20/10/2009

Pessoas que parecem não valer a pena

Cansa-me, às vezes, a impressão de que há pessoas que não valem a pena. Detesto-me nesses momentos, mas aqui e ali aparecem inevitáveis. Ainda bem que são muito raros.

Fiquei hoje dando voltas em torno do porquê mesmo é que às vezes há pessoas que me parecem não valer a pena. É deprimente pensar algo assim de alguém, não gosto de mim nessas horas o tanto que devemos gostar de nós mesmos. Prefiro mil vezes inspirar-me naquele Gandhi que dizia que, se cem vezes fosse enganado por alguém, havia de confiar nele pela centésima primeira vez, sem titubear. Prefiro mil vezes acreditar nas pessoas cem e mil vezes outra vez, mesmo que me enganem e me digam quase que aos gritos que não vale a pena o sacrifício de andar a pensar nelas. Só que de vez em quando, e com algumas pessoas em particular, é difícil manter esse pensamento elevado, porque a impressão é de que não valem mesmo a pena os destroços com que nos vestem quando nos pespontam e alinhavam, em meio às dores que provoca o ser espetado por tantos alfinetes.

Às vezes, e mesmo envolta na angústia que só o sentir-me assim provoca, não valem a pena os créditos de celular que gasto para dizer um olá, porque mal me respondem e nem sequer se alegram com a lembrança. Dizer-lhes que a chuva cheirava diferente, e que por isso deu saudade daquele dia em que também chovia, não vale a pena, porque não há ouvidos escutatórios, apenas bigornas e martelos técnicos de um aparelho auditivo insensível às minhas lembranças, que seriam comuns apenas se valesse (e valessem) a pena. E detesto pensar que às vezes sinto que não valem a pena as horas que passo preocupada com a alegria ou o bem estar de quem não vale a pena, como se eu não devesse desejar alegria e bem estar a todos, independente da minha pessoa achar que valem ou deixam de valer a pena.

Mas há pessoas que são mais fortes do que o sentimento que tenho às vezes de não valerem a pena, e mesmo sabendo que talvez não a valham mesmo, lá estou eu de novo agarrada ao telefone para fazer um convite que muito provavelmente será recusado. E eu sei disso. E mesmo assim telefono.

Hoje, porém, tive uma imensa surpresa com uma dessas pessoas que às vezes acho que não valem a pena. Quando menos esperava (e não esperava não porque não quisesse, mas porque ao longo do tempo me desabituei de lhe esperar qualquer coisa), essa uma pessoa surpreendeu-me com um movimento que me permitiu pensar que vale, sim e afinal, a pena. Que vale a pena deitar-me daqui a pouco pensando como é bom ter amigos que não o parecem e de repente se revelam; como é bom manter a porta aberta à surpresa, ainda que seja muito, imensa e improvavelmente improvável; como é bom poder chegar aqui nesta folha em branco e dizer a todos, sobretudo àqueles que às vezes parecem-me não valer a pena, que eu estava enganada, porque não é possível que alguém não valha a pena. Não é possível que alguém não valha um carinho, um afago, um sorriso, um abraço, um chamego, um aperto, um doce de presente na porta de casa. E não é possível que, ao longo da minha vida, eu não me farte tanto dessa certeza, que ela deixe de importunar-me de vez em quando. Quero mais é saber visceralmente que todos valem a pena, e que essa certeza alimente a minha alma, torne-se a minha essência mais potente, a minha parte mais saudável, o meu lado mais brilhante e a minha estrela mais alta. E que nunca alguém que um dia me pareça não valer a pena me retire o poder de ver essa verdade que não quero questionar.

18/10/2009

Queimada galega

Tenho um amigo galego que um dia me deu um pote de barro, que guardo desde então (sendo esse “então” muitos e muitos anos atrás) dentro de um armário difícil de abrir de tão entulhado. Desencantei-o hoje do fundo desse armário. É um pote bastante peculiar, mais parece uma tigela com pés, e a sua lembrança fez com que me pusesse hoje à procura de elementos que me transformassem essa lembrança em algo tão palpável que quase me permitisse roçar os dedos da mão pelas sombras do passado. De quebra, ainda descobri umas informações que me ajudarão a compor esta crônica, até porque está provado que quanto mais se sabe sobre um assunto, melhor e mais facilmente se escreve sobre ele.

Esse amigo que me ofereceu o dito pote faz parte daquele grupo de amigos que já se foi para outro plano. Conhecemo-nos, eu e o César, que era na altura radialista perto da cidade espanhola de Pontevedra, num encontro de praticantes de yoga, e logo descobrimos várias afinidades, que fizeram com que nos frequentássemos assiduamente. A frequência entre as pessoas, expressão que ele usava e que me encantou pelo tanto que tem de abertura e franqueza na disposição de quem faz isso mesmo - se frequentar -, constrói sólidas paredes de amizade. Assim foi o movimento entre César e eu, durante o curto tempo em que durou. Devo-lhe, além do pote e da solidez da sua amizade, o ter podido conhecer um pouco da Galícia pelos olhos de um galego, melhor maneira de se conhecer qualquer lugar.

A peculiaridade desse pote que me trouxe o César à lembrança reside, primeiro, naquilo que o compõe – uma tigela de barro munida de três pés; várias xícaras com alça, também de barro, que se acomodam em volta desse pote, penduradas; e uma concha, feita da mesma matéria, redonda e agradável de pegar. A bebida medieval que se prepara nesse instrumento, a queimada galega, é um exorcismo das energias maléficas que nos rondam, uma espécie de parente próximo do caldeirão dos druidas celtas, sua polêmica mas talvez mais antiga inspiração. A preparação da queimada está envolta em segredos que prometi, a quem veio frequentar-me hoje à noite, não revelar neste texto que por sua vez também prometi escrever. Acho que fez parte desta nossa frequência de hoje o mantermos segredos que levem outros a, quem sabe, se frequentarem. Um dos segredos é o “conxuro” – palavras escritas em idos de mil cento e alguma coisa (data, descobri, também polêmica) que se pronunciam durante a feitura da queimada.

Foi por causa de um ritual assim que eu ganhei o pote de presente.

O César convidou-me a esse ritual por querer que eu vivenciasse o clima celta que ainda se vive nos pequenos pueblos galegos, tomados de silêncio e reverência nas noites de preparação de queimada, mesmo que hoje catedráticos tenham colossais dúvidas sobre a maioria das lendas que correm a respeito da origem da bebida. Na minha lembrança, entrelaçam-se o mar da Galícia, o dia de sol radiante, o frio da noite sem estrelas e a súbita e quase insuportável alegria e felicidade que se apossou dos participantes, libertos de si mesmos e dos caminhos estreitos. É claro que a base material com que se produz uma queimada (augardente, como dizem os galegos) deva ter ajudado, mas isso não explica tudo.

No caso deste dia de hoje, creio que deve ter sido essa frequência de quem veio frequentar a nossa casa. A construção de mais um pouco de uma parede de amizade, muito mais do que separar um cômodo de outro, permite que a casa se amplie e ganhe mais e mais espaços, para as pessoas que chegam e circulam por entre salas, quartos e cozinhas, frequentando os espaços com a leveza e o à vontade que apenas as amizades em processo permitem.

14/10/2009

A laringe da aula de anatomia

Durante o tempo em que me dispus a fazer um curso de enfermagem, uma das matérias que mais me fascinou foi anatomia. Encontrei ainda agora um dos cadernos dessa matéria, listas e listas de detalhes anatômicos, que decorei sem grande esforço porque gostei e me diverti compondo pequenos poemas, a maioria bastante tontos, com as novas palavras que fui aprendendo. Entre essas listas, descobri um texto sobre a laringe, escrito durante uma das práticas de laboratório. A laringe em questão deixou-me pasma durante dias, e não ela própria, em si, mas o fato de repentinamente ter entre as minhas mãos algo que efetivamente produziu som em alguém. Algo que emitiu pensamentos, sentimentos, sustos, alegrias, desesperos, suspiros, entregas de alguém. Achei estranho, algo difícil de apropriação como fato, e revirei a tal laringe de todos os lados, observei-a até conseguir reproduzi-la no escuro do teto do meu quarto, à noite e antes de dormir, acabada de chegar do tal laboratório. Essas aulas aconteciam às segundas feiras, fato que deixou muitas das minhas terças feiras um tanto chumbadas (como diria meu pai daqueles dias após noites de excesso etílico), porque não conseguia dormir muito, especialmente após as sessões de anatomia óssea, que me despertavam cedo e mantinham firmes os propósitos das minhas insônias. Talvez, afinal, escrevi num desses dias, “os ossos guardem a maior parte da nossa essência”.

Como tendo a escrever melhor em meio ao silêncio, gostava de ficar nesse laboratório quando já não tinha ninguém, apenas os restos da vida de alguém e eu, a sós. E como gosto de ler em voz alta, para sentir como soam os sons que juntei numa linha que normalmente segue a do sentimento que atinge o pensar, descobri que essa era a situação em que podia fazê-lo sem que me achassem talvez estranha.

Os pequenos textos que foram saindo de mim nessas ocasiões não valem, muitos deles, a tinta que os escreveu. Como raramente tenho um plano, desses que se seguem à risca para se chegar onde se quer, as palavras pedem pra sair (ou saem sem pedir) e meus portões cedem com muita facilidade. Às vezes, nem mais gonzos têm: estão caídos no chão e deixam as palavras soltas, saídas. Há quem tente soprar-lhes para que voltem, para que demorem, para que se refaçam e levem em si apenas aquilo que pode ser dito. Mas eu não costumo ajudar nenhum portão a colocar-se de volta em seu lugar, com a tranca corrida. Talvez devesse, de vez em quando. E talvez, dessa forma, esses textos produzidos, em meio a ossadas sem certidão, tivessem mais qualidade do que de fato têm.

Ainda assim, vejo bem, textos antigos ajudam a observação dos próprios caminhos, anos passados. Ajudam a discernir, por entre tantos pedidos de socorro que percebo por trás desses versos, a razão real de querer estar ali, entre restos e sobras e espantos. Essa a sensação desse texto, o da laringe, agora revisitado.

“Há uma encruzilhada que se situa na base da minha garganta e observa com seu olho mudo as pessoas e as coisas a quem quero bem. Essa encruzilhada chama-se laringe e eu tenho uma sua semelhante entre as minhas duas mãos. Essas coisas e pessoas que toda laringe observa, a umas quere-as mais perto, porque há muita poeira e ruído, às vezes luz em demasia, e não se consegue ver de que tamanho é cada uma. A outras, dá-lhes a mão ou aceita a que encontra estendida, porque é com elas que quer atravessar a porta do destino. E outras vão se aproximando (outras portas, outras pessoas, outras coisas), fazendo esse olho em minha garganta estremecer, sussurrar pedindo ajuda ao canal de ar que vive pulsando logo atrás dela, mas que nesse momento insiste em fechar-se assim que ela se contorce nesse estertor. Minha encruzilhada sabe informar-me quando alguém assim atravessa o meu caminho. Pensar a própria anatomia como se toda ela se erguesse com vida própria e fizesse o que o bom senso dita, resiste-me a ver a humanidade toda igual e amarfanhada no mesmo destino sem sentido e sem direção. Cada osso que manuseio, cada pedaço deste corpo que me entregam para que o disseque, aproxima-me da minha própria humanidade e devolve-me a certeza de que toda laringe, pulsando ou inerte, fala.”

11/10/2009

A folha da faia

Abri neste começo de domingo um livro aqui em casa, uma edição dos sonetos camonianos que meu avô me deu, esperançoso de que os lesse quando tinha qualquer coisa em torno de oito anos de idade. Não me lembro de os ter lido então, mas depois passaram anos junto à minha cama, porque não há nada melhor do que acordar no meio da noite e ter um poema ao lado para alimentar a madrugada.

Dentre as páginas, pulou-me para a mão uma folha de faia, a faia que cresce no jardim da casa dos meus avós, plantada no dia em que meu pai nasceu, testemunha de várias infâncias, dores, descobertas, segredos. As faias são árvores altas, seres consistentes e sólidos. Mesmo não sendo daquele tipo de árvores fáceis de escalar, porque não têm galhos que acolham os primeiros pés, deixam-se subir com facilidade a partir de certo ponto, quando se ultrapassou a barreira do tronco escorregadio. Ao mesmo tempo, são voláteis e imprecisas, como me atesta, de um lado, esta folha caduca que eu devo ter recolhido do chão há uns tantos anos, e que aqui está, numa construção rendilhada característica, que me enfeitiçou boa parte dos outonos. Porém, são imorredouras quase, e é a mesma folha que me atesta isso, por outro lado, porque as suas nervuras rijas e duras ainda estão aqui, carregando em si a imaginação inteira de uma árvore que só sei que está lá, ainda de pé, porque não resisti e telefonei à minha tia Luisa, e ela me garantiu que sim, que há coisas, aninhas, que nunca mudam.

Não tenho como discutir com ela. Além de minha tia, é minha madrinha, a pessoa que antes de qualquer outra me ensinou primeiro a ouvir e depois a cantar e, entre as duas coisas, a não entender como tantas horas se passavam no relógio quando a ouvia ao piano apenas o que pareciam minutos. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque entre elas emoldura o amor que sente por mim, e eu descubro, nesta folha de faia e na voz através dos fios, que são amores como esse que me transformam nessa que sou hoje, e provavelmente por isso é que o que eu quero, quase sempre, é descobrir todas as maneiras de amar o que está à minha volta. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque quer, na que eu sempre penso que pode ser a nossa última conversa, dizer-me que apesar de tudo, há aquilo que está na memória e não se apaga – a tua faia e o meu piano, aninhas, nunca mesmo que cortados deixarão de existir.

Não tenho como discutir com ela, e nem quero. Prefiro pôr-me à escuta no cais da memória, e descobrir de quantos momentos felizes e dolorosos se compõe a lembrança íntegra de alguém. Amorosa, mas severa, às vezes intransigente, outras pouco perceptiva; lembro-me de uma noite em que esta mesma tia Luísa me mandou dormir, num tom seco, minutos antes de uma sua amiga, cantora lírica, se dispor a cantar não me lembro exatamente o que. E eu ali, intacta na expectativa do ouvir, fui-me arrastada escadaria acima, através de uma casa de paredes de pedra gélidas e grossas, largura igual ao comprimento do meu braço de nove anos; depois escapei da cama e fiquei, tiritando de frio, no cimo da escada, escutando o piano da minha tia, a voz da amiga dela e o choro que não conseguia conter, morta de medo de que me descobrissem nessa contravenção. Mas logo correm à minha lembrança os domingos ensolarados em que me arrebatava da porta da igreja e me levava até Lisboa, intermináveis então 80 km, porque havia um concerto e eu tinha de ouvir. E ela tinha passado a sexta feira procurando ingressos onde já não os havia, porque aninhas, vais gostar tanto!

Esse poder de evocação das coisas é das sensações que mais nos salvam de nós mesmos e dos nossos momentos tristes, que só devem mesmo existir é para que as resgatemos a elas. Salvam-nos da impressão de que tudo está perdido, de que o que foi não é mais, de que estávamos errados na percepção do que nos amou, de que talvez seja mais sensato abandonar o que hoje não cabe no coração, talvez coisas do amor nunca mais... Evocar passados, tanto faz se longínquos ou tão próximos que ainda se sinta o calor da pele que se encostou à nossa, regenera os sentimentos e, se bem dosados, se os deixamos repousar ao nosso lado sem sequer lhes respirarmos em cima, dando graças de que existam, percebendo-lhes com exatidão o contorno, entregando-nos ao reviver que propiciam - não há nada mesmo que mude nunca: nem uma folha de faia dentro de um livro antigo, nem um telefonema a meio da madrugada do outro, nem a invasão de lembranças que nos reinventam a vontade de amarmos os outros como eles são, porque eles são e quando eles são, que é sempre.

09/10/2009

Verba volant, scripta manent

Talvez em consonância com o céu de hoje, acordei de um tom difuso e impreciso, do qual só em parte gosto e mais me esforço por suportar. Meu dia está assim mesmo, difusamente impreciso, e eu encontro-me aqui já há algumas horas à procura do ponto de interrogação, que desapareceu até mesmo do meu teclado. As perguntas que não queriam calar desapareceram nesse céu de agonia, não sei se transformadas em afirmações, se em negações, e aquilo que ontem eram as interrogações da vida está tão difuso hoje quanto o próprio tom do dia. Poderia ser bom, mas não é. Poder ao menos escrever um ponto de interrogação poderia salvar-me da indefinição instalada, porque escrever é a salvação do indefinido, que concretizo nestes símbolos aqui, aos quais falta hoje, lamentavelmente, aquele que mais interroga.

Foi daí que me veio, subitamente, a lembrança deste tão latino "verba volant, scripta manent". Imagino que dessa quase locução tenha derivado o ditado “palavras, leva-as o vento". Se as palavras faladas voam – verba volant -, as escritas ficam: scripta manent. Têm ainda, estas últimas, além do ficar, a grande vantagem de serem, ou poderem ser, recompostas. Até certo ponto (aquele em que passam a ser compartilhadas), permitem o retorno e a mudança dos sentimentos expressos, amanhã, se assim se quiser e tiver vontade. Vontade às vezes de voltar atrás no que se escreve, porque as coisas se alteram, o movimento muda, o olhar transforma-se - e aquilo que se escreveu ontem já se tingiu hoje de outros tons, que em nada se parecem com o presente. De certa forma, a palavra escrita não está no rol daquelas três coisas que se perdem na vida e nunca voltam atrás: ao contrário da palavra pronunciada, a escrita não é nem uma flecha lançada, nem uma oportunidade perdida. A não ser quando enviada, entregue, desdobrada diante de um outro alguém, o que tanto pode complicar quanto descomplicar a realidade.

As palavras escritas estendem-se aos nossos pés, se as decidimos abrir, com a sutileza de um grande e nascente amor; confortam-nos pela segunda, terceira, quarta, quinta vez, se nos esquecemos do conforto que tivemos ao escrevê-las; permitem-nos sonhos e divagações distantes daqueles que pronunciamos em alto e bom som e que prometem - mas não cumprem. Eu, pessoalmente, prefiro em muito as escritas às faladas, provavelmente porque as que escrevo permitem-me voltar ao meu próprio pensamento antes de decidir-me a dizê-lo, ao que pouco refleti e por pouco sai num ímpeto.

Gosto da fidelidade da inscrição precisa e palpável.

As palavras faladas atormentam-se, incorporam de forma excessiva a sua própria substância, alteram o tom sem que a cor de fundo de fato tenha mudado, e só tarde se percebe que pouco importa o que muitas vezes nem sequer se vê.

Por isso talvez o meu refúgio esteja forrado dessas escritas que me acompanham e rodeiam todos os dias, terapeutas silenciosos em franco desgosto quando acordo deste jeito assim, imprecisa, difusa, sem interrogações que me movimentem a alma. Hoje, o que eu queria mesmo era ter mais tempo pra ficar por aqui, às voltas com os caracteres da minha própria scripta manent. Seduz-me, creio, o poder entremear novos pensamentos aos sentimentos que vou acumulando na folha de papel, talvez um pequeno advérbio que provoque uma mudança na percepção do todo, e o permita dinâmica tal qual é, atingindo quem lê no centro do olho.

O peso do dia que acabou de começar diminuiria, se eu pudesse, de intensidade. Pelo peso do dia e por lhe desejar o fim, volto ao que escrevem outros, saboreando numa terceira ou quarta vez com mais calma o que li a correr, saltando de uma linha a outra com o assombro que provocam as palavras que se percebem pensadas para os próprios olhos, para cativarem a própria atenção, para acenderem no outro, que nesse momento sou eu, algo que ainda não se conhecia aceso antes dessas palavras serem entregues.

É por isso, penso, que vale tanto a pena escrever, porque o mundo se esclarece e nos esclarece, e é por isso que é tão valioso, e ao mesmo tempo tão perturbador, tão inteiro, tão arriscado e tão por tudo isso perfeito.

Perfeito, pela releitura que descobre o quanto permanecem os sentimentos que se desocupam de mim, porque lhes ofereço o espaço de uma lauda. Perfeito, porque assim todos eles sentimentos se distanciam e se guardam a si próprios por enquanto numa gaveta, enquanto não se tem a certeza de poder pronunciar por escrito um pedaço que borbulha ao alcance da mão, como o próprio sangue. E ao mesmo tempo perfeito, porque exatamente o oposto de tudo isso: porque me retoma e reaquece, naquilo que me engana e pode afinal já estar morto, mas que vive para sempre nesta memória inscrita, e pode através dela, como o cheiro das madeleines de Proust, inscrever-se de novo na retina do presente.

Se o que se escreve se constrói como um não, deixa de fazer sofrer assim que escrito; se feito de sim, lê-se através dos diminutos e em metades sorrisos que permearam as palavras enquanto se escreviam, sob este céu de hoje que, só por causa destas quase duas páginas, se transformou e é agora mais luminoso e mais leve. E, com ele, todas as verba volant, e todas as scripta manent.

01/10/2009

Ao amigo Peter

Conta-se em Timor que, antes de tudo ser o que é, nada nascia, nem crescia, nem falava, nem morria. As pessoas não envelheciam, tampouco eram geradas, o tempo não existia e, se bem me lembro, nem o espaço era algo muito concreto e palpável (talvez, justamente, porque esse seu primo Tempo não existisse). As coisas mudaram, e passaram a ser como são, no momento em que alguém, ao olhar para o céu e descobrir a lua que, semana trás semana, mudava de figura, espantou-se e, em seu espanto, esboçou uma pergunta. A pergunta lançou-nos neste caminho de morte e vida que nos acompanha desde então, e desde esse dia as crianças passaram a nascer e toda a vida a seguir o curso que lhe conhecemos hoje.

Hoje de manhã, enquanto os jovens do Ensino Médio da Aitiara cantavam, despedindo-nos a todos do nosso vizinho e amigo Peter Dauch, não pude evitar fazer-me perguntas, como essas que conseguiram tirar o mundo da sua imobilidade, uma imobilidade que repentinamente se confrontou com o tempo invadindo as nossas vidas e o espaço avolumando-se entre os que ficam e os que vão. Perguntava-me como é possível que de tão alegres possamos estar tristes, e, de tão tristes, alegres. Como é possível que as lágrimas que despedem o nosso amigo Peter sejam na realidade uma alegria por ter convivido com ele, por ter-nos sido possível observar-lhe a dedicação tranquila e amistosa a causas que não precisaria abraçar, mas abraçava, por ter-nos sido possível apreciar-lhe o gosto pelo convívio semanal com os amigos em uma stammtisch que a partir de hoje com certeza lhe sentirá a falta física. As nossas lágrimas choram-nos a nós mesmos e às saudades que pressentimos. Um pedacinho de mim chora também pelo leitor atento que perco, pela falta que me farão os comentários sinceros e amigos que teceu a alguns destes textos que envio, e que não sei se alguma vez agradeci como vejo agora que deveria ter feito.

Com tudo isto, veio-me uma vontade grande celebrar essa nossa possibilidade de estarmos juntos, essa felicidade que às vezes se traduz em lágrimas e da qual tivemos, neste tempo de convivência com o Peter, exemplos bastantes da sua necessidade e importância. Posso imaginar que nosso amigo gostasse de nos ver reunidos em sua homenagem, em volta de uma mesa, comendo alguma coisa enquanto nos lembramos dele e o carregamos para a eternidade nos nossos pensamentos. As portas para esse encontro estão abertas e qualquer alimento pode ser dividido entre todos, como uma amizade bem cimentada, que podemos compartilhar porque sabemos como multiplicá-la.

30/09/2009

Das estrelas

Às vezes é preciso muito pouco para que um encontro verdadeiro aconteça e, mesmo sabendo disso, decidimos andar em sentido contrário, fazendo com que aquilo que vinha encantadoramente em nossa direção desapareça, porque lhe viramos as costas. Até percebemos sem dificuldade onde seria necessário pisar, o que dizer, por onde ir, mas as situações adquirem vida própria e as coisas encontram caminhos que nos levam muito mais para longe do que para perto. Em raros momentos, porém, a vida parece entrar no foco de um prisma justamente no momento em que a luz do sol incide sobre ele, e aí as coisas mudam de brilho, enchem-se de novidades e bailam diante dos olhos. É ótimo quando isso acontece.

Numa destas últimas semanas encontrei uma pessoa com um mapa astral tão próximo do meu que, como diria minha avó Gloria, “até me fez impressão”. Claro que por causa disso passei a prestar-lhe o triplo da atenção, desconfio que o mesmo aconteceu do lado de lá, basicamente porque, claro, um ficou tão surpreso quanto o outro pela quantidade de coincidências zodiacais, que só vieram à tona porque o assunto era esse, as estrelas. A partir daí, e pena que o tempo foi curto, faltou pouco para que nos sentássemos a conferir oposições, trânsitos e quadraturas, e foi uma pena também que ambos não estivéssemos com os mapas na mão para maior fidedignidade.

Dirigindo de volta para casa, fiquei matutando na quantidade de seres que devem andar por aí à procura uns dos outros, confundidos e aturdidos pelas aparências estúpidas que herdamos ou fabricamos, e que nos cerceiam a liberdade do ir e vir de uns aos outros. Que mais não fosse por isso, todas as artes do espelhar a própria alma, da astrologia ao tarot, já valeriam a pena, por permitir-nos olhar para nós mesmos e para os outros com a facilitação de um elemento externo, que de certa forma nos protege do olhar invasivo do mundo – afinal, o olhar vai na direção do objeto, e não do sujeito que muitas vezes resulta que somos nós mesmos. Pode até ser que se chegue nele, sujeito, mas é por percursos transversos, enveredando por aqueles desvios que nos penetram apenas quando no fundo sutilmente os convidamos.

O volante é normalmente um bom conselheiro e um perfeito inspirador, facilitador do processo de recuperação da memória e do tecer do contato entre experiências distintas. Cheguei ao destino, depois desse roteiro, contente pela volta, e com uma quantidade razoável de novos elementos na bagagem, daquele tipo que se insinua interligado. Cheguei tarde e fui-me deitar, conscientemente bem feliz pela possibilidade de ter visto realizar-se mais uma vez um encontro mal divisado, surpreendente precisamente por isso – porque ninguém estava à sua espera e ninguém lhe barrou passagem. Se desse momento surgirão outros ou não, pouco importa, até porque os milagres não se perpetuam no tempo, mas na memória.

28/09/2009

Da tia Olga

Tia Olga era uma tia um pouco à parte do resto da família, como um satélite em órbita imprecisa, mais da idade da minha avó do que das outras tias que eu tinha. A sua pele mais escura evidenciava os antepassados angolanos que convivem na minha família, sobre os quais por muito tempo uma outra tia, Alice, irmã de meu avô, com seus olhinhos brilhantes piscando como vagalumes, fazia referência baixando a voz e dizendo “ai menina, se não fossem aqueles teus parentes daquela cor, eras um bom partido...”.

Não sei bem o quanto a história da minha tia Olga se fez graças à minha vivaz fantasia infantil, mas o fato é que descobri um pouco da sua história, e contando-a aqui pode ser que alguém da família fique muito indignado e venha a público esclarecer o mistério, ou juntar-lhe novos detalhes que melhor a expliquem, porque eu posso estar muito enganada. (Mas que não tentem convencer-me de que o mistério é ficção: uma vez perguntei ao meu primo Luís de quem afinal a tia Olga era filha e ele olhou-me horrorizado e disse-me em voz baixa “mas então tu não sabes que essa pergunta não se pode fazer?”.)

Ceifando conversas aqui e ali, consegui ao longo dos anos descobrir o seguinte:

1. que a tia Olga veio de Angola nova ainda, porque a minha avó, órfã aos 13 anos de idade, além de precisar cuidar das terras da família, descobriu a existência de Olga e mandou-a vir das suas terras africanas;

2. que para além de lhe descobrir a existência, descobriu que Olga era na verdade sua quase irmã, neta do seu mesmo avô, sr. Manuel Fortunato, sujeito ao que contam bem apessoado e tomado de amores pelo chamado marítimo, ao qual obedeceu embarcando para Angola por volta de 1860, com a mulher Carolina a seu lado e outra que lhe arrebataria o coração à sua espera em Benguela; de Angola, trouxe uma filha com Carolina, Maria Luísa; lá, deixou uma outra, de outra cor, que tornar-se-ia anos mais tarde mãe de Olga;

3. que a tia Olga chegou e foi adotada pela minha avó – o que não deixa de ser curioso, se levarmos em consideração que as duas tinham idade muito próxima, nenhuma em condição sequer de adotar-se a si mesma, quanto mais um outro alguém;

4. que a família do meu avô, anos mais tarde, alentejanamente desconfiada e encarnada na minha infância pela tia Alice, costumava olhar com desdém para essa mácula étnica na família de Ofélia, e se comprazia em desaprovar os natais da família ampliada, ao ponto da minha avó capitular, e tia Olga reduzir-se aos poucos à sua própria e constituída família, que foi se tornando longínqua e distante, e da qual durante muito tempo só se ouviram ecos, todos quase sempre de desgraças que ora envolviam drogas, ora má vida, ora doenças. Há muito tempo que nem os ecos eu ouço.

A morte de tia Olga alcançou-me há quase 30 anos a muitas milhas náuticas de distância, e dela saiu-me um poema que é, dos que escrevi, um dos que mais gosto, feito da memória de um verão aprendendo a costurar, ocupada com o vestido que ofereci à minha avó no seu aniversário em agosto, e com uma camisa que dei a meu pai, mas que nunca chegou a ser usada porque afinal eu desisti de lhe pregar os botões. Menos obviamente, um poema feito da incompreensão infantil daquilo que não é dito, mas que anos depois se descobre e faz doer a carne exposta como se um dardo incandescente a atingisse. Um poema feito da impossibilidade da ternura aberta, e da via de mão única dos carinhos encobertos, sob a luz do caramanchão coberto do azul da glicínia, a salvo dos olhares rancorosos da família incompreensível e dos desnortes que provocam das cores das peles.

A presença da tia Olga no meu imaginário obriga-me a olhar de frente para a minha própria e herdada mesquinhez; alerta-me, quando menos o espero, para o preconceito nosso de cada dia, e o que mais guardo da sua imagem é o sorriso cheio de incompreensão compreendida, uma sensação silenciosa de que o mundo está certo justamente porque se manifesta errado, e porque nos permite reconhecer o errado para poder viver e construir o certo.

26/09/2009

Tajine

Finalmente inaugurei a mais nova panela de casa – uma tajine grande e brilhante, presente pesado de uma viagem a Marrocos, daquele tipo que só carrega na mala quem nos quer muito bem e por isso se presta a tal incumbência incômoda. Demorei a estreá-la, e fico contente que assim tenha sido, porque desta forma tive mais uma desculpa perfeita para escapar à tortuosidade do meu atual cotidiano, e dedicar-me ao que, nas palavras de Gauguin, demanda cabeça leve, espírito generoso e coração grande – cozinhar.

É interessante pensar dessa maneira, sobretudo porque, como tudo o que tem ida, tem volta, essa dedicação propicia justamente que a cabeça se torne mais leve, o espírito mais generoso e o coração adquira o tamanho que melhor lhe cai: o da ampla imensidão. Fico bem feliz, pra falar a verdade, e o princípio dessa felicidade é aquela sensação de pensar e estar com outros, sabendo que depois lhes vou entrar pela boca e passear-lhes as entranhas. Poderia soar escatológico, eu sei, mas está obviamente longe disso – esse passeio é feito de aromas e possibilidades até terapêuticas do encontro entre temperos e enzimas.

Pra missão desta noite, e como a cabeça não estava tão leve nem o espírito tão generoso, e o coração ao lado de ambos lutava por fazer-se grande, achei por bem resgatar tudo o que pudesse remeter-me às terras de origem dessa tajine. Escolhê-la a ela tem seus motivos, e certamente o das terras marroquinas serem leves, generosas e grandes é um dos principais. Por isso a música puxando pro árabe, o tempo à procura das pulseiras e dos castiçais que vieram de lá (buscas infrutíferas, no segundo caso, infelizmente), e até mesmo o lembrar-me da jelaba que era do meu pai e jazia no sótão, coitada, à espera deste meu dia de panela nova. (É por dias como estes que eu me alegro dessa atividade um tanto inconsequente de guardar coisas sem pensar nos porquês. Às vezes, carregam em si a salvação.)

Tenho a sorte de poder abrir (enfim!) os pacotes de especiarias que vieram dentro da tajine, recomendação expressa quando sugeri tal presente. Perco-me pelo olfato assim que solto as amarras dos pequenos saquinhos com cada um dos sabores que demanda o prato. O ar enche-se desses aromas fortes e marcados, a mágica completa-se e eu estou livre do meu peso, minha sovinice, minha pequenez. Ainda bem que a minha casa é cheia, e há quem chegue e espreite, e me encha de perguntas: o que é mesmo que está acontecendo, que cheiro novo é esse, qual é a invenção de hoje, quem é que você convidou pra jantar? Rio-me e respondo: ora, uns amigos, é claro, metade da razão da existência destas paredes serem do tamanho que são. Meus dias cinzentos são aqueles em que me esqueço de que me basta cozinhar para eles para aliviar toda a soturna e monocromática dor desse cotidiano que hoje, de repente, me atacou.

E, assim, cá estou à cozinha, feliz e realizada em meio a legumes, cúrcuma, canela, gengibre, alcaravia, cominho e harissa, tudo branco e liso e limpo como uma casa à beira-mar, quase que sinto a brisa oceânica dos meus primeiros anos a entrar-me pela janela. Em toda casa que habito, tenho uma espécie de fixação por lavar a louça podendo olhar o que está lá fora, como naquela primeira. Hoje, agora, enquanto lavo tudo o que usei, brinco de lembrar-me de outras janelas, e é por isso que a planta que cresce à minha frente, de repente se levanta numa onda do azul da cor do mar do meio do Atlântico. O azul avança em minha direção, e percebo que é o mesmo onde uma das minhas avós se perdeu um dia, esquecida do mundo em volta pelo tanto que a feria. Cor de horizonte infinito, talvez lhe tenha preenchido o espírito de algo que, para nós que a olhávamos de fora, não parecia nada, a não ser um vazio imenso dentro dela mesma. Talvez, apesar de tudo, aquela janela tenha sido o seu encontrar.

Essa minha avó, mais do que cozinhar, gostava de preparar a casa para a chegada dos outros, a melhor louça, as velas que queimavam devagar e sem cheiro, a toalha engomada com alfazema para acalmar os convivas, os talheres de prata rebrilhando e gastos de tão polidos, porque já eram da sua avó. Talvez por causa dela, eu me afaste decididamente dessa janela que quer me engolir, certa de que a sua maior e melhor herança é a que me faz dedicar toda a minha energia às flores que ainda jazem sob o mármore, antes da mão que as coloque no jarro, movimento que faço agora, ao lado da tajine borbulhante, ao mesmo tempo em que uma parte de mim se senta, do outro lado, à espera.