El hombre es una realidad utópica, que es y no es, que es lo que todavía no es y tal vez no pueda ser. Consiste en ser una realidad proyectiva, futuriza, deseante, nunca lograda, nunca conclusa, en suma, utópica. Nuestra vida consiste en el esfuerzo por lograr parcelas, islas de felicidad, anticipaciones de la felicidad plena. Y ese intento de buscar la felicidad se nutre de ilusión, la cual, es ya una forma de felicidad. (J.Marías)
Acontece-me às
vezes. Ouço um recorte de conversa, um pedaço de fala, um fio dito por alguém e
de repente as palavras tomam-me de assalto; destacam-se das demais, e ficam
assim, flutuando à minha frente, e eu à mercê delas. Acompanham-me se saio ou
entro, entranham-me a memória e tudo o que for espaço ocioso ao longo dos dias.
Se deixo de pensar em outras coisas, penso nelas. Acorrem-me várias vezes por
detrás do que faço, horas depois ainda estão ali, fazendo-me olhar para a vida como
se acabasse de entrar nela. São, durante um tempo, o meu reduto de felicidade.
Às vezes,
juntam-se a outras e transformam-se em textos mais longos. Outras, vivem
sozinhas durante anos, e tenho aprendido a não as gastar com a frequência que
pode gastar alguns amores, mesmo sabendo que é de ausências que morre a
maioria. Troco de lentes para podê-las perceber com olhos alheios. Como dizem
os espanhóis, “Nada es verdad ni mentira, todo depende del cristal com que se
mira”.
Mais às vezes
ainda, acontece-me de, num mesmo dia, num mesmo encontro, num mesmo espaço de
poucas horas, ser agraciada com várias palavras. Assim foi, neste sábado, nos
81 anos da minha amiga Marina.
Marina
ensinou-me, ao longo dos últimos 30 anos, uma porção de coisas. A como dobrar
as fraldas para conseguir o máximo de absorção possível (e o mínimo de trocas
que vem junto!); a curar panelas de pedra; a preparar frutas em calda; a olhar
para os demais com a vista clara; a apreciar as rugas e os cabelos brancos como
vincos de memória; a ser-se quem se é, desagrade ou não a quem estiver ao lado;
a rir da vida quando ela segue por onde nem suspeitávamos; a curar as feridas
sem as lamber; a gostar de pechinchas; a ver a vida com os olhos sadios de quem
gosta dela por inteiro. Marina fez 81 anos e fez uma festa: todas as comidas,
todos os filhos e todos os amigos, que se querem de todas as idades e de todas
as latitudes, na variedade que Marina aprecia. Poesia, música, filosofia, ao
longo de uma noite que se fez enorme como é o coração de Marina. Às 4 da manhã,
ainda estava animada. Por ela, nem teríamos terminado.
No meio de tudo
isso, três palavras que, ainda não sei por que, caminham dentro de mim como
caminha, dispersa pelos meus poros, a circulação acelerada do sangue do meu
corpo.
“Moro sem forro”,
dizia-me Taibo.
E eu não
consegui ouvir o resto. Ou ouvi, mas não me lembro, porque “moro sem forro”
avançou para dentro de mim como uma onda imensa de águas cheias de estrelas,
reluzindo como uma pérola recém vislumbrada. E tomou-me o resto da noite. Parece-me
que, para escapar do “moro sem forro”, tentei prender-me a outras coisas das
tantas que esse senhor de também 81 anos de idade ofereceu nessa noite: o
ditado espanhol no forte sotaque galego dos que nascem em Vigo, uma frase
bonita sobre as antecipações da felicidade plena que são os nossos momentos
felizes. (Como o que me deixa, no dia seguinte, o coração em relevo agreste e quente, só por uma troca de
olhar inesperada e súbita, que sequer pode ser, mas é.)
Mas eu já
estava afogada de felicidade nesse “moro sem forro”, que sobe e desce em mim desde
então. De outra forma que não a concreta, da casa de telha vã de Taibo na serra
da Mantiqueira, sem ter diante de mim as montanhas que seus olhos saúdam ao
acordar, também eu moro sem forro. Resisto às lajes e aos lambris que me
separem das telhas. Quero ver os caibros e as ripas que sustentam o que impede
que chova em mim, e não quero a superfície lisa e reta, nem a inclinação suave
do cedrinho que pareça proteger-me do que vem do alto. O vento que atravessa
silvando as frestas das minhas telhas mantém-me acordada e, como Taibo, gosto
de acordar de manhã com a brisa que atravessa o telhado e vem curiosa bater em
meu rosto.