Tenho recebido umas estranhas criaturas no meio das minhas noites, vindas do mundo antigo, todas elas aparentadas com aquilo que nós chamamos de “tempo”. Primeiro foi Chronos, advertindo-me de alguma coisa que na altura só entendi parcialmente, talvez porque me chegou sozinho, ou talvez porque não lhe entendi corretamente a mensagem. Agora, nas últimas semanas, chegou Kairós, em auxílio àquele seu quase-irmão na tarefa de trazer à minha superfície o que me movimenta as entranhas. (É pena que às vezes as entranhas entendam bastar-se a si mesmas, como se estivessem destacadas do nosso universo completo, fossem seres autônomos num projeto ilusório do próprio corpo. É pena, porque há coisas que as entranhas ainda sabem e o resto de nós já esqueceu. Mas não era sobre isso que eu queria escrever, e sim sobre esses meus visitantes...)
Com a visita onírica de Chronos tinha eu concluído algumas coisas sobre o uso equânime do tempo. No caso, o meu tempo, porque pensei que a mensagem fosse pra mim. Dizia-me ele em sonhos que, embora fosse eu a bater em sua porta, era ele que vinha buscar o que lhe pertencia. Confesso que o sonho me perturbou um tanto, sobretudo porque se repetiu, com detalhes que eu própria devo ter lhe acrescentado ao longo dos dias, para mantê-lo aceso e consciente.
Kairós veio trazer-me notícias de outro lado, e fazer-me entender com mais clareza (ou crueza) a mensagem de seu predecessor, que me falava da sequência do tempo e do seu estender-se modular. A necessidade da linha que liga o passado (aquele que se insinua muito mais antigo do que a memória desta infância) ao presente, e este ao futuro, permaneceu nítida durante vários meses, sem que conseguisse eu atinar com os porquês de alguns detalhes. Kairós libertou-me do andar em voltas infrutíferas em torno desse tempo dos homens, que tantas vezes se desentende do nosso tempo interno, ou da sua (nossa) percepção. Com Kairós sobreveio-me o tempo do momento certo e oportuno, que intuitivamente sabemos, mas esquecemos. Essa indeterminação ausente em Chronos, substância ativa na presença de Kairós, alivia-me do som do tique-taque implacável, reduz o poder destrutivo da parte pânico das minhas insônias, mesmo que seja a sua exata e retilínea percepção que tenha me mantido acordada durante as últimas horas.
Com Chronos aprendo a medir-me face ao mundo, sei do percurso preciso, da lógica que faz com que as horas e os minutos se sucedam nos ponteiros do meu relógio. Mantenho o olho no semáforo, a mão ao alcance da agenda, as tabelas em que divido os meus dias distribuídas ao longo da semana, cada pessoa a quem pertenço e me pertence claramente à minha frente.
Com Kairós, mais do que medir-me, entrego-me; não vejo percurso a não ser um qualquer difuso, feito de pontos de luz, que não se sucedem e apenas acontecem, com a beleza singular do que lhes é particular. Fecho os olhos e os ouvidos ao ruído incessante da estrada que ouço ao longe, a minha agenda interna comanda a realidade, e não há tabelas, nem semanas, nem dias, muito menos pessoas que não se pertençam. Só o tempo em que o importante não é urgente, e efetivamente acontece.
Lanço mão desse tempo dividido em dois para somar-me por dentro. Não gosto de viver às metades, até porque gosto de fazer coro com aquele que diz que “metade de mim é amor, e a outra metade também”. Talvez por isso o meu último movimento desta madrugada arranque da minha parede imóvel todas as listas de “a fazer” e “feito” que se acumulam à minha frente, com o poder que eu lhes conferi de me medirem por todos os lados, e me impedirem de ser aquilo que devo ser, no tempo em que devo acontecer.
Mesmo sabendo que é um pensar aflito, angustiante, desde sempre tenho a tendência a tentar compreender se é cedo ou tarde.Vejo-me adiantando para algumas coisas e atrasado para outras. Nos últimos tempos me sinto sempre atrasado, como se já tivessem passado por mim as oportunidades, as chances que a vida nos dá.
ResponderExcluirCom a leitura do seu texto tenho a impressão que cedo ou tarde não existe, mas somente o tempo certo, interno, independentemente daquele modular.
Realmente, o tempo é algo que nos prende e, ao mesmo tempo, nos liberta, cada uma de suas duas faces a seu modo.
Sincronismos:
ResponderExcluirO encontro de dois Kairós no sono de Chronos.