06/01/2010

Fernão Lopes e o alobairro

Dei comigo ontem à noite lendo Fernão Lopes. Sempre que se põe um pé além das cantigas dos trovadores, aparece esse senhor recém nomeado guarda mor da Torre do Tombo – ventos renascentistas o faziam escrever sobre o povo, embora se dedicasse ao registro do que faziam os reis. Atento às mudanças dos tempos, imagino que parte ativa da sua mesma engrenagem, Fernão Lopes era cronista, dando continuidade a uma profusão de escritores das vidas e dias dos reinados por boa parte da Europa, mas de um modo revolucionário, e precavido, porque com isso não perdeu o emprego. Mescla mais ou menos apurada do ímpeto historicista e do cultivo literato, dependendo de quem se tratasse, os cronistas portugueses deixaram uma abundância de registros interessantes sobre os primeiros séculos do país. Das prateleiras da Torre do Tombo que Fernão guardava naqueles idos de mil quatrocentos e alguma coisa, servem de matéria prima aos autores dos modernos romances históricos – quem gosta do gênero, e quer ler algo que acrescente, leia “A casa do pó”, de Fernando Campos.

Um excerto de Fernão Lopes aqui, outro acolá, já havia lido. Mas nunca tinha parado para ler uma das suas crônicas de ponta a ponta – escolhi uma das muitas em que assoma a vida fervilhante de Lisboa, cidade que de repente me atinge, por culpa desse homem antigo, com umas saudades líquidas, da cor e da textura das águas do Tejo. Diante delas passam os sentimentos do povo que palmilha Lisboa o dia inteiro, personagens anônimos que através da prosa acurada de Fernão, adjetivada no que há de mais preciso e exato, ganham vida e transpõem séculos, instalando-se aqui ao meu lado; quase lhes sinto o cheiro a mar violentando o rio através do estuário e os gritos enervantes das gaivotas em volta das traineiras de pesca.

Quem me fez lembrar Fernão Lopes, fazendo-me galgar as prateleiras onde o guardo, é outro cronista, mas este moderno, contemporâneo, combativo – Baptista-Bastos. Escritor e jornalista, ativo militante na Lisboa da resistência salazarista (e por isso mesmo demitido e perseguido antes de 74), publicou em 2001 um livro em que reuniu suas crônicas, todas elas sobre Lisboa. De certa forma cansativas, no dizer de quem as lê ao mesmo tempo em que eu, roubando-me o livro quando me distraio com outra coisa, depois dá-me trabalho lembrar-me de onde estava, usa uma linguagem rebuscada, que não se usa mais, e um estilo saudosista bem ao gosto do mais confesso alfacinha. Tem, no entanto, passagens bonitas e sensíveis, como a crônica que dedica à Rua da Bombarda, relembrando personagens de antes e de agora, como a família de indianos chegados de Moçambique ao fim do sonho imperialista português, e que proliferam pela rua, dando-lhe intenso colorido e nova sonoridade, talvez ressuscitando o ambiente da Lisboa dos séculos das navegações, fervilhante de pessoas e coisas e situações que pareciam de outro mundo. (Em outra destas suas crônicas, Bastos diz de um viajante de quinhentos que, ao voltar de Lisboa, teria exclamado: “Vi o mundo numa cidade”. Em outra, faz-nos água na boca, ao menos na minha que tem a sua memória, descrevendo as minúcias das tascas dos bairros antigos que se debruçam sobre o Tejo, cada uma com a sua especialidade, saladas de pimentos com sardinhas assadas, coentradas de cação, cozidos à portuguesa e jarros de vinho da pipa saltando animados de página em página.)

Na introdução a esse livro (que se intitula, diga-se de passagem, “Lisboa contada pelos dedos”), encontrei explicação para uma interrogação que me persegue há meses: porque é que, a estes textos curtos que escrevo, não os consigo guardar numa gaveta, como faço com outros mais longos, sejam contos que me satisfazem ou projetos tímidos de romances que se arrastam ao longo dos anos e aos quais não decido dar por findos? Diz o mestre Bastos que não há cronista sem jornal: “crônica é uma matéria para jornal; ninguém escreve crônicas exclusivamente destinadas a livro. Sem jornal não há cronista.” Jornal remete ao ritmo diário, à sua antecessora “jornada”, o caminho que se faz em um dia; no século XVIII, “jornal” era o pagamento de um dia de trabalho, e só no século XIX veio a significar uma publicação periódica de notícias, diretamente das terras francesas. O nosso alobairro vai se compondo, aos poucos, como jornal deste nosso bairro – dos avisos de carona aos relatos da seção policial, passando pelas às vezes quase que previsões meteorológicas, caminhamos a passos largos para a constituição efetiva de um periódico diário da Demétria, com a vantagem de sermos todos autores e leitores.

Fico mais tranquila - vinha me inquietando essa coceira no dedo, a sedutora tecla send atormentando-me em tons neon madrugadas adentro, e eu sem saber se estou atravessando os obscuros e mutantes limites do razoável. Agora, sei que obedeço aos cânones do gênero, mesmo que isso não me entusiasme em demasia, e apoio-me no que dizia o poeta: antes de subverter, entender. Tudo isso deu-me, ao menos, motivo para três coisas: reler Fernão Lopes, apresentar o Baptista-Bastos a quem aposto o desconhecia e expedir mais uma crônica, para o dia de hoje! Boa quarta-feira a todos!

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