(Perguntam-me que história é essa dos morros 1 e 2 de entulho. Além de acrescentar que há um terceiro, incluo duas fotos que os ilustram a todos, para que se entenda, inclusive a evolução dos ditos cujos. Aí estão.)
É um pouco como aquele conto judaico, do bode na sala, sabe qual? Em vez de bode na sala (que por sinal ainda nem existe), tenho morros de entulho que preciso quase que galgar para entrar e sair. Quando chove, então, depois deste último que é só só feito de terra, é uma beleza. Fico imaginando quando tudo isto for um lugar habitável, daqueles que se varrem e limpam e permanecem limpos por pelo menos uma hora – e dá-me um certo prazer antecipar essa visão.
Essa história do bode na sala,
conselho de rabino sábio, é uma das preferidas da minha filha mais nova. Passou
meses do ano passado pedindo que lha contasse uma e outra vez, e eu cansada
querendo avançar para outras histórias, e ela insistindo como só ela sabe fazer, até que eu cedia e contava-a de novo. E de novo. E
de novo. Essa minha filha tem um dedo lá na frente, é bom ficar atenta ao que
sente. Sobretudo quando insiste.
São coisas assim a que chamam
premonições. Quem as tem, diz serem um fardo. Passa-se a vida antecipando o que
já se sabe irá acontecer, e depois perde-se tempo decidindo decidir... o que já
se sabe. A bem da verdade, um terrível de um contra senso, uma perda de tempo
homérica.
Uns perguntam-me pelo entulho, outros dizem-me que entregue – que na entrega não há sofrimento. Que não tenha medo. E eu nada posso a não ser entregar, e entregar-me, com menor ou maior capacidade dependendo do dia, da hora, do momento; assim
que consigo, acontece: um fluxo de escrita percorre-me de cima abaixo, preciso
urgentemente sentar-me aqui e destilar todas essas palavras aflitas por saírem
de mim. Querem fazê-lo de qualquer jeito, e a minha tarefa é ordená-las. Num todo
que despareça caótico, que simule lógica, que faça com que eu mesma leia e me
acalme, respire mais sossegada e chegue à conclusão de que tenho algum domínio
sobre mim. Só por uma questão de tranquilidade e foco - eu já sei que domínio é
outra coisa.
Às vezes, dá-se através da
escrita, a premonição. Como uma onda que viesse do futuro, e se
captura no presente, indecifrável mas precisa. Como um feixe luminoso, milhões de nós puro brilho, súbito rasgar do véu
em que se refugia o Tempo. Como uma rede lançada ao mar, na volta cheia de
peixes prateados, que refulgem enquanto estão dentro d’água e assim que saem
são espuma a dissolver-se no papel.
De tempos em tempos, relê-se o
que se escreveu e descobre-se que já se sabia. E aí é a dissolução num oceano
de encantamento, surpresa, incredulidade plena e completa. Ainda assim, os que
têm esse dom mantêm que é terrível. Porque a vida vai carregando-os estrada
afora, sem que se deem conta, apesar de todos os sinais que recebem. As
premonições todas ao alcance, e eles alegres e saltitantes, desavisados como
deve ser, para que nada pareça mesmo normal. Porque não pode mesmo parecer
normal, senão como administrar, pergunto-me eu?
E é dessa forma que estes morros
olham pra mim, e eu pra eles, interrogando-nos mutuamente qual a extensão do
que eu já sabia, do que minha filha já sabia, do que todos já sabíamos antes de
começarmos novas jornadas, sem saber mas sabendo exatamente aonde nos conduzem.
Pisco-lhes o olho, feliz de estar a caminho, de mãos dadas com o destino, entregue
e inteira como me pedem que seja e eu mesma desejo, mais do que qualquer outra
coisa.
..."Como uma rede lançada ao mar, na volta cheia de peixes prateados, que refulgem enquanto estão dentro d’água e assim que saem são espuma a dissolver-se no papel."...
ResponderExcluirAmei essa imagem!
E também o texto todo, aliás.Bjs