Nos encontros de escrita criativa há exercícios que surgem, assim de repente, e que constituem surpresas linguísticas. Muitas vezes as palavras que os outros me aportam ficam na minha memória mais profunda – transformo-me em porto para dar-lhes guarida, esperando que se sintam em segurança e não me abandonem. Eclodem depois, também de repente, como se aguardassem numa paciência de gestação que eu as alinhavasse às impressões do cotidiano mais prosaico. Nessa troca de roupagem, o dia a dia esgueira-se para dentro da magia que as palavras contêm em si mesmas. Ilumina-se e ilumina-nos. Quase que à maneira de uma Orides Fontela: “A luz está/em nós: iluminamos”. Porque o que vem do outro ilumina-nos. E porque num passe de mágica, a realidade plástica das palavras torna-se movimento livre diante dos olhos. Foi assim, dia desses, com a palavra plâncton.
Graças a M., que estudava afincadamente para a sua prova de biologia, descubro (os demais já sabiam, a única biologicamente inculta era eu mesma) que plânctons não nadam contra a corrente. Permanecem em suspensão, algas e organismos minúsculos, deixando que o movimento das águas que habitam os conduzam, plenos de fertilidade. São seres errantes (plágchian, contam os gregos), e ainda por cima sintetizadores de luz. Iluminam-se. Aos nectons, peixes que acompanham o fluir aquático, acontece o mesmo: acompanham a corrente das águas, tão à vontade nessa entrega que lhes é destino.
Já os benctons (M. com certeza terá uma nota fantástica na prova!) são diferentes: associam-se ao que não se mexe para (talvez) não se deixarem levar pela correnteza. Agarram-se às rochas que encontram, e lá ficam, observando imóveis e previdentes o fluir da água. É bom que haja faróis atentos ao movimento em volta, como guardiões. Talvez os benctons o sejam, e assim plânctons e nectons fluam com mais tranquilidade por entre a espuma e as ondas.
Todos vivem na água, seu elemento de base. E é pela água que eles me interessam: vejo-a por todas as partes, até nas mais sólidas do corpo dos outros. Enquanto escrevem, estes meus alunos tão aplicados e plenos de entusiasmo, nem percebem que os observo, procurando por entre seus gestos, por entre as pausas que fazem enquanto procuram no ar a palavra que lhes falta, a presença da água que trouxeram para dentro da sala, com seus plânctons, seus nectons, seus benctons, todos esses seres dóceis e sensíveis ao toque do elemento líquido na sua constituição. As mãos fluem pelo papel, vejo-as tornarem-se menos densas, brincando com as palavras que escorregam dos dedos para dentro da folha em branco. Uma ri, sozinha, naquele alheamento de quando as palavras nos fazem cócegas; outra, escreve e apaga, num meneio de cabeça que indica que não, ainda não é assim que quero dizer o que quero dizer; um outro está absorto, e é ele quem mais parece procurar as palavras que ainda lhe faltam. Porque os tempos são diferentes e este, que precisa do seu próprio tempo para desentocar as palavras das cavernas em que brincam de esconder-se, sorri finalmente e começa a escrever com um brilho aquático por entre os olhos. Eu mesma estou mais líquida, da cor das lágrimas que escorrem por dentro, como sempre fazem as minhas águas internas quando as palavras assumem seu lugar ao leme desta sala em que se escreve.
Ana, seus textos são uma delícia de ler, um prazer que as palavras benditas, bem ditas trazem.
ResponderExcluir