19/02/2014

Marwan, Philomena, Hilda, Rosa e Chico

Devo ter visto em sonhos esse menino de só 4 anos chamado Marwan. Acompanho as notícias da crise no mundo árabe a distância segura, por detrás dessa tela onde é preciso filtrar e decodificar com constância. Desconfio de manchetes. Provavelmente porque prefira as coisas e as pessoas que não se constroem para chamar a minha atenção, mas a chamam por serem o que são. Quanto menos filtros, quanto menos encenações, melhor. Descubro, agora cedo, que Marwan não estava perdido e solitário em meio a um deserto do tamanho do mundo. A revoltante imagem do garotinho vagando pelo deserto com uma sacola na mão rodou o mundo inteiro, e sabê-lo afinal a poucos metros da família, perdido apenas na desordem do momento de atravessar a fronteira entre a Síria e Jordânia, quase parece querer retirar-lhe força. Marwan agora vive em Zaatari, um dos maiores campos de refugiados sírios. Aberto em 2012, cresceu a uma média de 1500 a 2000 pessoas por dia. Em julho de 2013, eram 144.000 refugiados. Marwan integra essa que é hoje uma das maiores cidades do país. A sua tragédia pessoal, longe de diminuir, aumenta. Catastroficamente.

Enquanto Marwan descobre sua nova morada, eu me sento confortável numa poltrona de cinema. Não sei como juntar as injustiças do mundo dentro do meu coração. Assisto Philomena. A saga de uma irlandesa atrás de seu filho, dado por adoção pelas freiras do orfanato em que vivia. Triste, hilário e emocionante, daquela forma que (acho) apenas os ingleses conseguem. Philomena é uma mulher de verdade, de 80 anos, que está neste momento engajada em forçar o governo irlandês a abrir os registros das adoções feitas no país. A sua tragédia pessoal, imortalizada como a de Marwan através de imagens e palavras, vem juntar-se às do resto do dia.

Hilda e Rosa trabalham há mais de 30 anos no mesmo salão de cabeleireiro. Nesta luta insana que travo comigo mesma para eliminar a onicofagia (palavra muito mais fina do que "roer as unhas"), encontro pérolas dentro desses lugares. Assim que sei que trabalham ali há tantos anos, e que esse salão em pleno Santo Amaro tem mais de 50 anos de idade, imagino um sem fim de histórias dos áureos tempos, as modas passando na minha vitrine pessoal num entusiasmo ululante. "Ah, Rosa, você deve ter atendido pessoas bem diferentes...". Resposta lacônica: "Que nada, gente é tudo igual". E mesmo que aos poucos Hilda comece a contar uma coisa daqui, outra dali, até chegar ao sobrinho que morreu com 4 anos, e que ela não perdoa a cunhada, porque foi ela quem o matou (a barbárie à solta por todos os lados, dois meninos de 4 anos submetidos a elas todas), eu fico com essa da Hilda. Gente é tudo igual.

Como o Chico, morador de rua do bairro de Santo Amaro, como se apresenta assim que paro o carro na padaria e ele me pede uns trocados. Convido-o para tomar um café e não damos tempo ao entregador de comanda, que procura com os olhos o gerente e não sabe o que fazer com a visita incômoda. Fico me perguntando se as pessoas que olham de lado terão se emocionado com Philomena e se desesperado com a foto de Marwan logo cedo ao ler o jornal. E penso em Hilda, e na assustadora lucidez do seu "gente é tudo igual".

E agora, quando já não sabia mais como juntar tudo isso em algo que me faça por os pés pra andar e fazer algo de útil na vida, uma amiga querida e combativa oferece-me de bandeja a frase de Simone de Beauvoir: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". E eu penso, e respondo-lhe: quem, dentre nós, poderá jogar a primeira pedra? Quem, dentre nós, poderá dizer-se inocente do destino de todos os Marwans, de todas as Philomenas, todas as Hildas, todas as Rosas, todos os Chicos?


Imagem: Zaatari Camp, Jordânia. afp/getty images

Últimas notícias sobre o menino encontrado no seu peregrinar:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2562183/The-truth-heartbreaking-photograph-Syrian-boy-cross-border-separated-family-desert.html?ico=worldnews%5Eheadlines

Sobre o campo de Zaatari:
http://en.wikipedia.org/wiki/Zaatari_refugee_camp

Sobre Philomena, a pessoa
http://www.theguardian.com/film/2014/feb/05/pope-francis-philomena-lee-steve-coogan

14/02/2014

Com as estrelas

Eu, como várias outras dezenas de mortais, leio meu horóscopo todos os dias. Na maioria deles, o que o pequeno parágrafo faz por mim é oferecer-me uma nova luz que ilumine um detalhe ensombrecido do meu dia, ou da minha vida. Parece-me que o fato de se olhar com tamanho grau de atenção, minúcia e detalhe para um ponto luminoso no céu, e para seu encontro com outros, concede qualidades raras e importantes. E é isso que fazem astrônomos e astrólogos, figuras que aliás em sua origem eram a mesma coisa. 

Babilônicos e egípcios observavam o céu com uma sistemática absoluta, o que os fez perceber a influência que tem o movimento dos astros sobre a terra, inclusive sobre as internalidades dos seres bípedes que lá vivem, que no caso somos nós. Estrelas são coisas que brilham, e a sua observação faz outras coisas brilharem também. Por isso gosto de ler meu horóscopo: porque parte de uma região do universo em que as coisas brilham. Sweid, a raiz indo-europeia de estrela, significa isso mesmo: brilhar. Ao longo do tempo, sweid deu à luz sidus-sideris, a maneira sonora como os latinos falavam das estruturas brilhantes sobre suas cabeças. De forma entranhada, o sidério amalgamou-se a outros lugares da nossa vida, de tal forma que nem o percebemos mais. E por não saber que está ali, deixamos que passe batido.

É o que acontece com a palavra considerar. Deriva, como se percebe logo, de sidério. Portanto, da observação dos pontos luminosos. Na sua origem, considerare significava consultar em seu conjunto a posição dos astros, para comparar com algum fato acontecido ou vaticinar algum a acontecer, o que corrobora aquela teoria de que astrônomos e astrólogos tenham desenvolvido, ao longo de gerações de observação atenta, a possibilidade de encontrar relações entre os corpos celestes e as nossas vidas. Para nós, nos dias de hoje e de forma comum, considerar é observar algo atentamente: é levar algo em conta, dar atenção, pesar, examinar, apreciar, meditar em.

Ou seja: quando se considera algo ou alguém é porque se lhe presta atenção: observa-se fato ou indivíduo com a mesma sistemática e o mesmo grau de concentração que um astrônomo dedica a uma supernova. Por considerar-se, passa-se a saber mais do seu movimento particular, das partículas que emite, daquilo que lhe provoca nebulosidade e desconforto e das condições que fazem com que brilhe com mais intensidade. Considerar demanda dedicação e tempo, vontade e ação, curiosidade e interesse: sem o olho que encosta na luneta e se detém naquilo que a princípio parece distante e incompreensível, não há como saber nada sobre nada.

Levar alguém em consideração é carregá-lo dentro de si com esse grau de atenção. Desconsiderar é esquecer. Desconsiderar é deixar de prestar atenção. Desconsiderar é fechar a cúpula do observatório particular porque a vida às vezes incomoda, porque se ficou cansado. As estrelas, pensamos, amanhã continuarão no céu. E vamos dormir o sono dos justos. Mas as estrelas morrem longe de nós, embora o seu brilho demore muitos, muitos anos para apagar-se do nosso próprio céu. Só o olhar atento, cuidadoso, amoroso, o olhar tão gentil quanto o toque de um indicador sobre a pele virgem de um recém nascido, saberá dizer se o brilho que vemos no céu é de uma estrela que ainda vive, ou de uma estrela que já se tornou poeira cósmica, e da qual perdemos o tempo, o brilho, a entrega e a vida. 

Por isso, penso eu com meu horóscopo de hoje, quem tem tempo a perder, que o perca. Quando nasce em meu céu uma estrela, faço o que devo: dedico-lhe o olhar amoroso do astrônomo, dedico-lhe tempo e cuidado, pensamento e ação. E aguardo o tempo dessa nova luz cruzar seu olhar comigo, e desse encontro brilhante nascer algo a que podemos chamar o que quisermos, porque pertence a nós dois, e a ninguém mais diz respeito. E quando o tempo for passado, que o cosmos nos absorva.


Imagem: aquarelogravura de Ivani Ranieri

12/02/2014

Sensações, Sentimentos e Disposições

Dizem que no tempo em que o mundo se formava, existiam no universo três qualidades distintas: as Sensações, os Sentimentos e as Disposições.

As Sensações situavam-se à superfície da pele dos seres: delas derivam, em nós, a sensação de frio ou calor, de lisura ou aspereza, de delicadeza ou brutalidade. Naquele tempo longínquo, as Sensações respiravam livremente, sem os constrangimentos e as dificuldades que nós, seres humanos, trouxemos para a parcela de universo que nos foi reservada.

Os Sentimentos situavam-se poucos centímetros abaixo da pele dos seres. Talvez seja importante saber que a pele, nos seres dos tempos antigos, era a sua mais poderosa força, seu órgão mais sensível, mais perceptível e completo. Por isso, e não por outros motivos, as qualidades dos seres podiam ser observadas e sentidas através da pele. Coisa que nós, seres de hoje, também conseguimos, mas logo calamos em nós essas percepções tão profundas, porque a Obrigação, a Responsabilidade e a Culpa são qualidades que sobrepusemos aos Sentimentos.

Os Sentimentos, assim, viviam logo sob a pele, reino das Sensações. Nutriam-se daquilo que atravessava a então lisa e flexível membrana, recebiam as emanações das Sensações, e irradiavam-nas em forma de luz e algo que entretanto perdeu o nome, por todas as partes de dentro dos seres. Eram alimento da mais pura qualidade, e rebrilhavam na pele em seu caminho de volta. Aquilo que os olhos deixam transbordar são derivações atuais da qualidade Sentimentos. E por isso, quando o Poeta disse, "Esse seu olhar/quando encontra o meu/fala de umas coisas/que eu não posso acreditar", está realmente acessando essa memória ancestral daquilo que foram os Sentimentos na origem dos seres.

As Disposições vivem em regiões mais profundas. São, sabemos pelos antigos escritos, Sensações e Sentimentos transmutados. Tendem a ser mais lentas, mais firmes, menos abertas, mais silenciosas, talvez menos alegres. Se fosse preciso comparar, poder-se-ia dizer que as Sensações são as mais voláteis, os Sentimentos os mais plásticos e as Disposições as mais persistentes.

As Disposições gostam particularmente de tudo o que já foi esgotado e dissolvido. Desse fim a que tudo chega, resgatam a vida que a tudo subjaz. Observam-na, reviram-na, deglutem-na, amalgamam-na a sua própria matéria, e fazem-na reviver. Queimam como fênix. São os brotos nos campos requeimados. Resgatam do grande caldo amornecido que as Sensações e os Sentimentos produzem, as partículas de pura luz. Às vezes, são infinitamente pequenas, mas não importa, porque em sua evolução as Disposições aprenderam a sobreviver de quase nada. Dentro delas, quase nada é um mundo que não termina.

E as Disposições alegram-se, porque a sua tarefa é a transcendência da morte, e só elas sabem que por trás de tudo está tudo o que há. As Disposições são camaleônicas: tingem-se, vestem-se, despem-se. Reviram todos os seus avessos e ressurgem da maneira que for precisa. Só as Disposições não desistem. E só as Disposições reconhecem a mão do destino. Tem razão aquele que diz delas serem concretas: são pura concretude num mundo que tende à dissolução dos seres.




Lemniscata de luz, símbolo do amor infinito, 

06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em

30/01/2014

As mil palavras

Foi Confúcio quem disse, 470 anos antes de Cristo nascer, que uma imagem vale por mil palavras. Não consigo, em lugar algum, encontrar o contexto em que ele chegou a essa conclusão. Talvez quisesse alertar seus discípulos do silêncio que deveriam manter ao observar uma imagem, para que as suas mil palavras não atrapalhassem as do colega ao lado. Ou talvez o mestre chinês discorresse num dia ensolarado sobre a volatilidade da palavra falada, e da necessidade da sua contraparte-ação se tornar visível - algo assim como "promessas, só quando fatos". Ou talvez nada disso, e apenas seus olhos estivessem em contemplação profunda do entardecer de sua janela, e ele não conseguisse encontrar palavras que descrevessem o que via.

O fato é que essas suas palavras atravessaram os quilômetros e os séculos que nos separam da China e do ano 470. Estão aqui, vibrando diante de duas imagens que vejo, veiculadas no facebook. Fiquei tentando perceber que conjuntos de mais de mil palavras poderiam elas representar para quem as observasse.

Dentre todas as mil palavras pelas quais pode (ou não) valer a imagem aí ao lado, o recorte está estabelecido na diferença que existe entre o mundo emocional do homem e da mulher. O que só contribui para aprofundar o abismo sexista entre todos nós, superficializando o nosso entendimento sobre o masculino e o feminino. Concluí que, das duas, uma: ou o machismo nosso de todo dia é realmente implacável e impede o mundo masculino de sentir o seu ao-redor e o seu em-dentro, ou o mundo feminino tem a capacidade de integrar, em 24 horas, 18 vezes mais emoções do que o mundo masculino. A maioria dos comentários à imagem, no entanto (as tais mais de mil palavras pelas que a imagem deve valer) reportam o entendimento de que as mulheres são instáveis, complicadas e exageradas, e que os homens, em comparação, são poços de equilíbrio e equanimidade. Embora ambos coincidam no fim: dormem. Todos nos rimos, e vamos em frente. E a imagem fica, porque, já sabemos, vale mais do que mil palavras. Só que as palavras, os fotógrafos que me desculpem, são o reino do humano, e não só valem quanto pesam, mas ficam.

Porém, a imagem que mais me suscitou incômodos foi essa à sua esquerda. Que vale, realmente, por mais de mil palavras, que deveriam levar-nos à constatação do grau descivilizatório a que chegamos, nessa precoce, abusiva e incensada alcoolização de nós mesmos. Os comentários-mais-de-mil-palavras sobre a imagem riem-se, e tornam a rir-se. Não sei se de constrangimento ou iniquidade: os rsrsrs e os kkkk são dúbios demais para saber, mas eu fico-me com a impressão da inconsciência meio boçal pairando leve, solta e lisa.

No meio desses comentários, um chama a minha atenção: "Deve ser pros professores chegarem no 'grau', pra suportarem o 'rojão' que os espera!!!".

Com as aulas começadas esta semana, fico me perguntando qual o desastre maior. Se a imagem, se as palavras. Vejo os novos professores dos meus filhos, e nenhum deles me parece precisar "chegar em grau" algum, porque consigo reconhecer o brilho do entusiasmo de um ano que começa. Mesmo com as previsões mais terríveis e catastróficas que queiram fazer-se, ser professor é adquirir o "grau" no exercício da sua paixão, que é estar em sala de aula com as pequenas e grandes pessoas com quem irão conviver pelo menos ao longo de um ano. Com todos os desafios que isso comporta, e ainda bem, que sem desafios ninguém se torna o que vai se tornar. Vejo os funcionários das escolas, e a dedicação no abrilhantar, no limpar e no organizar os espaços, para que acolham e recebam essas pessoas especiais que vão ser a sua convivência diária. Vejo os novos colegas dos meus filhos, e o que sobressai é o brilho do reencontro com os amigos e a expectativa do que o ano reservará. Nenhum rojão, a não ser de festa por mais um ano começado.

O preconceito múltiplo dessas menos-de-mil-palavras atinge-nos como professores, como alunos, como pais, como educadores, mas principalmente como seres humanos. Ainda assim, e apesar disso, continuamos na efervescência volátil e aparentemente inócua dos rsrsrsrs e dos kkkkk. O que equivale a abdicar dessa capacidade nossa chamada pensar, e a forçar-nos a entrada num universo de falência dos valores que tanto queremos prezar, da solidariedade à inteireza, da honestidade ao respeito, da lisura à inteligência. 

Salve Confúcio, salve o novo ano, e salve todas as escolas que temos ao redor e dentro. E salve Millor Fernandes também, que completou o mestre acrescentando: vá dizer isso com uma imagem. 

28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

26/01/2014

Do México à Cantareira

Hoje, acordo na Mooca: como deixar passar em brancas nuvens os 460 anos da cidade de São Paulo? Primeiro, de véspera e em boa e especialíssima companhia, jantou-se um caprichado nachos y queso y chili. Preparação para a festa. Hoje, almoça-se um temperado falafel no Mercado da Cantareira. Tudo junto e misturado a esse calor insano a sol pleno. Fosse o Rei, diria quantas inumeráveis emoções.

De tudo um pouco, e quase sem se perceber. Tem pernambucano guardador de carros observando de dentro da sua camisa o povo que vai, o povo que vem. Abre-me uma vaga que vai logo logo estar na sombra. "Bem vestido porque é dia de aniversário", diz ele em seu sorriso de poucos dentes, quando lhe pergunto se não está assando de tanto calor dentro da camisa escura de manga comprida, abotoada até o pescoço. Os olhos miúdos quase se escondem por trás da pele curtida e grossa de anos de labuta sem fim nessa selva tão de pedra quanto o sertão. Tem dois argentinos parados na frente do Mercado, querendo saber de museus, e tem a Cida, maquiadora de Jundiaí, que decidiu mostrar-lhes São Paulo. Vem me perguntar se sei onde que tem museu: diz ela que tenho cara de quem gosta de arte, e ela quer agradar os novos amigos que fez no metrô com isso mesmo, arte. Gosto, digo-lhe, até quando não devo. E ela ri. Bonita vitrine do seu trabalho, elogio-lhe a maquiagem caprichada. A artista, afinal, é ela. E ela ri, agora sem jeito, piscando os olhos de cílios compridos.

Passeio pelo povo que dança ouvindo os Demônios da Garoa. A mais paulistana música no mais paulistano dos mercados. Vem a homenagem ao Wando, que gravou com eles. E o povo aplaude. Vem a homenagem ao Herbert Vianna, que gravou com eles. E o povo aplaude. E qualquer coisa que tocassem o povo aplaudiria, e riria, e dançaria pra cá e pra lá numa felicidade só, porque logo, não demora, virá o Trem das Onze tocando todo mundo embora. Tem a Sandra, ao meu lado, que não sossega, e só diz querer mesmo é um bebedouro, pra poder refrescar esse suor todo de tanto sambar. E ri. Aponta para o casal à nossa frente que dança desconjuntado: "aposta quanto que são gringos?". E ri. E ri de novo. Mesmo sorriso largo da senhora mulata mais adiante, sambando agarradinho a um sujeito tatuado que olha pra ela apaixonado, como se nada houvesse em volta dos dois. E quando seus olhos cruzam os meus, ela descobre-me uma fiada de dentes grandes desencontrados, cada um mais radiante que o outro nessa boca que logo corre pra beijar o parceiro. Todo mundo ri, e eu rio de volta, nessa cidade de concreto cheia de recantos de humanidade: parecemos todos velhos amigos que na saída marcarão encontro amanhã, mesmo horário, mesmo lugar, despedidas efusivas de quem conseguiu criar, contra qualquer expectativa, um minuto eterno de alegria feliz.

Percorro com o pensamento vestido de memória o dia preenchido nessa cidade estranha, onde me sinto tão em casa. Vejo as todas cores e as todas coisas, as ruas e as avenidas cortadas de um lado ao outro, um zootrópio inesperado ensinando cinema de animação, piscinas de sesc lotadas com corpos cada vez mais redondos, banheiros públicos encharcados de gente que quis ir pra rua nesse feriado tão mas tão paulistano: todas as lojas abertas, uma 25 de março que esqueceram de avisar pra fechar, sacolas de todos os dias mesmo em dia feriado. A cidade que não pára entra no seu 461º ano de vida fazendo juz à fama que tem. Só rindo, e voltando pra casa sem sentir os quilômetros espaçosos que passam por baixo do carro.

Foto: a Mooca, por Ilundi

24/01/2014

Nós, os seres cordiais

Descubro, agorinha cedo, que uma amiga querida está internada, lá do outro lado do mar. Sente-se sozinha, claro, passará o fim de semana ali mesmo, entre quatro paredes brancas, mas ainda assim me diz: "Ah, mas eu até prefiro ficar aqui, sou bem cuidada, não preciso cozinhar e as pessoas, no hospital, vêm me visitar. Semana que vem, em casa, vai ser bem diferente".

Da vontade que me deu de nadar todas essas milhas náuticas que nos separam para estar à porta da casa dela na segunda, e impedi-la de cozinhar e de ficar sozinha, fui-me rápida ao Sérgio Buarque de Hollanda. Ao seu cordial homem brasileiro. Aquele que age e reage pelo coração, passional, avesso a toda convenção ou formalismo social. A minha reação interna acho que nasce dessa cordialidade que transplantei lá das terras lusitanas para estas brasileiras, e que só fez crescer, regada e adubada prolixamente.

Exemplos há por todo lado, dessa cordialidade que nada tem de bondade, concórdia ou subserviência, como bem nos esclarece Buarque de Hollanda. O ser cordial não é bonzinho, não aperta as mãos de ninguém se a vontade é de esmurrar. O ser cordial esmurra quando seu coração diz esmurra. E beija quando o coração diz beija. E ama quando o coração diz ama. E odeia quando... e assim vai. Minha amiga, se aqui estivesse doente, internada ou não internada, seria visitada. Com arroubos efusivos de preocupação e desejos transformados em bombons e flores, teria a sua casa invadida por amigos e nem tanto, uma mão cheia de seres cordiais, com o coração batendo inflamado do lado de fora da pele. Poderia durar alguns dias. Ou mais. Ou nem tanto. Não se sabe, porque o coração tem razões que a razão desconhece, e assim fica difícil saber qual será a reação do próximo momento. Lá, de certa forma e pelo menos, ela tem a certeza de que ficará sozinha. Não serve de alento, minha amiga querida, mas serve para se ocupar filosofando - coisa que, já disse Caetano, parece fazer-se melhor nessa língua que você fala aí do que em outra. Sabe-se mais com o que se pode contar, porque a ação do outro está mais regida pela razão e menos pelo sentimento, e por isso oscila e se entrega menos. Há vantagens nisso, embora a minha cordialidade tenda ao querer esmurrar ao pensar assim.

Entre as vantagens, o próprio pensar. A dissecação do sentimento pela fria lente do pensar. A transformação do sentimento desordenado em sequência ordenada através da palavra. Seja escrita, seja falada: que a palavra possa nos salvar dos solavancos das relações abertas pelo tumulto do sentir cordial. Essa tranquilidade fria que emana dos seres que pensam, ainda que eles mesmos se digam atormentados pelo fluxo de pensamentos que precisam organizar: é o descordializar. 

Essas coisas que nascem do coração pertencem, diz Buarque de Hollanda, à esfera do íntimo, do familiar, do privado. O que me faz pensar no tanto que as redes sociais, esses lugares onde o público e o privado se misturam e confundem promíscuos, fazem sucesso entre nós, seres cordiais, e nos tomam horas e neurônios e sobretudo células coronárias: afundamos e emergimos de estados ora melancólicos, ora eufóricos a partir de indícios da importância que temos na vida dos outros: curtiu? não curtiu? comentou? não comentou? Uma gangorra de cordialidades mil, dificultando que pensemos na nossa própria e humana capacidade disso mesmo: pensar.

Salve o hospital com suas visitas, e salve a semana que vem sem presenças: que a vida, a todo momento, seja plena e cheia de tudo o que faz com que o coração fique onde o queria o Mestre: ao alto.


O Chico, filho do Sérgio, fala sobre o homem cordial aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=xAVRGvoy2Sk

Foto de Clara Rocha - obrigada!

21/01/2014

O espaço brilhante

Decidi oferecer-me uma aula de fisiologia das membranas celulares. Porque às vezes é tão difícil entender o mundo de fora que o melhor é olhar para dentro. E como eu quero chegar às menores partes, aventuro-me por elas, as células. E porque pessoas, a seu modo, são como células. 

Há células, como há pessoas, que possuem paredes celulares. Nem todas, veja bem. Entenda-se por parede algo rígido, construído e assentado, o que nos dificulta aqueles dias em que células e pessoas desejam mudar de forma. Desconstruir paredes é trabalho árduo, e nem sempre vale a pena. Valendo ou não, meus olhos querem ver mais, e avançam para a próxima camada...

...que é um envoltório menos denso, mas que efetivamente dá suporte físico à célula. Imprescindível, tanto que todas as células a têm - e, assim, todas as pessoas também. Poderíamos dizer que é a pele, mas meus olhos estão voltados para outros lados. Não é a pele do corpo que me interessa, mas a da alma. Esse envoltório funciona como proteção contra agentes infecciosos. Indispensável, porque em todo lugar existem agentes que desestruturam, que inflamam, que adoecem. Há pessoas cujo envoltório é espesso demais, e veem perigo em todo canto, e há pessoas com esse manto tão diáfano que faz com que se envolvam onde não devem quase que todo dia. É um indício da necessidade de equilíbrio, única condição para que não se veja perigo e ofensa onde ela não existe.

Próxima camada. A que mais me interessa: a membrana plasmática. Quem consegue chegar à membrana plasmática do outro, conseguiu já atravessar uma ou duas grandes camadas de separação. Às vezes, esquecemo-nos disso. Chegamos a ela sem perceber que antes já fomos aceites como seres não infectantes, e já atravessamos paredes que mantêm o outro de pé. Ainda que imóvel, mas de pé. E já se sabe que a condição humana é a condição de estar de pé. Uma felicidade, chegar à membrana plasmática.

A membrana plasmática permite-nos duas coisas: proteção e seleção. Mais uma camada dessa paranoia biológica chamada proteção. Garante que o núcleo e todas as demais estruturas e órgãos vivam uma vida calma. Sem sustos nem sobressaltos. O que raramente acontece, mas enfim. E carrega em si ainda o poder de selecionar o que entra e o que sai. E como raios fazem as células para selecionar o que deve entrar e excluir o que deve sair?

Ora bem. Fazem uso de quatro recursos que, olhando bem, nós pessoas também fazemos.

Podemos desenvolver em nós a capacidade de absorver o que está ao nosso redor, como esses outros que vivem ao nosso redor. Discriminando mais ou menos, interferimos nessa capacidade. Ou aumenta, ou diminui, e são as microvilosidades que fazem esse trabalho. Absorvendo mais do que menos, permitimos um contato maior.

Desejando um contato maior, podemos também fazer crescer em nós reentrâncias e saliências, pequenos apoios para que as células, perdão pessoas, que estão em volta, consigam melhor do que pior fixar-se em nós, e assim podermos observar-nos melhor uns aos outros. Mais de perto. Com mais tempo e proximidade. O que leva, claro, à intimidade. As interdigitações (veja: dedos!) são nossas aliadas nessa criação de encontro - são elas essas reentrâncias e saliências que nos permitem enxergar o outro e dar-nos a enxergar.

A intimidade, e o encontro, geram fluidos. E da consistência, da fluidez e da existência de movimento nesses fluidos encarregam-se os cílios e os flagelos. Às vezes, é capaz que doa. Cílios e flagelos às vezes provocam dores. Porque o movimento gera dor, e desconforto, e é preciso passar por ele - no sentido de atravessá-lo e sair do outro lado. Esse outro lado, é essa consistência fluida e terna de elementos, que a intimidade gerou e a nossa disposição aberta alicerçou. Através de cílios e flagelos nasce uma nova estrutura, fantástica, revolucionária, curadora. Os plasmodesmos.

Que merecem um parágrafo só deles.

De repente, eis que essas membranas, perdão pessoas, de tão próximas e em contato, tão em conexão fluídica, promovem um pequeno milagre: as suas membranas, subitamente, se interrompem. Abrem-se espaços em tudo aquilo que mantém o um separado do outro. Acontece nas duas células/pessoas, e imagino que, se não ao mesmo tempo, em tempos muito muito próximos. E, como se abrem espaços, estabelecem-se pontes, porque o intuito de tudo isso era permitir que o que está em um permeie o outro e vice-versa. E ambos sejam mais porque se contêm. São as pontes protoplasmáticas. Esse momento em que os espaços se abrem, essas pontes se criam e as células, assim como as pessoas, têm livre trânsito umas por dentro das outras.

E aí tudo pode inflamar-se, porque há segurança. Tudo pode procurar-se, porque há encontro. Muito melhor do que quando, como células, nos fechamos ao mundo oferecido e nos voltamos para nossos buracos negros, para esses lados escuros da lua que escolhemos, porque não olhamos de frente e de olhos abertos, e não vemos a luz que vinha na nossa direção. 

Às paredes, galgá-las. Às membranas, atravessá-las. Às pontes, caminhá-las. E que juntos possamos ser mais do que menos.