das ventanias
01/04/2023
Linha de horizonte
31/03/2023
À porta da casa
E assim, estou de volta. Quem me abre, ou reabre, as portas desta casa, é esta porta. Esta porta como todas um lugar por onde se atravessa, uma passagem, um lugar por onde se deságua.
Por esta porta específica, feita de tijolo e ferro, passam os meus filhos e aqueles a quem amam. Nem todos, mas os que este espaço ocupam. Atravessam-na, dia após dia, talvez sem reparar que o fazem, e que o seu passar ficou preso na base da minha retina. Assim como há um fora e um dentro, há um antes e um depois. E depois que se atravessa uma destas portas, que se resguardam e se agarram a nós tão cheias de sentidos, não se sai igual do outro lado. Nem é preciso tentar: os espelhos refletem outra pessoa, as ruas abrem-se a outra forma de passos, pode parecer que se é a mesma - mas não se é. A porta foi atravessada. A viagem foi feita.
É preciso, passadas experiências assim, saboreá-las. Devagar e ao longo dos dias. Degluti-las. Extrair-lhes sentido e sumo, sem no entanto as esgotar e delas abusar. As experiências também têm vida própria, e merecem descanso tanto quanto preparação. Às vezes, o silêncio a seu lado é a melhor conversa.
É sobre este retorno que a minha Casa do Vento constrói os seus novos alicerces, sabor e pertença de imagens que vejo e sinto e cheiro diante de mim embora vivam já no passado. Pertença, eis a palavra chave.
É esta uma nova viagem dentro da viagem já feita, desta vez por dentro, desta vez pelas águas límpidas das veias. A quem a quiser acompanhar, eu dou as boas vindas. Que seja uma viagem a muitas mãos, tantas quantas me caibam na memória.
25/10/2021
Uma nova casa!
29/07/2021
Ser equânime
11/07/2021
Zé do Laço em noite de Lua Cheia
É noite de São João, também. E Zé do Laço, que nem católico se declara, aprecia os folguedos, gosta da fogueira, entra na roda com assobios e gritos de alegria. Podem parecer de outra feição, mas é de pura alegria. Chega perto dos músicos, gosta do galope que escuta. Seus olhos claros gostam do que é puro, do que é verdadeiro, do que se levanta da mesma forma que se deita. Subterfúgios não fazem parte da sua cartilha.
E se afasta. Dois, três, vinte passos. Corridos e desgalopados, em marcha a ré, vendo sem olhos os tocos de que desvia. Vê o todo, percebe o desalinho de um lado, o encantamento do outro, o despreparo logo ali, a entrega, a presença, a alegria, o pouco ou muito entendimento - com o coração, não com os olhos. "E não é visão", segreda-me ele baixinho. "Isso que tu vês não é visão, é sensação de outro mundo encostando neste daqui. Aprende a ver desse jeito para escapares das mentiras deste mundo. São muitas, e andam te caçando. Reverte teus passos, filha minha, endireita essas costas e dá rédea pra tua cavalgadura. Tem léguas de caminho pela frente, e a escolha tá feita: não é agora que ninguém vai arrepiar caminho. Se botas o olho no atrás, o que vais ver é o atraso em que te ficaste, e ressentir de novo com isso, e perder o alinhamento dos passos."
E repentino se cala, e grita"Ê boi", e corre pra roda, pra apertar o menino que quer se desalinhar na moça. "Fique quieto, seu moço, que ainda não está na sua hora. Cuide de sua montaria, olhe bem o tamanho dos passos: tu tá é querendo dar uns galopes com pernas fracas de criança imberbe. Sossegue, menino, sossegue."
Olha de longe um outro (eu posso vê-lo daqui, seus olhos parecem faíscas), e ao mesmo me pergunto se ainda me dirá alguma coisa, se tem uma coisa que busco sempre é instrução. Foi só pensar. Ele me olha, de um lugar fundo que está dentro de mim mesma, e numa volta rápida de olhos que me desconcerta - o tempo todo, ele me vigia?
"Ora veja. Instrução é todo dia, cada madrugada que tu olha pro céu e vê esse tanto de estrela, que alumia sem se aborrecer com quem aproveita sua luz. Vê tu, filha minha, se as estrelas se ocupassem de quem as aproveita, estavam todas era tristonhas. O importante é brilhar no seu lugar, quieta e fazendo sua parte. De longe, o que nós vemos é a constelação. De dentro dela, é quase nada que se vê. Quando se cavalgam estrelas, é preciso confiar que tem uma porção delas cavalgando junto. Senão, é sentir solidão, ficar acabrunhado, entristecido. E pra quê? Pra descobrir (e isso é só muito mais tarde, na hora do pó chegar) que havia muito mais luz na estrela pequena do que no lampião que ardia em cima da mesa. Sossega tu também, e faz teu trabalho."
Seu Zé do Laço só gosta de trabalhar debaixo de céu. Não entra debaixo de teto nem pra comer, nem pra dormir, nem pra dançar, que é graça que adora. Se lhe dão coberto, desaparece. Aliás, nem aparece. Sua existência é livre e aberta, e é para que saibamos do que se trata que ele vem assim, gritando pra sua boiada, que desce os morros, atravessa os rios, galopa as veredas verdes e abertas. Chega de todo lado, a boiada, e é tanta, mas tanta, que cansa os olhos querer contar as cabeças. De longe, quem vê, é só poeira suspensa no ar. Só um alevante de chão fino que colore o horizonte de laranja. Cor de terra é cor de boiadeiro, e o berrante que ainda não se escuta já se anuncia no longe.
Zé do Laço afirma o cabo e faz relampejar outra vez o couro no chão. Só escuta quem ele permite, e é faísca e relâmpago ao mesmo tempo, o estampido de quem gosta de cortar o mal no primeiro golpe, assim, na raiz, fundo e preciso. Assim se vai, dando passos atrás pra que ninguém lhe ameace as costas. Bate os pés no chão poeirento e manda a tropa subir: pras alturas, minha gente, que os bois já deram dianteira!".
Foto: Beatriz Castilho
24/05/2021
Uru'ku
Uru'ku, em tupi-guarani, significa vermelho, e essa é a cor deste Caboclo altivo, Caboclo de Xangô. Não costuma demorar-se em explicações, este amigo, mas está atento aos sinais do que deve fazer e raramente hesita ou suspende um passo iniciado. Com ele, a cada dia, aprende-se algo a mais sobre a própria e verdadeira estatura, o que nos diminui e o que nos faz crescer. Paciente no meio da mata, parece esperar há décadas. Não sorri nem entristece, o seu olhar sereno não se altera, nem no perto, nem no longe. O urucum, sempre a seu lado, confere a força e também o poder de limpeza, de aquecimento e de queima abrupta e ardente.
Vermelho é a cor do dia de ontem, dia do Divino, dia de festa nas terras açorianas dos meus avós e da minha mãe. Fartura e fraternidade nas mesas postas ao longo das ruas, cada Império coroado, todas as barrigas saciadas. Uma das coisas que mais aquece a minha alma umbandista é poder viver quem fui e quem sou num mesmo tempo, sem precisar deixar pedaços meus para trás. O fogo de Xangô brilha nas fogueiras dos meus avós que jamais ouviram esse seu nome e, quando o acendo, como ontem cedo antes que o Sol do dia de Pentecostes nascesse, saúdo todos os dons que Deus faz brilhar na Terra, em cada um de nós, em cada criatura, cada canto, cada planta, cada forma de vida.
Há gestos dos Guias Espirituais que foram feitos para reverberar ao longo de anos. Eu demoro-me em muitos deles, e me surpreendo, ano a ano, com a forma multifacetada com que permitem que olhemos para o mundo e para nós mesmos. Não sei se ando devagar nessas observações, se me demoro tempo demais, se me perco entre tantas coisas. Talvez pudesse tudo ser mais rápido. Mas Vó Chica, que é quem me coloca o urucum diante dos olhos para que o escreva, balança a cabeça achando graça. Ela já me disse, e eu já entendi, mas esqueço: o Divino, esse Ser de Elevado Espírito que desce em nossa direção, dá-nos uma certeza: a de que existem dons que não pertencem ao mundo terreno, mas ao mundo espiritual. Dons do Espírito que nos auxiliam, nessa caminhada aqui na Terra, a não termos a pretensão de que tudo podemos, somos e fazemos - basicamente porque (assim entendo eu) não conseguimos ter completa percepção do que seja de fato a nossa essência. Teríamos menos liberdade para ir e vir, errar e acertar, se assim fosse.
Por isso, ao nascer deste lado, esquecemos o lado de lá. E às vezes, quando em terra, o Caboclo Pena Vermelha tinge-nos o centro da testa de vermelho, esse vermelho do urucum que na árvore diante da janela, num determinado horário do outono, brilha como se tivesse brilho dentro. O brilho é esse mesmo da foto ali acima - não tem retoque nem filtro, é desse jeito mesmo que se mostra, por pequenos minutos a cada dia - um milagre que custo a acreditar, a cada dia que vejo.
Urucum é uma erva de limpeza e regeneração. Não é apenas Xangô que a impregna: Oxumaré e Egunitá também, seus mil frutos em cada casulo, sua cor vermelho fogo. Não deve ser coincidência que logo hoje, dia 24 de maio, seja dia de Santa Sara Kali, que vem a ser a forma sincretizada de Egunitá, Orixá de Umbanda, que é fogo também - fogo abrasador que arde, faz tremer, sacode, purifica. Como em tudo, é preciso haver fundamento, para que existam bases sobre as quais possamos avançar em segurança. Nos banhos, é bom saber o que invocamos em nosso benefício ou benefício de outros. Urucum, além de fazer arder e sacudir, também fortalece, endurece e mantém, e aqui vemos Xangô assomar por trás da matéria vegetal. E ainda liga, dissolve e derrete, sob o olhar e cuidados de Oxumaré. As ervas são um mundo sem fim de aprendizado e possibilidades. Nelas, o Divino torna-se cor, cheiro, umidade, secura, calor, frio, e se abrirmos bem os olhos da alma, veremos mais do que as aparências nos mostram, e nem sempre enganam.
31/01/2021
As sete tias de Manuela e o boldo do quintal
- Minhas tias tricotavam no outono as mantas do inverno. Eram sete, essas minhas tias, sentadas lado a lado, formando uma concha debaixo das parreiras de uva do quintal da minha avó. Minha mãe sentava-me ao lado dela. Eu era bem pequena, mas se fecho os olhos lembro-me como se estivesse lá. Entregava-me o cesto com a pilha de novelos, um de cada cor, bolas trançadas num emaranhado agradável que me encantava e aquecia as mãos. Eu tinha pra menos de 6 anos. Elas tricotavam sem parar, longas línguas de tecido escorregando de seus regaços em cascatas mornas. Tia Alice era quem melhor e mais rápido tricotava, os olhos miúdos sorrindo o tempo todo. Tricotava sem nem olhar o que as mãos faziam. A minha tarefa era desfazer os nós dos novelos. Passava o tempo fazendo e desfazendo novelos. Ao primeiro nó, procurava a ponta com os dedos, enquanto mantinha os ouvidos atentos às palavras dessas tias. Não eram muitas. De vez em quando era um "Deus nos acompanhe", de outra um "Orai por nós", daqui a pouco um suspirado "Que em vida nos tenha". Ficou essa coisa de tecer-se a vida do espírito nos meus ouvidos.
Mas agora o que Manuela quer é autonomia - e de presente recebe mais duas palavras: independência e liberdade. É um rosário, eu quase lhe digo, um rosário feito de três contas, agrupadas sempre nessa mesma ordem: a autonomia, logo depois a independência, e por fim a liberdade. Uma reza. Um terço só de três. Cosidas umas às outras, como os três pontos que tia Marina cantava ao tricotar: "Foi um, foi dois, foi três. Foi um, foi dois, foi três".
Havia plantas nesse quintal - Manuela nem precisa contar, adivinha-se. De um lado mamão, do outro mamona. Parecidos, mas de intensidade diferente. Quando o problema é grande, mamona. Quando é mais ou menos, mamão. De outra vez, conto da diferença. Agora, os meus olhos já se detiveram no boldo.
Tão comum, o boldo. Tanto, que se encontra em qualquer lugar, e qualquer pessoa sabe que é bom para os males do fígado.
Ewé Bàbá chama-se o boldo em yoruba: a erva do Pai. Tão fundamental nessa cultura que se espalhou por todo o mundo pela presença africana. O mundo é mais africano que qualquer outra coisa, nós é que não sabemos reconhecê-lo, e perceber o quanto é comum e está em nós todos, nos deixando mais Humanos só por ser.
Há muitos boldos, na verdade. Todos têm basicamente as mesmas propriedades e servem aos mesmos fins. E todos guardam em si histórias de luta e resistência, conhecimentos seculares da época em que o óbvio era saber que espírito e matéria são indivisíveis porque antes de sermos matéria (e depois também) somos espírito. Boldo também é herança Mapuche - esse povo antigo e sábio das regiões medianas da Argentina e do Chile. Mais de 5 séculos antes de Cristo já lá estavam, muitas centenas de milhares quando a Coroa Espanhola sangrou essas terras. Boldo deriva de "folo" - a maneira com que os mapuches chamam o boldo que cresce espontâneo e livre nos Andes. A língua Mapuche chama-se Mapudungun - um primor linguístico que significa "o som da terra". Quando um Mapuche fala a sua língua, fala o som da terra.
O boldo, ou malva santa, como é chamado em rincões do Brasil, tem aliás uma infinitude de nomes. Um deles é tapete-de-Oxalá (Ewé Bàbá, lembra?). Como esse Orixá do panteão yorubano, o boldo traz clareza ao raciocínio (o fígado é um cérebro potente, enevoado turva nossos pensamentos), expande a consciência (justamente porque promove desobstruções dos canais densos e dos sutis também), equilibra o ego (o gosto amargo não agrada a esse nosso companheiro eterno) e, por fim, alimenta o nosso chacra coronário, a morada do nosso contato com as realidades não palpáveis.
Escutar o som da terra, como fazem os Mapuches quando falam, equivale e em muito à meia lua das sete tias de Manuela. Equivale a essa busca premente por autonomia - porque sem ela dificilmente se consegue independência, e sem esta a liberdade é ilusória. É preciso raciocínio claro, equilíbrio das vontades, expandir a consciência para saber mais do que se sabe. Para ser autônomo é preciso estar fortalecido, é preciso eliminar obstruções, é preciso animar a alma, é preciso aquecer o coração. O pé de boldo de Tia Marina sussurrava tudo isso à roda das sete tias.
As coisas mais importantes costumam ser as mais simples. Uma folha de boldo espremida num copo de água, e deixando ali marinar durante um tempo, dá ao fígado a limpeza que ele precisa depois de excessos - não só de álcool ou de comidas fartas em gorduras, mas também de discussões azedas, de desgastes dos afetos, de cansaço psíquico, de muito tempo pensando ou em frente às telas dos computadores, nesta vida online que nos acometeu. Auxilia a digestão justamente porque dá um alívio ao fígado e à vesícula biliar, estimulando as suas funções. Um escalda-pés de boldo (bastam umas 3 ou 5 folhas em 1l de água fervente, com cuidado para não se queimar e para não tomar friagem depois) auxilia as insônias. Um banho, feito de pescoço para baixo ou de coroa (ou seja, banhando também o chacra coronário, a nossa Coroa Espiritual), tranquiliza, fortalece a fé, a coragem, a determinação, tudo aquilo que o fígado, com seus processos purificadores, alicerça em nossas vísceras.
Esqueci-me de dizer a Manuela de que chá e banho e escalda-pés de boldo farão bem nestes momentos de mudança, de transformação, de transplante de raízes. Porque quando mudamos, no momento exato da mudança, de erguer um pé quando mal acabamos de colocar o outro no chão - é preciso mente clara e coração em paz. É o que o boldo, e as bênçãos de Pai Oxalá, nos oferece, e pode nos servir a todos, enquanto aguardamos pelo lugar para onde vamos.
19/01/2021
Divino amargo
Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.
Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.
"Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.
A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.
Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.
Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".
18/11/2020
Para Tarot, leveza
Às voltas com a preparação dos módulos do curso de Tarot que em breve será lançado, abro a minha coleção de perguntas sobre ele, uma longa lista alimentada pelas que me fazem e pelas que eu própria tenho, a respeito desse instrumento tão especial. É dessas perguntas que o curso vem nascendo vigoroso, logo após uma parte dedicada aos Arcanos, aos naipes, aos elementos e à combinatória narrativa, que é a grande chave nas mãos de qualquer tarólogo.
Para ler cartas é preciso, antes de qualquer coisa, leveza. Leveza na alma, para que nada se pegue; leveza nos pensamentos, para poder esvaziá-los facilmente; leveza no coração, para poder acolher quem chegue, com a pergunta que traga.
Às vezes, a pergunta esconde-se. A Pergunta. Chega fantasiada de coisa nenhuma, de balaio sem graça recheado de nadas. Anuncia-se com uma qualquer trivialidade, uma qualquer bobagem que parece não merecer nenhuma importância. Quer saber se o futuro vai sorrir. Se o amor vai chegar. Nem é ainda o Amor. É um amor qualquer que ajude a passar os dias, a torná-los mais divertidos, a não precisar suportar o silêncio terrível que se abate num fim de domingo numa rua quieta de uma cidade semiadormecida.
Você viu? Você viu como a pergunta começou a ficar mais séria? Como revela mais cores? Como se desnuda, diante das cartas, sem sequer perceber que aos poucos a muralha vai se desfazendo como pó e os muros de guarda vão perdendo firmeza?
É preciso, numa leitura de Tarot, deixar o outro leve. À vontade. Confortável. É preciso que o outro sinta que pode perguntar qualquer coisa, dizer qualquer coisa, que será acolhido, que será confortado – e que até sairá da consulta com uma resposta (eu prefiro achar que são estímulos, mas as pessoas gostam de falar em respostas) para uma pergunta que sequer sabia que tinha.
Esse é o grande trunfo destas cartas que aprendemos a amar. Espelhos precisos das almas que temos, mostram detalhes em perspectivas que sequer imaginávamos seriam possíveis. “Mas essa sou eu?”, pergunta-se, de olhos muitos abertos, a jovem diante da cientista persistente e precisa que a olha no espelho diante de si. “Poderá essa pessoa ser…?”, surpreende-se a dona de casa que pensava ter suspeitas sobre o marido, e descobre ter mundos a descobrir dentro de si, muito mais relevantes que a eventual aventura do cônjuge.
Mas é preciso leveza. Para não julgar. Para não se intrometer. Para permitir que cada um tenha a pergunta que quiser e busque o que entende dever buscar. A função do Tarot é abrir mundos, mundos internos dentro das perguntas mais inocentes.
Ao longo da minha vida, a literatura foi um manancial de inspiração, oxigênio e aprendizado. Para ser um bom tarólogo, assim como para ser um bom escritor, é preciso ler. Ler sobretudo aqueles que se dedicam a mergulhar na psique humana, e a revelá-la em Arte, essa matéria que nos humaniza até nos tempos mais difíceis e turbulentos. Lendo, aprendi a apreciar a variedade das perguntas humanas – porque sei que é das perguntas que nascem os diálogos. Cada vez que alguém se senta diante de mim para uma consulta de Tarot, meu coração se alegra porque sei que virão perguntas. E com as perguntas virão diálogos, e com os diálogos crescemos todos, porque nutrem em nós o interesse profundo e genuíno pelo que existe de Humano em cada um de nós.
E por isso não existem perguntas vãs, aprendi há muitos anos com Jodorowsky. Porque todas as perguntas carregam em si mistérios e nos levam ao encontro de nós mesmos, dos outros, e do futuro que todos podemos criar, juntos.