas cordas se estabeleçam entre o que já foi e o que agora é. Partícipes de um passado feito império e que apenas o esquecimento poderá destruir, é urgente que saibamos da finitude do tempo, mais do que da sua relatividade, e que invoquemos Mnemosyne, comemorando esse passado que reúne os feixes de uma mesma trança.
Minha cara, vc tem o dom de dizer de maneira sofisticada o que sentimos. Muito obrigada por tais palavras, pois aclararam e me ajudaram a dar nome a alguns de meus anseios e sentimentos. Ao dar nome damos sentido...
ResponderExcluirAna, Euterpe sem dúvida atendeu às suas evocações, que crônica mais linda, não sabia que tinha blog, agora visitarei sempre aqui! Muito lindo, parabéns!
ResponderExcluirDenise querida: saudades de você, viu?
ResponderExcluirBeto: bem vindo, espero que volte mesmo...
Abraços aos dois!