25/07/2014

Estrelas sem culpa

Os moldes, para quem não sabe, servem para reproduzir qualquer coisa com exatidão e em grandes quantidades.

Para peças que precisam de reprodução muito fiel, o processo de moldagem a vácuo é o mais indicado, superior a outros tipos de moldes, feitos de madeira ou de epóxi. O vácuo, sabe-se, é um processo de grande utilidade na reprodução mecânica das coisas. No vácuo, molda-se qualquer coisa, até pensamentos. Com a vantagem de nem se sentir a sua presença. E o pior é que, sem vigilância, o vácuo toma conta.

Temos então estruturas que, através do vácuo, reproduzem à exaustão o mesmo tipo de forma. Tudo igual, sem surpresas. Pois bem: existem também os contra moldes. Embora pelo nome pareçam opor-se aos moldes, na verdade fazem com que suas paredes e superfícies fiquem mais grossas e resistentes. Talvez os contra moldes não tenham muita consciência de que existem para que o processo de reprodução mecânica fique mais aprimorado. Talvez pensem que chegaram para alterar essa ordem estabelecida de tudo ser igual.

Coitados.

Vou ao cinema. Assisto a esse filme que todos comentam,  "A culpa é das estrelas". Emociona. Chorei, igualzinho a todos os que assistiam a sessão, numa faixa entre os 7 e os 75 anos de idade. Todos ali a enxugarmos as lágrimas, início, meio e fim. Moldagem perfeita.

Nada contra Hazel e Augustus, os adolescentes que se apaixonam e carregam juntos a luta contra o câncer. Nada contra a história real em que se baseia a trama. Não me espanta tamanha comoção (minha, inclusive) por um drama particular: antes me parece revelação dos tempos.

A certo momento do filme, os dois personagens encontram-se em Amsterdã. Visitam a casa onde Anne Frank passou seus últimos anos de vida, antes de morrer nos fornos de Auschwitz. Fico com a sensação de uma linha paralela que se desenha sutilmente, entre Hazel e Anne. Tão sutil que me incomoda.

Com toda a razão, dizem o livro e o filme, há infinitos maiores e menores. "A culpa é das estrelas" é um infinito pequeno que nos emociona porque poderíamos ser nós mesmos, nosso amigo, nosso vizinho, nossa irmã. É um infinito ínfimo que nos aprisiona na nossa pequenez, nessa coisa miúda em que nos tornamos quando o que vemos diante dos olhos é o que podemos perceber possível na nossa própria vida. Assim, meio pasteurizado.

É como comida mexicana nos Estados Unidos ou japonesa entre nós: adaptam-se os sabores ao paladar do lugar, para que nada espante ou desagrade. Em vez do sabor exótico, forte, algo que nossos sentidos reconheçam como conhecido, e não precisem trabalhar em si nada de adaptação - muito menos de por-se a perceber se gosta ou não gosta disto que é tão diferente, e não apenas parece. Essa pasteurização que vejo desfilar na tela à minha frente, essas imagens da dor sentida até o ponto em que seja suportável pela audiência que se identifica, desagradam-me. Desagrada-me o título que vende milhões nas livrarias: finalmente, então, temos a quem culpar. Ô alívio.

Juro: desanimo. E porque desanimar-se é perder-se a alma das coisas, é deixar de estar-se inteiro onde se pisa, escrevo. Porque não me quero gente sem alma perto de ninguém, e parece que o escrever re-anima a vida em mim, e eu me retomo nas mãos.

Saio do cinema com uma sensação dúbia. Todas as lágrimas choradas pela culpa das estrelas reduzem a nossa humanidade, dando a falsa impressão de nos tornarmos mais humanos por nos sentirmos tão tocados por esse drama juvenil. E a juventude que se prepara para imprimir futuro ao planeta em que vivemos, emociona-se com uma drama que fala dela mesma, sem se aperceber que é para um infinito muito pequeno que o molde é projetado. Essa juventude demonstra menos capacidade de se emocionar com o drama de milhares de adolescentes que lutam todos os dias por se manterem vivos nas periferias das grandes cidades, do que pelo drama pequenamente infinito da tela. O mesmo adolescente que chora copiosamente no cinema é o mesmo adolescente que ergue o vidro no farol da grande cidade, abrindo um fosso entre ele mesmo e o outro seu igual. O mesmo adolescente que é vítima fácil das armadilhas dos moldes sociais. Que vai às ruas sem saber exatamente por que, encaixando-se num molde tão bem construído que nem sequer se anuncia.

Por-se a pensar com sua própria cabeça? É infinitamente mais fácil deixar-se moldar. Mais fácil emocionar-se com as estrelas do que sentir ao lado da pele as dores do radicalismo mundo afora, e das arbitrariedades mundo adentro. No afora do mundo, o sofrimento que torna a vida impossível para milhões que não têm a sorte de uma tela onde seus dramas comovam as massas. No adentro do mundo, esse desfile nu e cru de arbitrariedades, bem diante dos nossos olhos, atrás da porta do nosso vizinho, na calçada do nosso lado da rua. São a população do semáforo da esquina de casa, e nós preferimos a anestesia em qualquer das suas múltiplas formas. Vamos nos moldando. Cedendo aqui, cedendo ali. A alma enfraquece-se, e cede. E sem que se saiba como, a possibilidade de indignação é agora uma quimera, e a vida perde peso, consistência e verdade.

Talvez fiquemos, diante da tela, com a sensação de sermos pessoas basicamente boas: a emoção diante desse drama tão próximo, tão possível, é um afago em nossa alma, para que o disco interminável e insufocável do sofrimento humano se esfume e, de tanto girar, se torne branco e indistinto. E desapareça. E nós fiquemos em paz. Até porque, afinal, a culpa é das estrelas.




23/07/2014

Aporia

Descobri dia desses, numa roda de amigos, uma palavra que não conhecia. Aporia. Ficou vagando por dentro de mim uns dias, e eis que ressurge, querendo respostas. 

Coisa difícil, já que aporia é justamente a impossibilidade de alcançar respostas, de encontrar explicações, e deve ser por isso que ela me cutuca com seu dedo incisivo.

Das suas cutucadas recebo de presente a disposição de ler dois dos diálogos aporéticos de Platão - "Laques" e "Ménon". Um é sobre a coragem e o outro sobre a virtude. Hei de lê-los um dia, ainda mais agora que sei que não haverá conclusões a que possa chegar.

Aporia está ligada ao paradoxo, ao impasse, à dificuldade, à incerteza, às auto-contradições, tudo coisas que impedem que o sentido do texto possa ser fixado. Ou seja: não há um sentido. Os Diálogos de Platão são escritos, os nossos diálogos costumam ser falados: a aporia pode apresentar-se em todos eles. Sabe aquela hora em que, na sua conversa com seu interlocutor, você sente que ele fecha todas as saídas? Esse estado peculiar em que procuramos um ponto de entrada que desmonte/desconstrua a fala do outro? Porque não há maneira de que ela se construa e signifique algo conclusivo? Porque é tudo e nada ao mesmo tempo? Pois bem: você está nesse momento diante de uma aporia. Voilá!

Mas há mais sobre a aporia. Há "Aquiles e a tartaruga", a mais clássica delas. Há a aporia crataegi, uma borboleta europeia. Aporia é gênero de borboletas. Borboletas chamam-se lepidópteros. E lepidópteros é uma palavra grega que significa "asas de escamas". Bonito.

É Carolus Linneus, médico e botânico sueco da primeira metade do século XVIII, que dá nome grego às borboletas e quem nomeia a aporia crataegi. Nem notícia ainda do nascimento de Darwin, e já esse senhor estabelecia a forma de organizar e categorizar o mundo natural, o mesmo que usamos até hoje.

É Linneus quem escreve, em 1753, a obra Species Plantarum. O protagonista de "Figura na sombra", romance do mestre Assis Brasil, lê o livro em sua juventude. Está lá, no primeiro capítulo, essas duas páginas que releio com prazer uma, duas e quarenta e quatro vezes se for preciso. Tão ricas de ensinamentos são para quem escreve. Demoro-me muito tempo nesses parágrafos, gosto de lê-los com meus alunos, de re-re-re-perceber a magia que existe no corte sumário de tudo o que não é essencial. Por isso, por causa do que foi cortado, lembro-me do Species Plantarum. Porque está lá, a meio do romance de Assis Brasil, sem explicações. Seduz justamente porque não está explicado, e porque, se ficou, é porque tem significado.

É claro que me pergunto por que terá dado Linneus esse nome a essa borboleta. Enquanto descanso aporia ao meu lado, vou em busca de crataegi. É o mesmo Species Plantarum  que classifica o Crataegus - um arbusto (família deles) de flores, brancas como as dessa borboleta, que nós conhecemos por pilriteiro ou espinheiro branco. Seu nome deriva do grego kràtaigos, no sentido de força e robustez, característica que talvez se refira à sua dura madeira. Além das flores, o pilriteiro dá umas bagas vermelhas que a medicina tradicional usa desde a pré-história para doenças cardíacas. Eram de pilriteiro as cinco tochas que os gregos faziam arder nos casamentos, para afastar as forças de Artémis, deusa contrária às relações monogâmicas. E era também de pilriteiro a coroa de Cristo.

Entre idas e vindas, penso que talvez Linneus estivesse, no momento em que avistou uma dessas borboletas, afundado num depressão imobilizadora. Talvez não estivesse capaz de sentir. E a visão da que viria a ser a aporia crataegi, sem motivo, sem explicação, um paradoxo vivo esvoaçando ao seu redor, movimentou seu coração - talvez se lembrasse de Artémis, e logo após de Cristo. Talvez pensasse no quanto tudo muda o tempo todo, e que é dessa energia movimentadora da mudança que o nosso mundo se nutre, embora seja sempre o mesmo e em nada se diferencie uma época de outra. As aporias, afinal, aquecem o coração e salvam-nos da normose engessante.

Os motivos que me levam a manter este livro e não aquele no centro da minha alma não são só paradoxos: são aporias. Mantenho os que carregam dentro de si/mim dúvidas e incertezas, coisas e mais coisas inexplicáveis, e que têm nessa inexplicabilidade o seu motivo de existir. Gosto de voltar a eles e descobrir, após a 34ª leitura, que não consigo apreendê-los, não consigo sumarizá-los, não consigo reduzi-los a uma leitura, porque são imensas e infindáveis. E lá vem a pergunta: como assim pedir a alunos aprendizes de leitores que resumam e expliquem uma obra literária? Para matá-la na sua gênese? Naquilo que tem a oferecer? Nas mil possibilidades infinitas?

Aporias são coisas assim: nem se explicam, nem se chega sobre elas a nenhuma conclusão. Um desespero, para alguns. Um desafio, para outros. Incluo-me nestes últimos (nem sempre), e divirto-me nesse movimento interno que busca refutar todo e qualquer argumento que queira fixar um sentido único e conclusivo ao texto que leio, ou ao diálogo que mantenho.


Imagem: Aporia Crataegi
http://eol.org/data_objects/20605909

07/07/2014

Clarice, em carta

Provavelmente porque precisava de quem me oferecesse todos e nenhum caminho de entendimento ao mesmo tempo, fui em busca de Clarice. Porque a força da ficção vive na capacidade de não ser verdade mas poder impor-se como tal, nesse conceito cheio de letras que é a "verossimilhança": um ser semelhante à verdade, que está de acordo com aquilo que poderia ser, ainda que em desacordo com aquilo que se vê normalmente. Aí está uma discussão que adoro: o que é mesmo a verdade do que se vê?

Mas vamos à Clarice. Há uma carta, que se diz ser dela, a uma amiga incógnita, escrita em Berna em 1947. Uma versão conta que a teria dirigido a sua irmã Tânia, entre muitas outras que escreveu a todas as suas irmãs, nos mais de 15 anos que viveu fora do Brasil. Foi Caio Fernando Abreu quem publicou a tal carta, avisando que não tinha certeza de ser da escritora, mas que a ela se atribuía, e assim de fato parecia.

A destinatária da missiva devia passar por momentos de aperto, desses que fazem as mulheres se aproximarem umas das outras em busca menos de consolo que de compreensão. Às vezes, a realidade do mundo sobrepõe-se à verdade que se intui para lá dele mesmo, e é bom uma mão amiga, um ombro aberto, uma palavra de alívio, para que não se sucumba à impressão de endoidecer. Se a carta é ou não verídica, não sei. Mas é verossímil, e por isso leio-a como se de Clarice fosse, como se a amiga e a consequente amizade o fossem também, como se a congruência fosse (é) uma realidade palpável. Berna, 1947, parecia-se a uma fazenda, escrevia Clarice em outra carta, lamentando a falta de paciência para gostar de uma coisa assim. Não lhe foram fáceis esses anos, como não o foram para europeu algum do pós-guerra. Na verdade, não sei se a vida lhe foi fácil ou difícil, porque essa não era uma preocupação que Clarice aparentasse, essa de pensar na facilidade ou na dificuldade das coisas. Clarice era dada a agir sem muito pensar; ainda em outra carta, diz que desse método lucrou meio a meio: metade de fato intuição, a outra metade pura infantilidade. Preciso ser mais madura, dizia ela. Mas tenho medo de amadurecer demais, completava.

Não sei bem se Clarice era dada a aliviar os outros. Creio que não, tanto quanto creio que ela mesma raramente encontrava alívio a não ser na escrita, e ainda assim de forma muito leve. Mas essa carta em especial alivia, como alivia uma conversa em voz baixa à mesa enquanto se divide um jantar. Aquelas coisas profundas e simples que só podem ser entregues ao outro quando há tempo, espaço e interesse. Cartas, na falta de jantares, e quando a distância é marítima, sossegam o espírito.

A meio desses momentos difíceis pelos quais a amiga passa, Clarice aflige-se por vê-la enveredar pelo caminho fácil de ser o que não se é. Porque os outros pedem. Porque os outros suplicam. Porque os outros exigem. Porque todos dizem que. Porque todos fazem. Tanto faz. É preciso ser-se quem se é, e estar atento (não sei se leio ou penso) ao tanto que não se pode levar a alma no caminho da distração de si própria. É preciso estancar o fluxo. É preciso subverter a ordem que chega. É preciso com urgência resgatar os próprios defeitos, e tomá-los nas mãos com o mesmo carinho com que se tomam as virtudes. Clarice alerta: nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. E por isso cortar os próprios defeitos é ação perigosa.

E por isso é preciso ler Clarice e prestar-lhe atenção, atenção a esse sufocamento acre que lhe sobe pelas letras e nos incomoda os olhos. Que nos alerta para os desvios daquelas que são as nossas necessidades e expectativas, esse desviar-se desatento do caminho que a alma nos grita precisar percorrer. Sem prestarmos atenção equivocada ao que dizem, fazem, pensam, pedem, exigem, esperam, demandam, provocam, precisam - os outros. Ler Clarice volta-nos os olhos para dentro. Desconstrói-nos. E por trás de tanta cortina, lá estão reunidos os nossos esforços em mudar o que somos, esses esforços imensos de emoldurar o quadro que somos e descartar as sobras à sua volta. Como se algo em nós sobrasse.

O custo, às vezes, é alto. Outras, é alto demais. A alma esvai-se pelo meio, atravessa a vida como água que a areia absorve lenta. E perde-se a água, e a areia continua como sempre. Clarice fala da "comodidade da alma" e das concessões que se fazem em seu nome. Quando se abdica de si mesmo, das próprias faltas, dos próprios tropeços. Quando se abdica das necessidades mais básicas, e que são as nossas. Quando se abdica da própria verossimilhança. E quando, por fim, não se é mais nada.


Foto de Claudia Andujar, 1961

03/07/2014

Perseverar, teimar ou persistir?

Para você, que como eu se olha ao espelho, na dúvida cruel entre "será que estou teimando ou sendo perseverante?", duas explicações e uma solução.

Tudo é questão de ser severo, estabelecido ou firme. Simples assim.

Quando se persevera, ativam-se as forças estritas e sérias de severus. Aliás, por causa do per-, ativam-se totalmente. Perseverar é um ato de total seriedade reta. Não há deslizes, nem dúvidas, muito menos falhas. Acho até que há um cenho franzido plantado na testa. Muito arriscado - os cenhos franzidos afastam os outros e criam sulcos que em nada se parecem com as alegres rugas de quem vive a sorrir.

Já quando teimamos, seja lá a respeito do que for, temos um thema - um argumento, uma tese. Quase, quase, coisa de advogado. Partimos de um lugar no qual acreditamos. Nada provado, dirão muitos ao seu redor, mas você responde: você que não vê, tá lá. E podem tentar demovê-lo. Ali está, e ponto. Esse thema é forte desse jeito porque é antigo - antes do latim, já o grego o lançava, com significado levemente diferente: aquilo que se propõe. Portanto, uma proposta. E mais. A sua raiz é tithenai, palavra algo apocalíptica (experimente falar em voz alta), e significa, com uma naturalidade teimosa, "algo estabelecido". O verdadeiro teimoso, o convicto, teima a partir de uma tese proposta e estabelecida, fincada resoluta no chão imortal. Olho para a minha teimosia e dá até cansaço.

Mas, como para quase tudo, há solução. E hoje, agora, a solução que tenho chama-se persistir. Per+sistere. Persiste aquele que se mantém firme e em pé. Totalmente firme e em pé. Podem as tempestades e os raios cair a seu lado, as pedras do caminho serem maiores e mais numerosas que as flores: há aqueles que persistem. Que olham para a vida diante de si e dizem para si mesmos: mantenho-me aqui, porque é o que devo fazer. Com firmeza, em pé, e sempre.


(E as uvas, pergunta você olhando a foto? O que é que têm as uvas com isso? Secá-las, transportá-las ou reidratá-las? Escolha de cada um. De qualquer forma, as uvas se manterão uvas. São as atitudes que constroem as diferenças entre elas.)

30/06/2014

Desapego ou desprendimento?

Ora bem. Depois do post "Ser grato ou obrigado?" pedem-me à distância que escreva algo sobre desapego. Perguntam-me se me sinto desapegada. Se pratico o desapego. Se consigo.

Francamente, nem tento. Não posso. Dentro de mim vive um apego a tudo o que amo. Um apego que (tento) não me machuque quando decide insinuar-se por entre os muitos laços do ego, segredando-me que, se amo, e se me apego, terei. Bobagem. Apenas serei. Tento apegar-me dentro dos domínios da luz, e que essa luz envolva os demais com todas as vibrações que posso enviar de longe porque, afinal, estou apegada - e, por isso, trago o outro dentro de mim a cada instante, faz parte das fibras da minha alma.

A raiz primeira de desapego (antes da junção com o prefixo des-, que significa sempre o negativo daquilo que se diz depois), é apego; este, por sua vez, deriva da palavra pegar - picare em latim: trazer consigo, ter em si e (claro) pegar. Portanto: pratico o apego porque ele me faz trazer comigo tudo aquilo que amo. Graças a esse "a" agregado, o que estava bom fica melhor ainda: trago quem amo junto em mim. A toda hora, a todo momento, em todo lugar. E porque não quero desapegar-me, o que amo cria casa em mim. Habita-me. Entranha-se. Elabora-me. Decifra-me. Quem se apega, chega mais perto do centro.

O impulso de desapegar-se, neste poder etimológico que lhe outorgo, encontra-se de braços dados com a decisão (que vejo ao meu redor com frequência) de não se entregar, de manter a individualidade, de não se perder no outro, manter o controle, ser dono de seus atos. Mas sem entrega, sem comunhão de indivíduos, sem o se perder - como se achar, e como achar o outro?!

A esse amigo querido que de longe se pergunta sobre o desapego, o que posso oferecer é o meu desprendimento. O mesmo des- que negativa, junto ao prehendere latino. Prender significa também pegar, mas com uma pequena imensa diferença: prehendere é agarrar. E agarrar guarda dentro de si, escondida entre duas distraídas letras, uma garra. Uma coisa é pegar algo que chega à sua mão. Outra, diferente, é agarrar. É ser presa. É estar-se preso.

Pego o amor que me dão, e me apego. Quero apegar-me. É uma decisão, esse apego, porque amo o que amo e mantenho-o perto e dentro comigo. Amor não é agarrável. Amor é liberdade em expansão. É tempo fora do tempo. Espaço fora do espaço. Se tento agarrar, ele escapa. Amor só sobrevive ao apego. É o lugar mágico onde se nutre, cresce, transborda - amor é coisa que precisa de transbordamento, sejam lágrimas nos olhos, sejam bênçãos no mundo.

Agarrar responde ainda por ações polares: aprisionar e afeiçoar-se. Se uma palavra pode, ao mesmo tempo, aprisionar e criar afeição, é melhor procurar outro caminho. Apegar-se sem as garras longas que prendem. Por isso, pratico o desprendimento. Deixo solto o que pertence a todos. Deixo solto o que pertence ao outro. Deixo solto o que pertence a mim. Mas dentro, neste lugar onde entram aqueles de passos leves e olhar atento, vivem apegados a mim todos os afetos do mundo.

28/06/2014

Tempo, espaço e sonho

Mais dia menos dia, serei como essas pessoas que acordam e se lembram dos sonhos, e os anotam em cadernos que mantêm à cabeceira da cama. Por enquanto, fico feliz quando algumas imagens esparsas se agarram aos limites da memória, e, de repente, a meio do dia, no transplante de uma muda, ou no fluxo de água de uma mangueira que rega, beliscam-me com delicadeza o sentido da lembrança. Às vezes consigo deixá-las libertas à minha volta, símbolos que ainda não significam. Não sei então se me lembro ou se me crio, mas parece quase que sonho acordada o sonho que sonhei quando dormia. Num dia como esse de que falo, sonhei que era um cavaleiro andante, parado às margens escuras de um rio de caudal sereno. O cavaleiro que eu era, montado no cavalo que eu era também, virou-se por entre as árvores e disse-me assim:

"O que faço, o mais das vezes, é levar meu cavalo até um destes recantos, para que sacie sua sede e revigore seu espírito. Nada mais faço além: a tarefa desta minha vida é dar de comer e beber a este que em mim se apoia e de quem meu sustento depende. É ele quem decide para onde os nossos passos se encaminham. Anteontem, um moinho. Ontem, a campina vazia. Hoje, vejo ao longe a torre do campanário de uma igreja. Ao contrário do que pensas, os ninhos das cegonhas são recentes e estão vazios, porque o Tempo é fato concreto, e sob ele riscamos passos amplos. Creio que hoje pernoitarei sob um teto.

O dia de amanhã desperta lento. Retorço meu corpo no colchão de palha amarelada. As hastes duras marcaram-me as costas, sinto seus vincos desenhados ao espreguiçar-me. À porta, a fila de sempre. Há sempre quem acredite que por ser cavaleiro, e errante, me engano menos com o que se vê do mundo. Não sabem que eu propriamente nada vejo. Pedem-me conselhos, choram-me temores, entregam-me segredos, procuram-se dentro de mim consolo, esperança, esse brilho que perdem (dizem) a cada trovoada que lhes fustiga as costas.

Também esta é a minha vida. Andar sobre as vidas alheias, desembaraçá-las das teias que o Tempo sem uso vai desenhando nas janelas. É o Tempo que se despreza e ignora que lhes ensombrece as vidas. O Tempo não observado, o Tempo desalinhado, o Tempo que se diz passado quando já é futuro maduro. O que lhes falta, e a ti falta da mesma forma, é entrar dentro do Tempo e deixar-te possuir por ele.

Assim que a fila acaba (nunca haverá alguém que se vá sem ser escutado), olho com demora a minha montaria, a sela surrada, o conforto do trote no couro curtido, os olhos desse cavalo que sou eu e ele num mesmo espaço. Durmo ainda uma noite, se é preciso, ou duas, e faço-me à estrada quando é tempo de ir."


Imagem: Logunan (ou Oyá-Tempo), em http://www.teufilhosdaluz.com.br/

26/06/2014

Ser grato ou obrigado?

Muitos dos meus amigos hoje em dia respondem-me pequenos gestos que faço com a palavra "gratidão", em vez do costumeiro "obrigado". Se por um lado me agrada (gratidão é uma palavra bonita, e o sentimento de ser grato colore os lábios de sorriso), por outro me incomoda essa rejeição ao dizer-se obrigado. Triste, quando palavras correm risco de morte.

Gratidão deriva do latim gratus. Uma forma que vem lá de muito longe, quando oriente e ocidente ainda se fundiam na língua indo-europeia. Diziam eles gwer- quando queriam elogiar ou dar as boas-vindas. Gwer- transformou-se em gratus, e seu significado foi se transmutando até gerar o corrente: algo agradável que se agradece. Dá-se as boas-vindas a uma ação do outro que nos é agradável. Por isso o sorriso nos lábios, acompanhado do coração aquecido.

Obrigado também nos chega via latim. Obligare. Palavra composta por ob e ligare. Ou seja: unir (ou atar) a. (Assim como o re-ligare é ligar-se novamente a algo, e dele recebemos como herança a palavra religião.) Quando dizemos obrigado, unimo-nos a alguém, um alguém com quem temos agora uma relação de laço de retribuição. Pressupõe que aquela graça que recebemos (e pela qual somos gratos) se desdobrará em algo que entregaremos nas mãos de quem nos fez bem.

Eu gosto de dizer obrigada. Muito, até. Gosto dessa criação de vínculo, dessa sensação de que algo em mim se liga e ata ao outro, e me faz entrar em relação. Deixo a gratidão dentro de mim, naquele lugar luminoso onde vivem as boas-vindas àquilo que vem por bem, e expresso-a através do meu obrigada, que quer levar até o outro o mesmo bem que ele fez em mim. Ou então dar graças, pela existência minha e do outro, pela possibilidade do encontro - que nos faz criar esse vínculo em que estamos obrigados à construção de humanidade para não sucumbirmos num mundo sem forma. Por isso, em gesto de gratidão, eu digo: obrigada.


Imagem: http://www.imperiodarenda.com/maior-conselho-sobre-ganhar-dinheiro-na-internet/maos-dadas/


25/06/2014

Destinos dados

... mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)

Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.

Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e "brota é depois".

É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.

Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário...".




29/05/2014

Emancipar-se

Diz-me um amigo que a doença da sociedade é a sua incapacidade de emancipação, e não as variadas dependências que nos rodeiam. A incapacidade de pensar por si, de tomar posse da própria vida. 

Desconfio que seja uma espécie de semeadura de palavras. Funciona. Como toda semeadura, brota. Multiplica-se em palavras que já li, e em outras que quero ler. Hannah Arendt aparece-me com o seu pensar-condição-humana, essa complexidade imensa tão simples. Aparece-me Steiner e seu pensar-livre. Sócrates com a frase célebre... Vou deixando que se amontoem dentro de mim, sem lugares onde guardar, sem espaços a preencher. Como em receita clássica de bolo, é bom usar os ingredientes à temperatura ambiente. Espero que tudo se acomode a este dia ora quente, ora frio. Tudo isso ainda é só tempero. Faltam os grandes volumes, os espaços solenes.

Não bato demais a massa, esperando que me segrede o que é mesmo que falta. Não falta, diz-me ela, ele já te disse tudo. E tu esqueces-te de que é de uma palavra apenas que necessitas. Sorrio para a massa, pensando eu em outras coisas que precisam apenas de uma palavra. E só por ter me distraído, a palavra que já estava corre atrás de mim.

Emancipar. Ali, logo no começo, antes da poluição do resto, e eu sem dar-me conta. Resisto à vontade de procurar-lhe de cara a etimologia, todo cuidado é pouco ao juntar as claras em neve à massa. Converso comigo, como se conversasse com o bolo pronto fumegando em cima do fogão.

Emancipar, digo-me, pode ser uma extraordinária quantidade de coisas. Pode ser o grito do Ipiranga, o grito de alforria, o quaes-sera-tamen. Um brado, de qualquer forma. Coisa que se dá em um momento. Emancipar pode ser uma ação repousada e cautelosa, uma assinatura em um papel que confere ao outro a liberdade que não tinha. Pode ser desculpa vazia para o (des)encontro com outro: não, não, eu não quero vínculos, não quero amarras. E os braços desfazem os laços, as vozes silenciam as gargantas, os olhos não veem os sonhos, e a liberdade de ação por nós mesmos escorre de uma banheira cheia de possibilidades. Tememos os nós, como se arriscássemos perder domínio próprio, e ficamos nos eus. Todos esses eus que vivem dentro de cada um, lutando pelas suas pequenas sobrevivências. Tudo, como de costume, uma faca de dois legumes.

Agora sim, a etimologia. Suculenta além da conta. Veja: emancipar é uma derivação complexa da palavra mancípio. (Mancípio é uma palavra portuguesa, e significa escravo. Mancípio é também, diz o dicionário, dependente, seja pessoa ou coisa.) Mancípio chega-nos diretamente do latim: é a junção de manus (mão) e capere (tomar posse, agarrar). Sendo assim, um escravo (um dependente) é alguém que foi agarrado, possuído por uma mão que não é a sua. É quando se junta o prefixo ex a mancípio que chegamos a emancipar. Sair, retirar-se. Libertar-se da mão do outro que nos agarra.

Está certo este meu amigo, e pode oferecer comprovação etimológica: emancipar-se é a saída da situação de dependente. Um ato que pode ser brado de um grito só, mas é precedido por um trabalho colossal, doído e desgastante, e seguido por outro de igual tamanho. Porque de uma situação cai-se em outra, e é preciso vigilância para que esse eu que grita por auxílio não nos ensurdeça para o outro. Porque o outro somos nós mesmos refletidos na amplidão do cosmos. É preciso emancipar-se diária e eternamente. Discernir entre o que quer nos agarrar e o que queremos agarrar em nós mesmos, porque é nosso, porque nos pertence, porque em nós vive o conhece-te-a-ti-mesmo como fonte de força e luz, porque é a única forma que temos para nos darmos ao outro da maneira mais verdadeira que podemos. E aceitarmos o que o outro nos dá, sem nos tornarmos escravos, e sem sermos do outro mancípio.