"Agora que você não está ao meu
lado, começo a desabitação da presença. Talvez para que o abandono não me doa. Que
o olhar de adeus que você lançou às minhas costas, e que fez os meus músculos se
retesarem, não perfure meu espaço aéreo. Qualquer som tornaria concreta a
abstração tão grande deste boiar. Por isso desabito-me de você. Imóvel e em
silêncio.
Vão faltar-me os nós dos seus
dedos ao baterem à minha porta, mas não me interrompo no preparo da mala em que
seguirá com você tudo o que nos pertence. Não é preciso que nada fique para
trás. Nem um som sequer. Nem um esboço de gesto. Bastam-me as impressões
gravadas por todas as paredes desta minha casa, o molde de gesso dos dias somados
um ao outro, nesta casa que você habitava até eu perceber o início da desabitação.
Quando a dizíamos: nossa casa. Quando assim se tornou, assim que abri a porta e
deixei entrar o seu corpo esguio e oscilante, sem perguntar quase nada. Ou perguntando apenas: o que fará comigo quando se for?
Não houve resposta, e ainda assim deixei
você entrar, e o meu espaço tornou-se seu. E o tempo em que os seus passos
ecoavam nas escadas de pedra da entrada de baixo fica guardado na áspera
gramatura da minha memória. E eu voltarei a ouvi-los, fecharei os olhos e
sentirei atrás do meu pescoço o hálito quente do toque das suas mãos. Como se
elas tivessem voltado. Como se elas tivessem se reacendido no desejo que palpitará
por entre as minhas veias, incendiando todo o meu corpo até chegar ao meu
centro.
Dobro-me em duas nessa falta de
habitação. Escorro a mobília, tão pouca, ao longo dos corredores encerados. Dobro
as cortinas ali encostadas, ainda à espera da escada que nunca veio. Doo a
louça ainda nas caixas, à espera de que nos sentássemos um diante do outro, as
xícaras e os pires e as taças tremeluzindo nos olhares que trocamos. E de repente
passa sobre mim o voo da ave que diz que a vida acaba antes de começar, mesmo
quando no início tudo é já tanto. Seus olhos de azeviche, na sua dureza cruel e crua, refletem o meu rosto. Leio nele que sequer ainda começava a ser sua. E
no entanto você já se foi."
(Dos diários de Hope, a personagem nascida no sul)
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