Ando com muita vontade de ter mais um cachorro, além do que ganhei há poucas semanas atrás. Com esse que já se desenha na minha imaginação, serão três, e eu considero que me sentirei bem melhor com esses três guardiões por perto. Sempre gostei de cachorros, não é nada demais, mas decidiram investigar-me, aqui em casa, porque a revelação de “estou com vontade de ter um pastor alemão”, a meio do almoço, fez todos pararem e me olharem espantados – “o que foi isso agora?” parecem dizer os olhos todos que aqui em casa ainda por cima via de regra se parecem.
Também não sabia, devolvi-lhes a pergunta como veio e prometi que me indagaria. Claro que começou a especulação, e logo quem o conheceu se lembrou do Argos, cachorro do meu pai, pastor alemão, que morria de medo de rojões, o que era um problema visto ser vizinho do estádio do Pacaembu. Mas não – não era do Argos, porque a lembrança nada tem a ver com o fiel companheiro do Ulisses que eu acho meu pai queria tornar-se. Poderia até ser (não meu pai Ulisses, mas o desejo do cachorro por esse motivo), considerando que já tive um cão chamado Camões e uma égua que atendia ao chamado de Florbela. Mas não.
Lembrei-me, na verdade, do pastor que acompanhou a minha infância e muitas das consultas a cavalo do meu avô, correndo infatigável ao seu lado. A partir de uma época, não sei por que razão, passou a viver acorrentado a um desses arames que ficam esticados e permitem que os cães vão e venham, a infelicidade traduzida numa linha reta inescapável. Eu gostava bastante dele, imagino que porque era grande e tinha olhos cor de amêndoa torrada. Ele não me tinha grandes simpatias, talvez porque eu gostasse de lhe ocupar a casinha enquanto me procuravam pela casa e eu não queria ir deitar-me. Rosnava quando tentava soltá-lo da corrente que as minhas mãos não conseguiam quebrar, e, apesar do medo, a vontade de soltá-lo fazia-me tentar uma e outra vez. E ele sempre rosnava. O cachorro era do meu avô, chamava-se Black, e quando nos mudamos de país eu senti-lhe tanto a falta quanto senti a da minha avó. Decidiram dar-me outro cão, um cocker preto a quem, no desespero, chamei de Blackie.
Anos depois, Black acolheu com imenso carinho o pequeno Blackie quando este último teve câncer, poucos meses antes de morrer. Deixava-o dormir em sua casinha enquanto ele dormitava fora, dividiam a mesma tigela de comida e passavam dia e noite um ao lado do outro, um acorrentado, o outro doente. Eu já não cabia dentro da casinha e angustiava-me ver aquele que tinha sido meu álibi para tantos passeios noturnos esvair-se em sangue ao lado de Black, que me olhava com os mesmos olhos amendoados da minha infância. Sem saber o que fazer com esse sentimento, deixei um aos cuidados do outro. Dormi melhor depois de decidir assim.
Talvez seja esse sentimento de poder entregar que me faça ter vontade de ter um pastor. Certamente terá um nome em nada parecido a todos esses que povoam o passado, porque isso de dar nomes aos bichos está se tornando uma epopeia aqui em casa, mas desconfio que deva ter olhos que olhem para meus filhos e os ajudem a aprender a entregar o que for para entregar, quando for para entregar.
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