02/01/2010

Palavras grandes que recriam saudades

Tive uma colega angolana (creio que no 4º ano) que chegou a Portugal logo após a Revolução dos Cravos ter se apoderado das ruas. Não vou saber agora por que mesmo é que ela e sua família chegaram tantos meses antes de Lisboa ser inundada pelo que, na altura, eram chamados de “retornados” – oriundos dos novos países tornados independentes em 1975, que pelos mais variados motivos preferiam manter a nacionalidade lusa a assumir a incerteza de uma nova nação, africana e cheia de horizontes. Incerteza por incerteza, não sei qual será a avaliação que farão hoje os atores daqueles dias, mas certamente os bairros de lata por toda Lisboa e arredores não parecem tão diferentes das cidades de caniço pela África ex-colônia dos dias de hoje.

A Glória veio de Angola, nascida em Benguela, oeste do país, e, dentre as muitas coisas que trouxe na sua bagagem, tinham grande efeito sobre nós em primeiro lugar a sua fada madrinha, que se presentificava repentinamente nas quinas do teto da sala de aula, fazendo-a gritar histérica nos momentos mais aterradores da vida escolar (as chamadas orais) e permitiam-nos dois dedos de ar fresco enquanto Dona Esp’rança a acalmava e jurava que “ali não há ninguém, menina, acalme-se lá...”. Desconfio que Glória tivesse esses acessos de visitação da sua madrinha fada quando não tinha a menor ideia do que tratavam as perguntas que estavam a ponto de lhe fazer, ou quando realmente estivesse morta de medo desse país estranho que não reconhecia as bagagens que ela trazia e a fazia refugiar-se nos braços dessa madrinha de nome impronunciável.

Disse-me, numa das raras vezes que fui até sua casa, burlando a vigilância da minha avó, que não podia mais cantar, que era o que mais gostava de fazer, porque só sabia cantar na “língua dos pretos” e tinham-na proibido de o fazer. Dizia que lhe diziam que esquecesse e se habituasse ao novo país e à nova vida, mas a mãe que mal saía da cama, o irmão desaparecido e a falta do pai que ninguém sabia ao certo onde estava, não permitiam que nada saísse da sua memória. Glória tinha saudades de tudo, do cheiro, da cor, da impressão do vento quando ia à praia e os vestidos voavam porque se aproximava uma tempestade, das viagens à ilha de São Tomé, de onde voltavam com café e cacau, da vida à beira mar com sempre sempre calor. Glória detestava a chuva miudinha e os dias gelados, a impressão de que nunca mais nada estaria quente e seco. Não sei porque, mas lembrar da Glória recria-me as saudades que nunca tive dela, como se tivesse sentido a sua falta ao longo dos últimos 30 anos. Muito raramente me lembrei dela, sequer consigo ver-lhe as feições claras na minha memória fraca, mas comove-me extraordinariamente o pouco de que me lembro.

Havia outro efeito que produzia sobre nós, que eram acessos de riso cada vez que uma palavra grande a deixava em pânico. Hoje, imagino que realmente ela sofresse, mas na altura só ríamos e ríamos e ríamos, porque o pânico dela a fazia falar coisas que ninguém entendia, na tal “língua de pretos” – provavelmente uma das variantes do umbundu que mais se fala em Angola. Era realmente estranha, e hilária, a Glória e o seu pavor de palavras grandes.

Fui lembrar-me da Glória justamente porque descobri que esse medo, que não é tão incomum, tem nome - quem tem medo de palavras grandes sofre de (pasmem!) hipopotomonstrosesquipedaliofobia – porque hipopoto significa “grande”e vem do grego; monstro, do latim, já se sabe porque não mudou nada; sesquipedali, também do latim, é ao pé da letra “palavra de um pé e meio de largura”, o que é grande realmente; e fobia, igual a medo.

A Glória, coitada, morreria de medo da palavra que fala do seu medo. (Como será mesmo que os hipopotomonstrosesquipedaliofóbicos se referem ao seu distúrbio?) Não existe maneira de descobri-la, depois de tantos anos, nem há na verdade motivo que me leve a isso, e esse impedimento e falta de motivo faz com que reveja diante dos olhos as imagens borradas de tantos que ficaram presos no passado, de onde acenam, como hoje a Glória, desesperados por se tornarem presentes e me fazerem entender que, sem eles, eu não seria quem sou, ainda que não me lembre de muitos dos seus nomes, da entonação das suas vozes ou do brilho dos seus olhos, ou até porque mesmo é que me lembro deles.

É claro que é a minha imaginação que os pinta desesperados assim; é mais provável que seja eu a procurar-me no passado em desespero, quando me parece tão difícil alimentar o presente com uma perspectiva de futuro, tudo tão enclausurado e preso dentro dos tubos finos das convenções – como aquelas que diziam, a Glória, que ela não podia cantar na língua dos seus pretos, que era, tanto quanto deles, a sua própria. Esse emaranhado de impressões de pessoas que já me foram e não me são mais, salva-me dessa agonia que deve ter sido a da Glória, talvez. As pessoas de hoje, num futuro quem sabe próximo, também se emaranharão em mim, e delas terei saudades, e por elas chorarei desconsolada por não as ver refletidas no espelho que construí, mas sabendo que com cada retalho de espelho desfeito posso construir um mosaico que reflita o mundo por onde andei.

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