14/10/2013

Ouvir, conhecer, aprender


Tudo isso, numa única palavra. Discere. A raiz de disciplina. Ouvir, conhecer e aprender aplica-se a quase tudo. Quem não ouve, não conhece. Quem não conhece, não aprende. Quem não aprende, não ouve. E assim tudo outra vez de novo, porque a vida gosta do que é cíclico. E é a essas três palavrinhas brincando em círculo que nós, nos dias de hoje, damos o nome de disciplina.

Não pode ser coincidência que discere se pareça tanto com dicere, e ao mesmo tempo seja tão diferente. Dicere é a raiz do nosso verbo dizer, e regia-se pelo sentimento de lançar o que se diz de forma solene. Imagino que, antigamente, se discere mais que dicere. Ouvia-se (conhecia-se, aprendia-se) mais do que se dizia. Nesse dizer que tinha a marca do solene, devia haver mais disciplina e com ela mais consistência.

Ontem foi um dia de manhã de mata. Domingo de cachoeira. Entre gente boa. Povo luminoso. Agora que a noite já passou sobre a minha casa, seu silêncio de estrelas espreitando por entre as cortinas, a manhã parece uma anunciação. Os meus dedos correm pelas palavras, como numa urgência de que esta alma que me habita, essa aragem com ar de pluma, não se perca, não se dilua, não se vá. 

Voltei da mata com a alma leve - cansada, mas leve. Sensação de haver-se limpado boa parte do que me rodeia, do que me acompanha, do que às vezes se interpõe a meio do meu caminho. As distrações do dia a dia. A falta de sono. As presenças alheias. Tudo a água levou. Sensação também de vida aberta. De nova força. Do sorriso de Deus sobre mim. Deixou-me um brilho feito de palavra ressoando nos ouvidos: redução. Mais uma dessas palavras que sei ser preciso explorar para clarear a vida, essas palavras que ouço para poder conhecer e aprender. É essa a disciplina da minha vida.

Penso na redução ao abrir o armário da cozinha, agora cedo. Vou pensando, enquanto faço as dobradiças se movimentarem, no quanto algo que se reduz ganha condensação, mas perde fluidez e com ela liberdade. Deve ser por isso que os meus dedos encostam no vidro de vinagre balsâmico reduzido, aquele tempero agridoce para saladas. Numa materialização do que pensava, esse vinagre balsâmico reduzido que tenho nas mãos é mais doce, mais intenso, mais concentrado naquilo que dele restou, mas é também mais denso e viscoso. Escorre com lentidão, mais presa do ar e do limite do espaço do que a sua versão líquida, que flui sobre as folhas de rúcula no prato sem se lhes colar pegajosamente. Gasta-se mais devagar: a redução dura mais tempo que o líquido original. Seu gosto é mais intenso. Nada fica no prato depois de comida a salada e seu gosto permanece na boca do comensal por mais tempo.

Reduzir reduz volume, tamanho, quantidade. Elimina uma parte para que sobre o que, ao olhar, parece essencial. Para onde irá a vida líquida do vinagre em estado bruto e aquoso? O que sofre, na matéria, o efeito da redução? Volátil, espalha-se na atmosfera, funde-se ao nada e torna-se sua partícula. Irrecuperável.

Pessoas, que não são vinagre, não podem ser reduzidas. Precisam de todas as suas partes essenciais; ao contrário do que pensamos não são uma, mas várias. E precisam também de todas as outras, as não essenciais, essas que por vezes parecem tão menores, ou tão maiores, que chegam a assustar os outros.

A manhã de ontem firmou o meu espírito sem reduzi-lo. Devolveu-lhe a luz e o brilho que é dele mesmo, porque provém de onde provém. Deve ser por isso que a minha alma ficou tão leve, tão presente em si mesma. O que mais fazer, a não ser agradecer a semana que vem pela frente, pronta a ouvir, a conhecer, a aprender, sem precisar reduzir-me nem reduzir a vida ao meu redor?


Foto: Joaquim Luiz Nogueira


10/10/2013

Além da sobrevivência

Araraquara, sábado, 22h15. À saída da sessão de "O renascimento do parto", um grupo de mulheres jovens, bem vestidas e alimentadas, discute o filme. Mais ou menos na seguinte direção: - "Ah, mas também que firulas, não? O que é que tem o bebê ficar longe da mãe logo depois de nascer, só um pouquinho? Não vai ter a vida inteira pela frente? Não sei pra que ser tão radical...".

Essa história de ser rotulado de radical eu conheço. Meu mapa astral diz. A vida diz. As pessoas em volta dizem. Mas como assim não ser radical? Se não formos radicais a respeito daquilo que respeitamos e consideramos, vamos ser o que? Sempre contemporizadores? Tem coisa que é difícil de contemporizar. As certezas vão mudando de lugar, confirmando o que dizia minha avó: "vais ver como quando envelheceres a vida torna-se relativa". Pois sim, é verdade, é uma graça envelhecer e ver as certezas ruírem. Só que outras constroem-se em seu lugar, lado a lado com as dos outros. Tá tudo muito certo.

Sinto um incômodo no discurso que vai se consolidando em torno do parto normal/natural/humanizado. Muita nomenclatura para variantes de algo muito, mas muito simples. É de se desconfiar. Esse incômodo chama-se sensação de ser engolido a contragosto. Chama-se ser cooptado por um sistema que consegue inacreditavelmente transformar tudo em seu produto. Em mercado. Em matéria de troca. Em uso. O incômodo chama-se ver o sistema assumir contornos de gente humana, mas sem recheio. Um mundo de convexos sem concavidades. Um mundo em que, em vez de nos tornarmos humanos, viramos profissionais.

Tenho certos problemas com a palavra profissionalizar. Já vi situações únicas e espontâneas sucumbirem ao poder do discurso profissionalizante. Pessoas entregues e capazes, cheias de energia e vida pra dar, aniquiladas sem dó nem respeito ao peso daquilo que as torna, muito de repente e sem defesa, incapazes e duvidosas. Nada contra sermos profissionais no que fazemos, muito pelo contrário: o problema está em considerarmos (e tantas vezes fazemos) que alguém, que não nós, fará direito o que nós tentamos mas, por defeito de sermos quem somos e o que somos, não conseguimos. Ou quase conseguimos, mas de repente é preciso profissionalizar. E só nos resta sobreviver.

Foi assim com o atendimento ao parto. Tínhamos as parteiras. E temos, mas a que custo e luta delas mesmas. Pessoas que primavam e primam pela simplicidade e pelo mistério das suas mãos, doação em estado puro e bruto, porque era e é delas a tarefa sublime de estar junto a quem atravessa o umbral da vida. Mulheres de palavras certas. Mulheres de conhecimento atávico. 

Tínhamos os/as obstetras. Que, apesar da sua formação compartimentalizada e redutora, buscavam um sentido existencial para o momento de nascer. Meu avô, que era médico, e médico rural, falava pouco dos partos que atendia, e eu acho que era por respeito. Por respeito ao que não conhece explicação. Embora ele falasse pouco a respeito de qualquer coisa com a criança pequena que eu era. Gerações de médicos foram se profissionalizando, e hoje temos profissionais extremamente hábeis e competentes no manejo do bisturi.

Talvez por falta de outra opção num primeiro momento, e depois por convicção (variante de radicalismo), meus terceiro, quatro, quinto, sexto e sétimo partos foram atendidos por médicos obstetras convencionais. Alopatas. Nunca tinham feito parto em casa; alguns, os bons de cesárea, poucos partos normais tinham feito. Ajudaram-nos a minha experiência bem sucedida de dois partos anteriores e a minha certeza (radicalismo/convicção) de que é claro que meus filhos nasceriam em casa. Com ou sem os médicos. Aceitaram o desafio, inclusive o da minha outra certeza/radicalismo/convicção de que há que pagar-se um preço justo. Salário mínimo, no país em que vivemos, é um preço justo.

Foi um alumbramento coletivo, cada um desses partos. Tive a felicidade imensa, dessas que vão muito além da pura sobrevivência, de ver não só nascerem meus filhos, mas de presenciar o nascimento de médicos de parto em casa. Isso não tem preço.

É claro que houve senões. Sempre há. É claro que ouvi "anda, faz força" na hora em que não deveria ouvir nada. Que houve exames de toque desnecessários. Apreensões em demasia. Olhares de dúvida que poderiam ter travado qualquer dilatação, aquelas palavrinhas mornas que poderiam desmontar tudo que não fosse certeza/convicção/radicalismo. Sem essas três palavrinhas, capaz que houvesse desistências, de ambas as partes.

Gostando como gosto de parir, acompanhar outras mulheres à beira de dar vida foi uma consequência natural. Como amiga, como vizinha, como mulher. Quis ser parteira. Vi surgirem as doulas. Quis ser uma. Comecei o curso de enfermagem com o olho na enfermagem obstétrica. Ou seja: quis profissionalizar uma atuação que corre pelas minhas veias.

Não avancei nessa direção. O cheiro de mercado, a troca financeira, o fim da explosão pura de amor em forma de doação levou-me para longe, enquanto outras coisas surgiam na vida. Por isso, há poucos dias, quando me perguntavam: "você seria a minha doula?", eu engoli em seco antes de responder que posso ser a amiga, a vizinha, a mulher, a confidente, a irmã, a que cuida das crianças irmãs de quem vai nascer, a que faz chá e atende o telefone. A pessoa que pode estar ao seu lado e acompanhá-la nesse trabalho divino, com aquilo que tive o privilégio de viver e aprender. Mas não posso ser doula, porque não posso dar nome de profissão ao que sinto tarefa de vida. Admiro as mulheres que acompanham outras mulheres assumindo-se como doulas, admiro-lhes a coragem e a garra; quisera eu, há quase três décadas atrás, ter encontrado algumas delas. Admiro esse movimento genial e pulsante de mulheres e homens guerreiros que se erguem com valentia contra a ditadura do sistema. Mas assim, meio recolhida como me sinto, me aflijo com o cheiro de sistema em tudo isso.

Ingênua? Radical? Naif? Pode ser. É mais uma questão de além-sobrevivência. Uma questão de que a vida não fique ao rés-do-chão, no lugar comum das coisas comuns, na falta de significado, de força, de querer olhar a vida de frente e dialogar com ela. Questão muito pessoal, sei disso. Mas com os tons da urgência que se querem compartilhados.

06/10/2013

O parto e a dor

Há vinte e nove anos, minha maior aspiração era garantir um nascimento amoroso a meu primeiro filho. Queria a penumbra, o silêncio, o respeito pleno, a solidão necessária. Queria os cheiros conhecidos, os ruídos tranquilizadores, a panela da minha cozinha. Queria a plenitude diante desse momento que antevia, aos 19 anos, ser um portal para dentro de mim mesma. Não tive dúvidas de que esse lugar de segurança era a casa onde vivia todos os dias, onde a vida se desenvolvia.

Encontrar a pessoa certa que nos fizesse companhia levou quase oito meses. Quando apareceu, trazia na sua mala anos de experiência atendendo partos pelo Xingu. Embrenhamo-nos juntos por essa mata densa que é nascer em casa, e tudo o que se desmonta e remonta dentro de todas as pessoas que se aproximam. Gostei de estar fora do sistema que a tudo sem piedade engole; a minha aspiração buscava o espaço e o tempo em que as coisas se demorassem nelas mesmas, e não houvesse obediência a nada que não fosse, e eu pudesse acertar e errar a partir da minha intuição. Só isso: que fosse, na intensidade do seu ser. Ao mesmo tempo, perceber sem mediações a força primitiva da fêmea que se abre para que outro nasça, e abrir as portas para o divino manifestado na palavra falada assim que o nascimento é nascido. A fêmea, a mulher, a divina.

Demorei muitos anos a sair dessa mata. Agora, a cada convite para entrar dentro desse território, a emoção e a gratidão são as mesmas. Gosto das plantas que crescem nesse lugar. Gosto do cheiro de cosmos. Gosto da explosão de vida e dor e vida e dor, nessa ordem tão caótica que são as forças que não conhecemos entrando no nosso dia a dia.

Mas não posso deixar de reconhecer que o sistema engoliu parte do que me movimentava, nessa capacidade ímpar que tem de engolir tudo o que estiver pela frente e tentar se contrapor a ele. Uma espécie de sucumbir a uma força que parece insuportável. Claro que é maravilhoso que mais e mais mulheres possam ter seus direitos respeitados na hora sublime do parir; que possam optar, que possam escolher; que possam ser o que e quando e como quiserem ser. O problema que fica incomodando esta minha cabeça inquieta é se as escolhas e as opções são internas ou ainda e mais uma vez ditadas pelo que está do lado de fora (e que eu vou chamar de sistema), todo esse discurso certeiro que diz e dita e preconiza o bom. Não sei, mas tem alguma coisa me incomodando. Eu não sei se as mulheres que parem estão mais ou menos donas do seu parir, ou se diluíram por entre outros atores (além do médico que já era tanto) a responsabilidade que é só delas. E que é difícil assumir e carregar até a última consequência. E é solitária. E é assustadora. E transforma tudo.

Foram sete partos em casa, sete experiências de parir diferentes e únicas. Sete trabalhos. Sete bolsas. Sete cordões. Sete momentos. Sete placentas. Horas que o universo me doou para descobrir novas formas de passar pelo mesmo lugar, para que me reinventasse no encontro dos meus fantasmas, dos meus medos, do pânico inevitável do não sentir-se capaz e precisar da mão invisível. Receber a vida terrena de meus filhos em casa foi uma das certezas mais absolutas que já tive na vida. Acho que nasci com ela e não seria quem sou sem ela. Não seria todas as que sou dentro de mim mesma não fosse por ela.

Um dos sete seres que nasceu de mim atravessou o portal de volta, alguns anos depois de ter chegado até nós. Todas as vindas, e muito especialmente essa ida, moldaram-me o caráter. Aprendi a esperar, e a esperar em meio à dor. Aprendi a dormir por entre a dor. A dormir à espera da dor. A viver amparada pela dor. A perceber na dor a razão de estar viva. A olhar no espelho e ver a feição da dor sobreposta à minha própria, e gostar dela. A levantar-me no início dela e ser-lhe silenciosa nas primeiras horas. A ler nas contrações pequeninas a preparação para o Grande Trabalho. Aprendi a olhar-me para dentro em meio às tempestades violentas. A sentir a emergência de uma força que me transcendeu e à qual me dobrei porque é isso que é preciso fazer quando a transcendência se manifesta: dobrar-se, sem quebrar. Com paixão e entrega, irredutível e incondicional. A dor esteve, e está, sempre ao meu lado, companheira fiel disposta a manter-me o estado de acordada. Ao sofrimento, não lhe dei entrada. Porque não cabia. Nunca coube. E parece que me esqueço dessa lição tão implacável. Nunca vai caber.

A diferença entre uma coisa e outra, dor e sofrimento, veio à tona ontem à noite, enquanto assistia "O renascimento do parto". Demorei a ir ao cinema assistir este filme: queria que o pai de meus sete filhos, a coluna de luz que se ergueu inteira e bela a meu lado a cada um desses momentos de luz e transformação, estivesse junto, porque só ele para entender as minhas lágrimas oceânicas. E fiquei matutando, entre cena e cena, o quanto o meu ser sequer tenta fugir à dor, e o quanto se debate para não criar e nem ver criar sofrimento à sua volta, nem em si mesmo nem nos outros.

Olhando à distância de anos estes sete partos, a dor não me assusta como não me assustou; movimenta-me as entranhas, desperta-me centros vitais que o estado não-doloroso não alcança despertar. Nem tento encontrar grandes explicações, porque certamente não as encontrarei (ou entenderei) e o que sei, hoje, é que a dor é alimento da minha alma tanto quanto o seu contrário, que nem sei como se chama ao certo.

O que sei, e sem nuvens, é que dor não é sofrimento. Sofrimento não tem sentido. Sofrimento, ou os outros criam, ou nós criamos. Mergulhamos dentro dele como se panela de óleo fervente, e esse mergulho não é necessário. Necessário é amar e ser amado, é olhar e ser correspondido, é poder correr livremente pelos campos abertos da entrega e ter a retribuição exata do que se deposita nas mãos dos outros. Nesses campos, a dor tem espaço. O sofrimento, não.

Sobre o filme que é preciso assistir:
http://www.orenascimentodoparto.com.br/

Não tenho fotografias dos meus partos, porque quis guardá-los só na memória. A fotografia é da minha primeira inspiração, o livro de Leboyer, "Nascer sorrindo".



03/10/2013

Concha, mar e brisa

"A brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos": não há nada, em toda a minha vida, que me preencha com a verdade que têm as palavras. Tateiam-me por onde eu passo, oferecem-se nas mãos estendidas dos outros, que às vezes sequer percebem a oferta generosa que me fazem. É preciso que lhes agradeça.

Como concha, mar e brisa, esse presente de três palavras que acabo de receber neste instante, e tão simplesmente. Tenho treinado meus olhos para que não lacrimejem onde e quando não devem, porque as palavras fazem isso com eles, especialmente palavras úmidas, tecidas, inflamáveis; palavras que entram como avalanches dentro de mim e passeiam sem decência pelas minhas  mais internas concavidades. Despertam tatos, lugares do coração, do estômago, das veias, da pele. E os olhos querem transbordar a qualquer custo, porque é preciso deixar sair essa água toda que as palavras fazem catapultar dos meus abismos. Serão saudades da praia, da areia do mar, do calor do sol? Não, é mais fundo do que isso, são motivos que nem mesmo têm memória.

Mas não podem meus olhos lacrimejar - estou quase no final de uma aula. Se ainda fosse a meio dela, poderia até acontecer, porque haveria tempo para digerir. Prometo-me escrever assim que acabe (aqui estou em cumprimento ao prometido), para poder viajar em paz logo mais, sem ser sacudida pelas ondas desses mares que desaguam das palavras. Quero ser rio, hoje, e não mar.

Quando escrevo, automática e espontânea, "a brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos", não penso. São as palavras que me pensam, são as palavras que me guiam, nessa vida própria que têm e me revelam, a mim mesma, o que a tanto custo tento descobrir pensando. Não preciso, basta que escreva. E mesmo não sendo lida, e quando lida não compreendida, e quando compreendida não abraçada, as palavras permanecem, porque a sua essência é a permanência.

02/10/2013

O justo lugar do outro

Acabo de ler um artigo no The New York Times sobre crack e metanfetamina. Um estudo de Carl Hart, onde se constata que, ao se apresentar uma alternativa econômica a usuários de crack, muitos adictos tendem a preferir a alternativa, derrubando por terra a teoria de que o dependente de crack faria qualquer coisa pela próxima pedra.

Hart conclui que o desenvolvimento da dependência é uma questão fortemente ambiental, uma questão do lugar e da situação social do indivíduo. Mais uma voz que engrossa o discurso de que o que se precisa, em termos também políticos, são profundas remodelações na estrutura da sociedade, na maneira como nos organizamos e compartilhamos entre nós bens e serviços, e não medidas punitivas ou repressoras.

O que me chamou a atenção, e posso expandir em outras direções, é essa constatação da necessidade de serem oferecidas/existirem alternativas.

Alternativa é uma palavra curiosa. Desmembra-se sem demoras, separando o alter do nativa. Há anos que gosto da palavra alter - esse outro que não sou eu, esse conhecimento que me chega através da existência do outro, a corrente que migra entre dois lugares/seres: sempre há um outro além de mim quando o mundo se veste de alter. A solução (se pensarmos que são necessárias alternativas ao que aí está) está, portanto, ligada a um outro que não sou eu, e a a mim mesma quando estou no lugar de "outro" de alguém.

Nativa chega-nos, diretamente e pra variar, do latim: é o original, inato e natural, é o nascido, o ser que começa a existir. Só posso concluir que alternativa seja algo que nasce e é original e inato de um outro. Quando se nos é oferecido/existe, é uma bênção, uma dádiva, um presente sublime. Não vamos sozinhos a lugar algum. Precisamos de mãos que nos façam crescer, e quando o outro as estende, nasce a alternativa. Como é uma via de mão dupla, também o outro precisa da nossa mão estendida, para que possa crescer. Nós somos a alternativa do outro, e o outro é a nossa alternativa.

Porém, para que a alternativa possa cumprir esse seu objetivo (de mudar o rumo, o foco, a atividade, o vínculo, a direção das coisas) é preciso que três qualidades se manifestem (além da do interesse, que é básica e sem ela não há nem começo). Sem essas três qualidades, ou os movimentos são inócuos ou, pior, danosos. A primeira dessas três qualidades é a justiça; a segunda, a fraternidade; e a terceira, o altruísmo.

Se a justiça não rege o movimento que fazemos na direção do outro, levando-lhe o que nasce dentro de nós com clareza, precisão e verdade, criamos uma teia silenciosa e invisível à sua volta, uma teia ardilosa e insidiosa, que oprime, que queima, que magoa. A justiça demanda olho claro e ouvido acordado; demanda que nos ouçamos e àquilo que nos move; demanda que estejamos atentos ao que isso que nasce em nós poderá vir a provocar no outro, e o quanto é justo provocar no outro alguma coisa, se depois não a sustentarmos quando, quanto e como for necessário ao outro. A justiça está ligada a responsabilidade, e a um senso de respeito que ultrapassa quaisquer outras questões.

Esse respeito básico existe se quem vemos no outro é igual a quem vemos em nós: ou seja, nosso irmão. Quando não é a fraternidade que rege esse movimento do estender a mão, o outro distancia-se porque não alcança essa estatura que o torna nosso frater. Sem a luz e a percepção de irmandade, o outro é pouco, e nós somos pouco também, presos a esse pesado solo ilusório que nos faz julgar, supor e determinar sem de fato sabermos do que falamos. Se a fraternidade está presente, há uma doçura e uma sensibilidade nos movimentos que nos impedem de estraçalharmos o outro no que ele tem de mais primordial, que é o ser igual a nós mesmos. Mesmo inconscientes, é a nós mesmos que estraçalhamos.

Nessa troca entre dois iguais, o altruísmo ergue-se como faca de dois gumes. A sua contraparte, o egoísmo, vem-lhe colada e amalgamada. Toda ação comporta o olho no outro e o olho em nós mesmos. As alternativas, quando oferecidas com os olhos mais postos nos outros do que em nós mesmos, lançam-se desenvoltas, naturais, porque antes de pensarem/sentirem em si mesmas, nas suas tranquilidades, nas suas salvaguardas, nos seus confortos, nas suas prioridades, pensam/sentem com o sentimento do outro. Aí, sim, são alternativas a esse mundo que tanto dizemos querer ver transformado, enquanto o reeditamos igualmente duro e distante dentro de nós mesmos e do que vive ao nosso redor.


O artigo pode ser lido em:

29/09/2013

Dia de santo

de e para Júlia

É dia de santo quando Júlia abre a porta. Dia como o de hoje, 29 de setembro, dia de cavaleiro brilhante cavalgar pelo céu azul, dia de carregar espada e vencer as demandas e todos os dragões.

Faz tempo que Júlia não aparece. Mas hoje é dia de coragem, de decisão e de proteção; hoje é dia de deixar o medo esvaziar, dia de empunhar escudo e levantar cabeça; dia de resolver contendas. E as de Júlia são antigas, e cabe-me auxiliá-la.

Por isso Júlia abre a porta. Porque é dia. As dobradiças nem rangem, deslizam sólidas para permitir-lhe passagem. Júlia atravessa o umbral, sabendo com quem, sabendo por que, sabendo para que. Como num ritual, a adega.

Ao fundo, a mesma única janela fechada, os vidros pequenos escorridos. O cheiro brilha no sol que se esgueira por entre eles. O carvalho antigo flutua invisível a meio dos raios. Lá está a escuridão da madeira de outros séculos, e a luz que os tonéis transpiram, e o chão úmido levantado em gotas agarradas aos vidros. O chão quer-se água, mas cai e é chão outra vez, rendido à gravidade. Escorrega pela superfície do vidro prisão.

O cheiro da queda junta-se ao cheiro da adega, ao cheiro da luz esgueirada, ao cheiro da janela pequena, ao cheiro da porta que se abriu lentamente para deixar Júlia passar. Júlia percebe tudo isso de olhos fechados - deixou de espantar-se com o desconhecido que não quer mostrar-se. Entra no espaço que quer fechar, e sabe sagrado, com suas duas mãos cruzadas a meio do corpo.
A adega não é quente e nem fria; é mais um mastigar acre e cálido que desperta os sentidos naquele lugar exato de seu nascimento. A luz parece pequena, mas é densa. Os poucos degraus por onde Júlia precisa descer, em direção a esse cheiro feito de luz, não ressoam. Júlia um dia pensou que fossem duros e de pedra e gastos. Mas na semi-escuridão os degraus não eram degraus, só ilusões por onde os pés passaram sem dar atenção à advertência simétrica.
Ao centro da adega, o cheiro impregna-se. Parece que o tempo não vai a lugar algum. Cada milímetro de relógio diz que nem cheiro nem tempo nem noite acabam. Mas Júlia entrou acompanhada nesse espaço-passado, e as mãos invisíveis impedem que retorne ao que é vazio. O corpo de Júlia afasta-se, o cheiro dilui-se. O lago de tristeza que vive do lado de fora anuncia-se, uma rotina de escassez. E a mulher Júlia, essa que de medida tem os seus sonhos, ainda sequer saiu da adega.
O lago está parado, como é da natureza dos lagos. É um silêncio aquático liso, todo ele à tona, a escuridão calada da profundeza das águas movendo-se por baixo, sem que ninguém a veja ou pressinta. Há um abismo estreito entre a porta da adega e o lago. Nessa parcela escavada de terra, Júlia já se sentou à espera, nesse banco encravado na parede ao lado. Sentou-se ali pelo tempo que pareceu preciso, ou desejado, ou conseguido. Hoje seus olhos passeiam entre a adega e a tristeza do lago. Todo o tempo do mundo, e até fazer de conta outra vez que o lago não é triste e a adega não é o cheiro da noite que chega em passos forrados de velhice. Fazer de conta que se pode ficar o tempo que se queira com as narinas cheias desse cheiro antigo, os olhos fechados e por trás deles a fotografia de uma noite em que fosse possível evitar enfiar os pés no lago, e sentir-lhe as ondas avançarem corpo acima. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão da adega, e esta diferente da solidão do abismo, e esta da solidão do banco, da solidão das noites, da solidão do tempo. E fazer de conta que há um cheiro no lago, quando não há. Fazer de conta que há um cheiro inconfundível na adega vazia, quando também não há.
A vida no lago é feita da solidão silenciosa da morte homeopática.

O lago faz morada, o lago penetra e invade, líquido onde só ar é preenchimento pacífico. O ruído único é o ronco surdo de motor de barco ao longe, no lago a subir em direção à garganta. A Júlia que hoje se posta diante do lago sorri seus olhos fechados: a linha do tempo mostra-lhe a sua própria imagem em busca do ressuscitar lento do carvalho, da janela, da luz e da água que vive no chão. Tudo dentro das suas narinas, nesse mundo feito de cheiros, mas mesmo nesse dia o lago está lá, em silêncio, de mãos dadas com o abismo do lado de fora da porta.
Do lado de dentro do corpo de Júlia, essa mesma que em seu movimento penetra a adega e mergulha no lago, a luz e a escuridão medem e regateiam seus espaços. A luz tateia com seus dedos finos os veios escuros que escorrem do lago, a sombra é como enguias que serpenteiam a sua escorregadez na água lodosa. Em meio à luta silenciosa entre os habitantes dos espaços, Júlia reergue-se no tamanho da lonjura do que enxerga. 
E, nesse instante, um corpo emerge da adega e do lago em simultâneo; olha-se; abre as suas duas mãos, e nelas cada um de seus dedos, e por eles despede as águas do lago e o cheiro doce e acre da adega submersa. Ao centro do lago, as últimas bolhas de água tentam engolir o mundo do ar. Nessa hora, fresca e clara e tingida de vermelho alvorada, não é possível fazer-se de conta que a solidão é prato compartilhado, nem o tempo animal invisível, nem a vida o esperar inerte de sentido.

O lago engole a adega, e ela repousa no fundo dessa água sem cor. Os olhos de Júlia encharcam-se de limpeza, e dessa água que brota de dentro dela levanta-se sem peso o dia de amanhã.

Foto: Thyana Hacla



23/09/2013

A morte, quando ressignificada

Batem-me à porta duas mortes, no dia de hoje. Distantes e diferentes, unidas num repentino quase a mesma hora. Nesse céu de equinócio, pode ser que se encontrem, pode ser que se auxiliem, nesse passeio pelo céu que as une naquilo que as difere.

A uma, leio-a em vida e em morte; tenho-a por perto em forma de livros, de versos, dessa forma de vida sobrevivente. A outra, guardo-a na marca da retina, na estampa impressa do abraço no corpo. As histórias que sei de um destes que se ausentam localizo-as nas páginas impressas, nas conversas de outros, nos retalhos de conhecimento que fui colecionando ao longo de muitos anos. As histórias que sei de outro sei-as porque as ouvi de sua própria boca, porque vi o desconcerto no movimento de suas mãos, a precariedade como manto sobre seus ombros, o ser indefeso na maneira como atravessava os umbrais das portas. Doem-me ambas, e por motivos tão distintos. 

António chama-se um, Julião chama-se outro. Um falou o português que aprendi de pequena; o outro, o português que se fala nas ruas de Santos. De um, tenho a internet plena de imagens da sua pessoa em vida. De outro, a memória dentro de mim.

Ao António, de nome completo Ramos Rosa, guardo-lhe a inspiração da palavra que aspira ao silêncio. Recorto, nesta noite que escolho como réquiem, fagulhas da sua poesia para que me acompanhem no seu acompanhar. É ele o poeta que diz

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.

Apago as luzes da noite para escutar-lhe melhor as palavras. Espalham-se sobre mim como poeira dele mesmo.

Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento 

E penso no Julião, esse Julio de sobrenome da Silva tão comum, esse homem de 51 anos que vi diante de mim sonhando com a caranguejada que prepararia para a família assim que fosse de novo um homem livre; esse homem grande, de sorriso largo e gesto acolhedor, sobrante de capacidade de ver na desgraça sua o riso à espera, o chiste certeiro; esse homem perdido dentro da incompreensão do mundo em que se planta, como árvore em busca do sol que nunca chega. 

Julião temia, sem talvez perceber ao certo, a saída da prisão. Temia o dia da soltura, o enfrentar do mesmo mundo de antes reconhecendo-se outro. Quem perceberia a mudança? Quem o veria diferente? Talvez se perguntasse à noite. Retardou o quanto pôde a sua soltura. Até chegar o dia de sair, mesmo dia em que, certeira e rápida, encontrou a morte no virar da esquina. 

Espero, nesta noite estrelada, que a sua ida tenha sido breve, que o seu riso tenha ecoado nos espaços siderais, que os anjos todos do céu estejam sentados à sua volta, gargalhando de alegria com o contador de piadas que acaba de chegar; e que se encontre à porta do céu sendo reconhecido pelos passos que conseguiu dar. E quem sabe António esteja também sentado à mesma porta, esperando a sua vez, e talvez um se sente ao lado do outro, e Julião se lembre dos poemas que lemos juntos, e mesmo que nenhum deles seja de António, que um reconheça no olhar do outro a humanidade silenciosa que só a palavra poesia tornada silêncio consegue conter.

Salve, António! Salve, Julião!


17/09/2013

Consumar

Cada coisa a seu tempo. Cada ser a seu centro.  Consumação foi a terceira palavra que recebi como legado de seu Zé do Coco.

Sento-me à beira do lago aqui perto de casa. Tenho mantido distância de lagos nos últimos tempos, as suas profundezas lembram sangue, sem terem cor nem gosto de sangue. Apenas doem como se sangue que jorrasse de ferida não cicatrizada.

A meio deste lago diante do qual me sento, persigo com os olhos este buraco escuro guardado por quatro paus imóveis. A água escorre para dentro dele com a velocidade do tempo. O lago nem se altera, e a água já se foi. Escoa-se em persistente silêncio. Não há nada a fazer, a não ser deixar-se escoar.

Lembro-me de Isaura, uma das minhas pacientes personagens, à espera do meu tempo de abrir-lhe caminhos. Não tenho como agora, digo-lhe baixinho, preciso dedicar-me ao que está consumado. Como este novo livro, acabado de sair da gráfica. Este novo livro, que assim que sai se torna velho. Tão sutil é a idade dos livros.

Ainda sequer o tenho entre as mãos, a este novo livro que já vejo em imagem. Mas porque o sei nascido, seu Zé segreda-me outra vez, a meio desta madrugada, a terceira das três palavras. E eu acordo com um sorriso pairando entre as pálpebras, viro-me para o outro lado, e durmo em paz. A vida está completa. A vida está consumada.


Imagem: Sergio Oliveira

14/09/2013

A arte da metamorfose

Decidi ler um pouco do pensamento de Hannah Arendt. Não exatamente pelo filme que assisti semana passada, mas por uma única cena, que ficou encrustada dentro de mim. É ela, Hannah, deitada numa espécie de divã. Nada acontece na cena em tons ocres e marrons, a meia luz, a cinza de um cigarro acumulando-se na ponta, sem falas, sem música, sem nada. E tudo acontece. Foi esse "tudo" imóvel e não-visível que me pôs em movimento.

Entretanto, chegou-me às mãos a foto da cabeça de touro criada por Picasso em 1943. Não lembrava da escultura, mas lembrava de ter lido em algum lugar que o pintor dissera que fantástico mesmo seria ele jogar a sua escultura fora e um homem comum qualquer passar e descobrir que com aquilo podia fazer um selim e um guidão de bicicleta. Era a isso que ele chamava de poder da metamorfose.

Acho que era na metamorfose das coisas que Arendt pensava naquele divã, fumando aquele cigarro, com aquelas roupas sóbrias e aquele olhar que parece dentro e fora ao mesmo tempo. Imagino seu pensamento tomando forma dentro de si própria, esse pensamento que nasce do seu próprio pensamento, essa metamorfose invisível de si mesma. Dizia ela que a capacidade de pensar é a fonte imediata da obra de arte. É nesse lugar, creio, que se aloja Picasso. Dizia também que a troca e o uso são a fonte imediata de todo objeto. É do reino do pensar que a arte nasce, assim como é do reino da troca e do uso que nascem verdadeiramente as coisas. 

Em um de seus livros, que creio ser o mais emblemático e por isso mesmo foi o que escolhi para ler ("A condição humana"), diz-nos que existe uma relação importante entre essas capacidades do homem (o pensar, o trocar, o usar), e seus atributos (os sentimentos, os desejos, as necessidades); uns estão relacionados aos outros, embora não sejam a mesma coisa e embora se precisem entre si. Sentimentos, desejos e necessidades, enquanto não transmutados pelo pensar, pela troca e pelo uso, ficam aprisionados dentro de cada um, não ganham o mundo, não se tornam.

O desejo, enquanto ainda não transmutado, é pura ganância. Eu quero algo, na minha mão, da minha forma, do meu jeito, no meu tempo. É um movimento indomável, incontrolável; fácil ver o sofrimento logo ali. Tanto podemos falar do desejo de coisas como do desejo amoroso. O desejo das coisas deixa de ser ganância quando se troca - tenho uma coisa porque dei/ofereci algo em troca, recebo na minha mão porque algo saiu dela. É um movimento equilibrador. Inspira-se e expira-se. No amor, o desejo cru e violento transforma-se em entidade de feição humana quando a troca acontece, quando o meu desejo descontrolado se entrelaça ao desejo do outro, e desse entrelaçamento nasce a transmutação do próprio desejo, nasce a possibilidade de equilíbrio que permite a respiração.

Necessidade é puro anseio. Precisa-se da coisa, faz-nos falta, como o próprio ar. Enquanto as forças do querer e da vontade (Arendt fala em "forças do uso") não são colocadas em movimento, a necessidade conduz também ao sofrimento. Aquilo de que se precisa precisa ser feito, é preciso que a mão se levante, que o passo seja dado, que o coração seja ativado pelas forças da coragem e se torne movimento. Enquanto se necessita e não se atende a necessidade, através da vontade tornada ação, anseia-se. E sofre-se.

Para Arendt, todo sentimento é uma dor muda - seja dor, seja não-dor. Ausência de dor, para ela, é fragmento minúsculo de tempo entre os estados de dor e não-dor; é diferente de libertação, que seria a saída do estado doloroso, algo que só se equipara em intensidade à própria dor. De qualquer forma, a dor. Sempre presente: a nossa percepção dela é que muda de um lado ao outro. 

É o movimento do pensar que, assim como a troca e o uso fazem desejo e necessidade transcenderem, faz transcender o sentimento. Esse pensar que não se prende, antes se solta pelo exercício da arte. Essa dor muda de Picasso que se transforma em escultura e ao mesmo tempo em pensamento sobre si mesma. Essa dor muda que se transforma em palavra sem destino, apenas para poder absorver e transcender o sentimento que não cabe no peito porque simplesmente não lhe pertence - é do mundo.




Imagem: Picasso, 1943