28/09/2009

Da tia Olga

Tia Olga era uma tia um pouco à parte do resto da família, como um satélite em órbita imprecisa, mais da idade da minha avó do que das outras tias que eu tinha. A sua pele mais escura evidenciava os antepassados angolanos que convivem na minha família, sobre os quais por muito tempo uma outra tia, Alice, irmã de meu avô, com seus olhinhos brilhantes piscando como vagalumes, fazia referência baixando a voz e dizendo “ai menina, se não fossem aqueles teus parentes daquela cor, eras um bom partido...”.

Não sei bem o quanto a história da minha tia Olga se fez graças à minha vivaz fantasia infantil, mas o fato é que descobri um pouco da sua história, e contando-a aqui pode ser que alguém da família fique muito indignado e venha a público esclarecer o mistério, ou juntar-lhe novos detalhes que melhor a expliquem, porque eu posso estar muito enganada. (Mas que não tentem convencer-me de que o mistério é ficção: uma vez perguntei ao meu primo Luís de quem afinal a tia Olga era filha e ele olhou-me horrorizado e disse-me em voz baixa “mas então tu não sabes que essa pergunta não se pode fazer?”.)

Ceifando conversas aqui e ali, consegui ao longo dos anos descobrir o seguinte:

1. que a tia Olga veio de Angola nova ainda, porque a minha avó, órfã aos 13 anos de idade, além de precisar cuidar das terras da família, descobriu a existência de Olga e mandou-a vir das suas terras africanas;

2. que para além de lhe descobrir a existência, descobriu que Olga era na verdade sua quase irmã, neta do seu mesmo avô, sr. Manuel Fortunato, sujeito ao que contam bem apessoado e tomado de amores pelo chamado marítimo, ao qual obedeceu embarcando para Angola por volta de 1860, com a mulher Carolina a seu lado e outra que lhe arrebataria o coração à sua espera em Benguela; de Angola, trouxe uma filha com Carolina, Maria Luísa; lá, deixou uma outra, de outra cor, que tornar-se-ia anos mais tarde mãe de Olga;

3. que a tia Olga chegou e foi adotada pela minha avó – o que não deixa de ser curioso, se levarmos em consideração que as duas tinham idade muito próxima, nenhuma em condição sequer de adotar-se a si mesma, quanto mais um outro alguém;

4. que a família do meu avô, anos mais tarde, alentejanamente desconfiada e encarnada na minha infância pela tia Alice, costumava olhar com desdém para essa mácula étnica na família de Ofélia, e se comprazia em desaprovar os natais da família ampliada, ao ponto da minha avó capitular, e tia Olga reduzir-se aos poucos à sua própria e constituída família, que foi se tornando longínqua e distante, e da qual durante muito tempo só se ouviram ecos, todos quase sempre de desgraças que ora envolviam drogas, ora má vida, ora doenças. Há muito tempo que nem os ecos eu ouço.

A morte de tia Olga alcançou-me há quase 30 anos a muitas milhas náuticas de distância, e dela saiu-me um poema que é, dos que escrevi, um dos que mais gosto, feito da memória de um verão aprendendo a costurar, ocupada com o vestido que ofereci à minha avó no seu aniversário em agosto, e com uma camisa que dei a meu pai, mas que nunca chegou a ser usada porque afinal eu desisti de lhe pregar os botões. Menos obviamente, um poema feito da incompreensão infantil daquilo que não é dito, mas que anos depois se descobre e faz doer a carne exposta como se um dardo incandescente a atingisse. Um poema feito da impossibilidade da ternura aberta, e da via de mão única dos carinhos encobertos, sob a luz do caramanchão coberto do azul da glicínia, a salvo dos olhares rancorosos da família incompreensível e dos desnortes que provocam das cores das peles.

A presença da tia Olga no meu imaginário obriga-me a olhar de frente para a minha própria e herdada mesquinhez; alerta-me, quando menos o espero, para o preconceito nosso de cada dia, e o que mais guardo da sua imagem é o sorriso cheio de incompreensão compreendida, uma sensação silenciosa de que o mundo está certo justamente porque se manifesta errado, e porque nos permite reconhecer o errado para poder viver e construir o certo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário