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31/12/2013

Expectativas e esperanças


Termino o ano resolvendo um grande coágulo do meu 2013. Um coágulo, veja bem, é uma massa semi-sólida que se forma no sangue ou em qualquer outro fluido do corpo humano. Atrapalha muito o fluir dos elementos líquidos, aqueles seres que têm uma ligação forte com o tempo, como eu ouvia hoje à tarde ao telefone. Esses são os seres que transbordam, pingam, inundam, derramam, esparramam-se. Pois então: todo ano tem seus coágulos. O deste, de certa tortuosa forma, tem a ver com a tradução que se deu a um dos romances de Dickens, Great Expectations.

Pares de palavras são verdadeiros atratores. Desapegar e desprender, expectativas e esperanças: é como se alguém entreabrisse uma porta e ficasse me chamando, assim, só com um dedinho, uma tentação absurda me tirando daquilo que pareceria ser meu caminho, só que não: não é. Meu caminho é correr atrás dessas coisas pouco claras que parecem existir nas palavras mas existem mesmo é nas pessoas.

Na verdade, só me lembrei disso porque decidi hoje, último dia do ano, avançar numa tradução que veio se arrastando atrás de mim ao longo dos meses. Como se o dia nº 365 fosse fazer uma grande diferença. Tanto faz, pensei: sempre é tempo de começar. Mas a inspiração anda mesmo um tanto falha, e a mente insistiu outra vez em voar para outros cantos. Eu observo-a, e rio-me, e vou atrás dela. Para que resistir?

Para não chamar muito a minha atenção, a mente mantém-se no quesito "tradução", e lança-me de volta, como se fosse um disco de luta grega, esse Great Expectations. Na tradução para o português, transformou-se em "Grandes Esperanças", o que me incomoda há tempos, se penso que o natural seria "Grandes Expectativas". 

Os bascos dizem Itxaropenak quando querem falar de expectativas, e Espera quando querem falar de esperanças. Os alemães usam Erwartung e Hoffnung. Os franceses, Attente e Espoir. Os nigerianos que falam igbo, dizem Aturo-anya ou Nwere-olileanga. Parece tudo diferente uma coisa da outra. 

Mas é só impressão. Expectativa, leio, é a qualidade de quem tem esperança. E as esperanças são aquilo que tem quem espera. Quem tem esperança, tem possibilidades e vê perspectivas, e portanto tem expectativas. Porque espera, qual líquido, a ação do tempo. E por isso cria em torno de si um redil de expectativas: coisas pelas que espera. Os ingleses têm uma porção de palavras para ficar à espera: looking for, wait, awaiting, expecting...

O coágulo do meu ano chamou-se expectativas. Uma massa sólida atravancando-me o caminho, impedindo-me de fluir por dentro da minha vida com a leveza que prezo, que gosto, que sou. Não a expectativa em si, veja bem, mas a máxima do "bom-é-não-ter-expectativas". Como se eu pudesse viver sem ter expectativas. Como se a expectativa fosse em si mesma um pecado mortal, daqueles que nos condenam ao fogo eterno. Minou-me a esperança, andar à caça das expectativas para estripá-las nas minhas praças privadas. Dediquei-me a esfaqueá-la diuturnamente, engatinhando atrás dos meus atos para reduzi-los a cinzas assim que queimassem em vida. Extenuei-me, a meio tempo disso tudo.

Ora bem. Expectativa é uma coisa bacana. Consigo mesmo e com os outros. A expectativa faz com que entremos uns dentro dos outros, faz com que queiramos atender uns as expectativas do outro. Nada de errado, até onde eu percebo. A expectativa é fundamental na figura de Pigmaleão, aquele escultor e rei do Chipre a quem Vênus consentiu dar vida à estátua que ele tinha terminado, e por quem o escultor havia se apaixonado, tamanha a perfeição, tamanha a entrega. O sentimento do artista mudou a condição da estátua - e isso, eureka!, é o efeito que a expectativa tem no comportamento e no ser das pessoas. Freud, e depois dele Erich Fromm e Carl Rogers, e mais uma porção de gente, dedicaram-se a esse Pigmaleão  que Ovídio canta em seu livro X de "Metamorfoses", lá no ano 8, portanto há muito tempo.

Rosenthal e Jacobson, nos anos 60, falam do poder desse efeito na educação: aquilo que se projeta no outro é aquilo que o outro vai devolver de si mesmo. Porque somos todos um, acho eu, e todos maleáveis e sujeitos àquilo que o outro provoca em nós a partir do que pensa a nosso respeito e projeta em nossa direção. Professores que consideram o efeito das suas expectativas nos alunos, e sabem o quanto efetivamente isso participa do processo de construção do outro, serão professores inesquecíveis pelas marcas que deixam.

Portanto, essa tendência moderna de não ter expectativas é um tiro no pé que dói antes mesmo de ser disparado. Ter expectativas faz com que nós nos transformemos, faz com que o outro se transforme, faz com que o mundo se transforme. As profecias auto-realizantes de Merton fazem parte deste raciocínio, assim como a ideia de que mudanças marcantes apoiam-se no cruzamento de conversas verdadeiras, quando o diálogo permite que muitas coisas se cruzem e entrecruzem, e que novos olhares (isto é, novas realidades) emerjam e existam.

Nesse encontro, nessa conversa, nesse diálogo, é fundamental a paresia platônica, mais uma palavra deste ano que quase fica sem ser escrita!, e que se refere à coragem de dizer a verdade. Não a verdade do mundo, não a verdade consentida e reconhecida, mas a verdade de si mesmo. Aquele que pratica a paresia nos seus encontros, encontra dentro de si as forças de ser e dizer-se ele mesmo, criando-se sujeito a partir de seu discurso, ainda que provoque dissenso em vez de consenso. Dizer o que se pensa, aqui, não é ter certezas. É problematizar, é retirar o conforto ameno em que todos ficamos quando achamos que concordamos com o que aí está, e que os outros concordam com o que aí está. A paresia incomoda, e é difícil, é é uma luta. Para os gregos, lá no século V, era indispensável à vida social e política que existisse aquele que praticava a paresia - o paresiastas. Alguém que é e diz, independente do que os outros digam que é.

Não sei se isso me assusta, se me encanta. Reconheço-me pelos olhos dos outros aqui e ali, e quero mais é ser rio que corre para o mar, e que as rochas e as ilhas que encontre pelo caminho se transformem no meu transformar e me transformem no seu transformar. Quero absorver e deglutir todos os coágulos que congestionarem as minhas veias, liquidificá-los a partir da verdade que emerge de mim a partir do olhar e da expectativa do outro. E lançar de volta, com mãos amorosas e firmes, as minhas expectativas, que são a minha esperança de que a vida seja, antes de qualquer outra coisa, um ato de coragem.

14/09/2013

A arte da metamorfose

Decidi ler um pouco do pensamento de Hannah Arendt. Não exatamente pelo filme que assisti semana passada, mas por uma única cena, que ficou encrustada dentro de mim. É ela, Hannah, deitada numa espécie de divã. Nada acontece na cena em tons ocres e marrons, a meia luz, a cinza de um cigarro acumulando-se na ponta, sem falas, sem música, sem nada. E tudo acontece. Foi esse "tudo" imóvel e não-visível que me pôs em movimento.

Entretanto, chegou-me às mãos a foto da cabeça de touro criada por Picasso em 1943. Não lembrava da escultura, mas lembrava de ter lido em algum lugar que o pintor dissera que fantástico mesmo seria ele jogar a sua escultura fora e um homem comum qualquer passar e descobrir que com aquilo podia fazer um selim e um guidão de bicicleta. Era a isso que ele chamava de poder da metamorfose.

Acho que era na metamorfose das coisas que Arendt pensava naquele divã, fumando aquele cigarro, com aquelas roupas sóbrias e aquele olhar que parece dentro e fora ao mesmo tempo. Imagino seu pensamento tomando forma dentro de si própria, esse pensamento que nasce do seu próprio pensamento, essa metamorfose invisível de si mesma. Dizia ela que a capacidade de pensar é a fonte imediata da obra de arte. É nesse lugar, creio, que se aloja Picasso. Dizia também que a troca e o uso são a fonte imediata de todo objeto. É do reino do pensar que a arte nasce, assim como é do reino da troca e do uso que nascem verdadeiramente as coisas. 

Em um de seus livros, que creio ser o mais emblemático e por isso mesmo foi o que escolhi para ler ("A condição humana"), diz-nos que existe uma relação importante entre essas capacidades do homem (o pensar, o trocar, o usar), e seus atributos (os sentimentos, os desejos, as necessidades); uns estão relacionados aos outros, embora não sejam a mesma coisa e embora se precisem entre si. Sentimentos, desejos e necessidades, enquanto não transmutados pelo pensar, pela troca e pelo uso, ficam aprisionados dentro de cada um, não ganham o mundo, não se tornam.

O desejo, enquanto ainda não transmutado, é pura ganância. Eu quero algo, na minha mão, da minha forma, do meu jeito, no meu tempo. É um movimento indomável, incontrolável; fácil ver o sofrimento logo ali. Tanto podemos falar do desejo de coisas como do desejo amoroso. O desejo das coisas deixa de ser ganância quando se troca - tenho uma coisa porque dei/ofereci algo em troca, recebo na minha mão porque algo saiu dela. É um movimento equilibrador. Inspira-se e expira-se. No amor, o desejo cru e violento transforma-se em entidade de feição humana quando a troca acontece, quando o meu desejo descontrolado se entrelaça ao desejo do outro, e desse entrelaçamento nasce a transmutação do próprio desejo, nasce a possibilidade de equilíbrio que permite a respiração.

Necessidade é puro anseio. Precisa-se da coisa, faz-nos falta, como o próprio ar. Enquanto as forças do querer e da vontade (Arendt fala em "forças do uso") não são colocadas em movimento, a necessidade conduz também ao sofrimento. Aquilo de que se precisa precisa ser feito, é preciso que a mão se levante, que o passo seja dado, que o coração seja ativado pelas forças da coragem e se torne movimento. Enquanto se necessita e não se atende a necessidade, através da vontade tornada ação, anseia-se. E sofre-se.

Para Arendt, todo sentimento é uma dor muda - seja dor, seja não-dor. Ausência de dor, para ela, é fragmento minúsculo de tempo entre os estados de dor e não-dor; é diferente de libertação, que seria a saída do estado doloroso, algo que só se equipara em intensidade à própria dor. De qualquer forma, a dor. Sempre presente: a nossa percepção dela é que muda de um lado ao outro. 

É o movimento do pensar que, assim como a troca e o uso fazem desejo e necessidade transcenderem, faz transcender o sentimento. Esse pensar que não se prende, antes se solta pelo exercício da arte. Essa dor muda de Picasso que se transforma em escultura e ao mesmo tempo em pensamento sobre si mesma. Essa dor muda que se transforma em palavra sem destino, apenas para poder absorver e transcender o sentimento que não cabe no peito porque simplesmente não lhe pertence - é do mundo.




Imagem: Picasso, 1943