07/09/2013

7 de setembro

Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.

Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.

Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro "Eichmann em Jerusalém", onde Hannah cunhou o termo "a banalidade do mal" para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.

Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses "superiores" qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.

Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez - para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.

Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento - para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade - e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.

A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.


"Open Box", de Gavin Turk, 2008

06/09/2013

Moedas, gatos e decoerências

Jogo a moeda no ar, uma vez e outra e outra. Assim que começo a escrever, e portanto penso, alicerço a minha vontade e a minha força em um dos lados da moeda. Presto-lhe atenção, mesmo sabendo que é uma dentre possibilidades. As bordas, o centro, as rugosidades, o tom, o endurecimento do tempo na oxidação do metal. Penso. Procuro entender; não condeno, não perdoo. Apenas procuro compreender a moeda, e enquanto não consigo tê-la em mim em todas as suas formas ao mesmo tempo, observo-a nesse seu lado exposto intensa, completa e apaixonadamente. Depois, lanço-a ao ar outra vez, para que viva na possibilidade aberta, para que seja outra vez cara e coroa ao mesmo tempo. E cai no outro dos dois lados, e o que faço é entregar-me a ele com a mesma intensidade e paixão.

Migro da moeda para a caixa de madeira onde se aninha, à espera, o gato que Schröedinger pôs dentro dela. Enquanto não me aproximo da caixa, o gato está necessariamente vivo e está necessariamente morto. O meu movimento em direção à caixa, o impulso da minha pergunta está contido na mão estendida. Chama-se pensar, o movimento da minha mão, se eu o quero assim. Nasce do interesse-curiosidade, da necessidade de saber que é condição humana. É preciso que o gato seja vivo ou morto, e sou eu, e o pensar que faço conter no movimento da mão, que o faz viver ou morrer no instante em que abro a caixa. Enquanto permanece vivo e morto, não o vejo, não sou sua nem ele meu, dimensões apartadas pelas paredes de madeira da caixa. Mais livres, talvez - mas também mais cativos de tudo o que não tentamos compreender.

A pergunta que não faço, quando escolho olhar a caixa à distância e impedir que minha mão a abra, mantém a possibilidade vida/morte, e mantém a ignorância do meu pensar. Sem pensar, não faço, não sou. Aprisionado no não-interesse, mantenho-me no estado de não-saber. E por isso posso recostar-me na cadeira e respirar um alívio denso que nasce na pessoa que não exerce o seu pensar, e por isso está condenada a não saber o que contêm as caixas que passam em seu caminho.

(O que faço neste momento é escapar das tarefas que me esperam para poder sossegar o espírito. Tudo o que me atinge anuncia-se parte de um todo, e é irresistível não querer parar tudo apenas para poder pensar. Que equivale, em mim, a escrever, essa atividade pensante que me organiza o coração, especialmente.)

Hamlet está diante da mesma caixa com o mesmo gato dentro dela. Somos agora três observando a caixa: Schröedinger, Hamlet e eu. O que fazer, diz Hamlet, com o medo desse país não conhecido que nos aguarda, e do qual nunca ninguém voltou? Abro a caixa ou deixo-a fechada? Hamlet quer saber o que a caixa contém, embora o medo o paralise. Ser vivo e ser morto não é a sua questão: a sua demanda reside no ser vivo ou ser morto. Hamlet procura, em meio ao seu pavor de si mesmo e das forças que movem dentro de si mesmo, ser o agente da decoerência, o que decide a morte e a vida do gato, o que nos joga no modelo clássico fechado e cartesiano onde não seremos duas coisas. Se percebesse que também o movimento de ir e vir da caixa é dúplice e aberto, poderia ir, para depois vir, e depois ir novamente, e a cada um desses movimentos saber-se presente em todos. A superposição é fato, e o não escolher em dado momento um dos lados só nos impede de conhecer ambos.

A experiência aumenta o nosso repertório de compreensão do mundo. É ativa, empreendedora. É atividade de descoberta. E a sua raiz é perire - morrer, perecer. Toda compreensão é morte, toda compreensão é vida, pois vida e morte são os dois lados dessa moeda que atiro ao ar mais uma vez. Perire recua: sua raiz é ire - ir, andar, marchar. Lanço a moeda uma vez mais. Interrogo-a em pleno voo, e ela cai-me na mão aberta como as coisas. Todas essas coisas que parecem, aparecem, permanecem e desaparecem.

As minhas perguntas nascem do sentido da necessidade, do sentido da unidade, do sentido da verdade; querem-se aberturas do ser enquanto ser das coisas. As perguntas que faço sintetizam um ponto de possibilidades, e sinto que devo investigá-lo até que se abra em flor múltipla de várias respostas.

Não posso fazer isso sozinha: os outros são-me fundamentais. E por isso o gato de Schröedinger  por isso a decoerência quântica, por isso o pensamento vivo de Arendt, por isso a fala de seu Cobra Coral, por isso esse Caravaggio que me oferecem ao final, por isso a conversa destes professores grávidos ao meu redor, a informarem-me em mil tons de verdade que estamos e somos. Ao mesmo tempo, íntegros e inteiros. É desta forma, e de todas as outras que se abrirem pelo caminho, que quero viver.


Muitas informações sobre a experiência do gato de Schröedinger 
e sobre decoerência na internet. Frases magistrais no filme Hannah Arendt. Uma sucessão de informações que não consigo localizar no espaço. Fico a dever as referências exatas, mas preciso agradecer ao Ivan Guerrini e à Regina Arnab pelas coerentes postagens sobre decoerência, à Karla Neves pela Hannah e pelo Caravaggio, e ao Ivan pela voz de seu Cobra Coral.


05/09/2013

A luz do trabalho

Tudo começou com um Ê do lado de dentro, hoje, logo ao acordar. Atrás desse Ê vibrátil, desdobraram-se a partir da nuca, num lugar que vou chamar de "atrás da garganta", dois emaranhados de letras: elaborar e elucubrar. A alma em processo de retorno à matéria procura seu espaço, nessa povoação de outros seres que encontra ao voltar, e atravessa-me como forma de imaginar. Tenho trabalho pela frente, sei que penso um segundo antes de levantar. Ê permeia o dia inteiro, suave canto de alguém que se aproxima.

Esse trabalho que sei ter pela frente, porque estou disposta a perceber onde se origina e qual é o combustível que o faz avançar, produz uma espécie de agitação interna que só vou chamar de criativa porque não tenho outra palavra melhor, e também porque o I-Ching me ofereceu, de bandeja, o seu primeiro hexagrama: Chi'en, O Criativo. O céu em cima, o céu embaixo. A certeza da duração do tempo em cima; a atitude do homem sábio embaixo. Essa agitação que chamo de criativa não incomoda, não altera o rumo nem fere o prumo. Produz-me, no mais das vezes, isto: escrita.

Volto a meio do dia em busca do Ê. Do que o explique. Sinto-o em formação dentro da boca, batendo-se como um barco contra os dentes e logo a seguir contra as paredes de carne; reflui pela longa caverna que é a boca. Um eco de som dentro dessa gruta, um cruzamento abaixo do céu da boca. Deve haver um homem sábio dentro dela, penso, talvez seja através dele que esse Ê se prolongue e me alcance. Os nervos que se cruzam por todo o corpo, os trançados de músculos quase encruzilhadas, todos a um só tempo respondem: Ê-ê. O coração vibra vida, o pensamento perde a neblina, a ação dirige-se certeira. Os índios Tubuguaçu diziam que é aqui, na altura da garganta onde este meu Ê vibra, que a alma se torna livre. A mesma garganta que se contrai, se abre, deixa o outro passar, acolhe-o numa doçura de nuvem prestes a chover. No Ê vibrante desse lugar tão interno e sensório e primitivo, nasce a parte de mim mesma que me faz mais humana. Como encontrar o amante do mundo do espírito.

Em seu desdobrar-se ao longo da tarde, Ê torna-se elaborar. Aquilo que, de laborare - o trabalho, a labuta, o esforço, a luta -, só por causa desse Ê que vibra em mim, se transforma em tomar cuidado, em atender o chamado. Elaborar, essa coisa que pensamos fazer quando pensamos em algo e lhe conferimos significado, é antes de mais nada ter e tomar cuidado. Tudo o que é frágil, tudo o que é forte, demanda cuidado. Ê vibra em mim demandando cuidado.

Começo de noite, Ê migra para as terras do elucubrar. Penso que derive de locus, o lugar. E até me divirto pensando "eureka!: o lugar do trabalho!". Mas não, longe disso. Elucubrare é (apenas) compor à noite, queimar até o óleo da meia noite acabar. Como fazem meus olhos quando não querem fechar-se, nem os de fora, nem os dentro. Até o óleo da meia noite queimar. Leuk, essa palavra tão antiga, mãe de lux, é a luz branca que brilha onde moram as trevas, e é de lá que nasce a palavra elucubrar. É preciso, à noite, trabalhar sob luz. É preciso imaginar o contorno da sombra, o seu preencher, os seus pontos de toque e contato.

Ê, como bisturi preciso, atravessa-me o sentimento. Distancia-me. Objetiva-me. É forte, paixão em estado primitivo. Não se permite recusas, não admite meios termos. Elaboro o lugar em que estou, sob a luz que me acendo. Como se essa antipatia do Ê cruzado em meu peito fosse recurso válido de salvação. Feixes de força dançando ao meu redor. Já é madrugada, e eu durmo de olhos fechados.




Os índios Tubuguaçu, e outras coisas, estão citados em http://www.ouvirativo.com.br/mp7/pdf/tx_am2_anadenise.pdf
A imagem representa Iansã

02/09/2013

Indiferenças, irrelevâncias e insignificâncias

Dentre os vários problemas que o cosmos enfrenta, creio que o mais aflitivo é o da lei de oferta e demanda. Menos simplista que a lei básica de consumo, o cosmos faz uso de formas peculiares de reorganização do (des)equilíbrio entre os circuitos energéticos que regem a tudo e a todos. Uma das formas é a transformação do mundo a partir do prefixo "in".

A negação.

Não existe propriamente uma régua que indique o quanto se oferece e o quanto se procura. Nem de que maneiras mil esse movimento duplo pode compor-se a si mesmo. Mas o dar-se ao outro é sempre uma moeda de dois lados, e o milagre acontece quando a conseguimos equilibrar de pé. Quando o que se dá e o que se recebe estão de acordo e em paz. Diferente de medidas iguais, veja bem: é mais, creio eu, uma questão de acordo daquilo que permite que a moeda se equilibre e não pese nem num ombro, quer dizer coração, nem em outro.

O acordo pressupõe, antes de antes, percepção de que se recebe. Consciência daquilo que depositam em suas mãos. Sem perceber o que o outro dá (repare: não é o quanto, mas O que dá), não há nem como começar a pensar em acordar nada. Tudo dorme. Tudo é inconsciência.

Mas pode ser que se perceba, mas não se dê atenção. Porque pode ser que não se realize, de fato, tudo o que se eleva acima do nível horizontal cotidiano. Pode ser que não se perceba o relevo, a suave ondulação que o outro processa na sua vida, os meandros que o novo rio desenha em sua paisagem. Não se percebe o relevo, e as coisas tornam-se irrelevantes. Nem peso têm, e logo perderão a forma. E aí, de irrelevantes a invisíveis.

Pode também ser que não se atribua significado; que de tão ocupados com os nossos próprios mundos, não exista o movimento de dar sentido/significado ao que se nos oferece. Talvez porque a oferta nos seja estranha, talvez porque não a tenhamos recebido antes, e porque o novo assusta. Ou porque pareça estranhamente familiar, já andamos ali por perto, pensamos - e o velho assusta, mesmo que saibamos que tudo se recria e tudo se transforma. Pode ser que nos sintamos donos e senhores daquilo que acreditamos ser nosso por direito. Porque (podemos dizer) se chegou até nós é porque era para ser nosso. O cosmos ri-se, e tudo aquilo a que não conferimos significado, torna-se insignificante.

E pode ainda ser que olhemos em volta e não percebamos a diferença. Que consigamos apenas ver o nosso próprio reflexo. E como de nós mesmos só conhecemos uma parcela, e mesmo com o cosmos aos gritos, passamos reto pela parcela de nós mesmos que o outro nos desperta e desvenda. Nós preferimos ignorar. E avançamos estrada afora, vida afora, tempo afora, cada vez mais indiferentes, desacordados da transformação que se opera debaixo dos nossos olhos.



29/08/2013

Contorno

Acordei hoje com o pensamento em um querido amigo, através de uma das palavras que usa na busca de si próprio. Contorno. Sinto-me muito à vontade, porque a raiz da palavra é muito óbvia e assim é como se eu mergulhasse num rio sem margens. Nasce da palavra torno, que sempre foi isso mesmo: torno. Tanto o instrumento em que se prendem coisas para torná-las arredondadas, quanto o verbo tornar, ou seja, voltar. Talvez por isso meu amigo ande sempre com ela a tira-colo.

Contornar deve ser algo esférico, linha curva que torna ao lugar de onde saiu. Assim, contorno fecha, encapsula. Contorno é linha que circunda centro. É a linha periférica que delimita e diferencia o fora e o dentro. Espaços. Quase me deixo levar pela corredeira dos caminhos da vida reencarnatória, mas não. Quero nadar em outras águas.

Não sei se meu amigo estará certo na sua busca de contorno. Olhando a palavra, assim de frente, e percebendo-a linha em torno do que está quase do lado de fora, tendo a crer com ele que os outros podem dar-nos contorno, podem guardar-nos as proporções, podem fazer-nos acreditar na própria massa concreta, ajudar-nos a saber o que somos dentro, o que é o fora. Porém, apenas se tivermos centro, e recheio. De nada nos salvará uma linha a contornar o espaço vazio. A vida não é maniqueísta.

E assim, desde manhã cedo até agora, quero muito dizer-lhe que vale a busca do contorno, sabendo que é preciso haver o que contornar. Ele já sabe disso que lhe digo, mas é sempre bom ouvir a mesma coisa, o retorno daquilo que já se sabe. Quero dar-lhe uma espécie de contorno, que de repente se parece com aconchego.

Por outro lado, tornos são coisas perigosas. O mesmo mecanismo que permite o torneado perfeito de um pedaço de madeira, promove o desmembramento do todo em partes. Nem é preciso lembrar do "potro", tão velho quanto a velha Inquisição. Basta pensar no dia a dia, nos tornos que encontramos e nos desmembram, nos estraçalham, nos rompem os tecidos mais delicados e frágeis, sem que depois consigamos juntar as peças que nos faziam uno.

Por isso, estou em dúvida se se deve desejar o contorno através da mão do outro. O conhecimento de mim mesma que me chega pelas mãos e bocas do outro, encantador exercício de alteridade, sim. Mas ao contorno talvez seja melhor, meu amigo, procurá-lo na camada fina que dá forma às nossas próprias mãos. Os traços que desenhas com tanta maestria (sejam letras, sejam formas) serão aquilo que dá contorno à tua alma, que dá contorno àquilo que de teu se encontra com o contorno do outro. Porque ainda há isso: o contorno do outro, que ele desenha como quer, deixando ou não espaços porosos por onde os outros possam permeavelmente entrar. Por onde nós possamos entrar. 

A imagem acima retrata um torno eclesiástico, um torno de bancada especialmente desenhado e construído para párocos, abades e acólitos que gostem de marcenaria. A boca do torno são essas duas mãos de ferro, que eventualmente poderão ser revestidas com luvas de veludo, para não danificar as peças mais delicadas. Nem sempre quem usa o torno saberá reconhecer a delicadeza do material, e pode ser que se confunda, e deixe de usar o veludo que impediria as dores no corpo torneado. As mãos podem ser de aço, e podem ser de seda: de pouco servirá se não souberem reconhecer os veios da matéria com que trabalham.

Melhor isto: transformar-se em esponja de contornos fluidos, que ora se mergulha na água do banho, ora se põe a secar na janela escancarada ao sol. A substância interna está lá, num estado variável que não lhe altera a essência. O contorno que lhe dermos dependerá do ambiente externo que a acolha, sim. E nós dependeremos de manter o centro no centro, e o contorno no contorno.




26/08/2013

Convergência Jedi

É a solução. Nada de quebrar, de se dobrar até o chão da própria alma para (imaginar) seguir em frente. A solução é a convergência.

Recebi a tarefa de pensar a palavra. De pensar-lhe as letras. De pensar-lhe o uso. Nesse momento tão raro e único em que pensar e sentir precisam encontrar-se, em paz, é o que de melhor posso fazer: pensar as palavras para poder senti-las.

Decido investigar. Graças a são google, descubro não só a etimologia da palavra-pensamento-de-hoje, mas ainda outras coisas que me intrigam. Não necessariamente por elas mesmas, mas pelo fato de me virem parar às mãos. Descarto umas, porque parecem becos sem saída; insisto em outras, não porque lhes veja a saída, mas pela impressão de que a possuam. Pode ser tudo um engano. Mas...

Convergência, que à primeira vista poderia dizer de duas coisas que se dirigem para o mesmo lugar, até que se encontrem, deriva de convergens. É algo, sim, em conjunto - mas é a ação de inclinar-se junto. Numa associação de ideias a la Rubem Alves, penso nos bambus do sítio. O lugar comum do bambu-que-se-inclina-sem-quebrar. Talvez sejam precisos dois bambus, um inclinando-se sobre o outro, um convergindo para o outro. Ou talvez dois sejam um. Até porque dando dois passos etimológicos para trás chega-se a vergere: inclinar-se. Talvez o con não tenha tanta razão de existir assim, e talvez essa seja a raiz também da palavra vergar? Não. Pura especulação. Vergar deriva de virga, que tanto se aplica a broto, quanto a caule, quanto a galho. O esforço etimológico frequentemente conduz a mal entendidos e enganos.

Vergere responde por mais coisas. Depois de muitas, incompletas e cefaleicas leituras, venho a saber que Vergere foi uma cavaleira Jedi que instruiu Jance Solo (sobrinho de Luke Skywalker e filho da Princesa Leia) no uso da Força. Segundo seus ensinamentos, a Força não tem lados. O "lado negro da força" (aquele do Darth Vader, lembra?) não existe na Força em si, porque a Força é monista. O que existe é a noção de que as suas ações valem mais do que as suas intenções, de que é necessário escolher e agir, e de que é preciso ir ao encontro do universo com amor. "The dark side of the Force" é responsabilidade do cavaleiro Jedi e de quem mais dela se aproximar. Não consegui entender, nesse "universo expandido" em que os anos se contam como ABY e DBY (ou seja, antes e depois da batalha de Yavin), se os ensinamentos chegaram a bom termo ou não, porque afinal de contas o tal do Jance acabou por transformar-se em Darth Caedus, depois de muitas idas e vindas entre os lados de todos os tons de cinza da Força.

O importante, dentro deste (para mim) caos altamente organizado em que qualquer jogador de RPG deve circular com desenvoltura e habilidade, é que Vergere decreta a não existência de lados da Força. Deve ser por isso que um bambu baste, cada um de seus gomos inclinando-se suavemente para permitir que a estrutura não colapse. Convergência, a palavra legado que me cumpre investigar, fala-me agora da necessidade de inclinar-se com a suavidade do bambu e a determinação de um cavaleiro Jedi. Com a atenção e a consciência de que a Força aí está, a serviço daquilo que se determine dentro desta vida nossa de universo tantas vezes encolhido. A serviço daquilo que se perceba como matéria ou como seu reflexo no chão duro da vida - escolher e agir, dentro do propósito maior que, seja aqui, seja na República Galáctica, responde pela mesma palavra: amor.


A foto é da Thyana Hacla, e parte do "meu conhecimento Jedi" devo-o 
ao Robert Coelho e ao Antonio Laverde, em animada conversa facebookiana.


Promessas são precariedades

Eu já conhecia a maioria de seus amigos, senão todos, mas a ele ainda não tinha tido o prazer. Tinham-me falado dele, com uma espécie de respeito que fez surgir dentro de mim uma das palavras que vinha caçando há semanas sem encontrá-la: veneração. Bom sinal, este de alguém que ainda não chegou já me presentear com as palavras que explicam. Especialmente essa, que deriva de nome de deusa e é a palavra do que falta; e assim que a pronuncio, que a faço vibrar dentro de mim, a falta acomoda-se, porque o som cria o mundo em que posso respirar.

E seu Zé do Coco chegou. Bem falante, aparenta a idade que tem (longa) e o conhecimento das coisas que a sua passagem lhe conferiu. As frases que pronuncia atravessam tempo e espaço e algo lhes confere o poder que, um dia bem longínquo, toda frase feita teve. (Frases feitas tornam-se agremiações de palavras que repetimos pasteurizadamente, achando que de fato pensamos. Não pensamos: são palavras que se climatizaram, palavras pre-cozidas.) Acho que veneração chegou antes dele para que eu pudesse estar preparada. Posso nomear o que sinto conforme o ouço, e assim ouvi-lo melhor.

Conversamos um tempo comprido. Nessa troca atenta e presente, seu Zé deixou comigo o legado de uma série de palavras, e eu ocupo-me delas como há tempos não me ocupava de nenhumas. Pensar nas palavras é a minha forma de meditação. Os dias em que recorto uma delas e a coloco à minha frente, observando-a de todos os lados e formas que posso, ora distante, ora alcançando-a com os dedos do sentimento, são os dias mais felizes e concretos, os dias em que o céu azul ou a chuva ou o vento fazem sentido.

Disse-me seu Zé que promessas são precariedades.

Veja bem.

Promessas são precariedades.

Com o passar dos dias, e a repetição das palavras dentro de mim, vou avançando para dentro do que dizem. Separo-as umas das outras. Promessas. Precariedades.

Promessas fluem e pendem. Prometem-se. Recorro à etimologia, nesse movimento que me aproxima do nascer mais profundo das palavras. Promissus, a raiz de promessas, é uma derivação do verbo promittere. Palavra composta por duas: omittere (deixar de lado, omitir, deixar de ir) e o prefixo grego pro (antes). Prometer é tudo aquilo que existe antes de deixar de dizer, antes de deixar de sentir, antes de deixar de lado. Pura precariedade, penso. 

É possível recuar um pouco mais, porque omittere é filha de mittere, que significava para os latinos antigos jogar, arremessar. Promete-se quando, por antecipação, se arremessa algo do passado (o antes) na direção do futuro. Como uma flecha que se cogita enviar para o depois, mas o arco está pousado ao nosso lado. Pode ser que a flecha vá; pode ser que não: o arco não está nas nossas mãos, talvez sequer o olhemos de fato. Uma ideia de mover-se que não pensa como sair do lugar.

Esse mover-se, instrui-me Zé do Coco, é feito de precariedade.

Precariedade nasceu da palavra precário. E precário é algo que, muito corretamente, nos faz duvidar. Coisas precárias inspiram insegurança. Não se sabe onde se pisa. Pede-se (reza-se, até) para que as precariedades se consumem. Se estabeleçam. Se concretizem. Porque a palavra precário é filha legítima de precari, que nada mais é que pedir e rezar. Olhando para trás, nossos olhos caem na sua raiz prex: orar. Precariedades fazem-nos implorar, pedir, suplicar - é isso que prex sinaliza. Pede-se sentido, concretude, realização.

Promessas vivem fora do tempo. Lançam-se do passado ao futuro sem sequer encostar no presente. São precariedades, porque não se ancoram nem no estar que está nem no ser que é. A insegurança e a dúvida geram-se no ar imaterializado, na célula não nascida, na semente inanimada, como se esperássemos que o broto já fosse fruto sem nunca ter sido gérmen. Não é, e nem será. O que é, é o que chamamos de "momento presente", essa frase feita que tão facilmente escorrega das mãos e se torna nada. O passado é uma nuvem que já choveu e o futuro o céu que ainda não clareou. A noite impera, suave e silenciosa, escura e úmida de orvalho. É bom que assim seja, e que assim se perceba. Tudo o mais é precário. Especialmente as promessas.


(A raiz primeira da palavra veneração, para quem se perguntou, o é Vênus, a deusa romana do amor e da fecundidade.)


Foto: Dani Lenton

19/08/2013

Sem

Ao soluço enterrado
no fundo das minhas entranhas,
procuro-lhe o caminho.

Não se move, não sai, não se altera.
Resiste indócil
estoico
heroico
às águas sem leito.

Observo-o de longe e atenta.
Entendo-lhe os limites fluidos.
Não foge.
Não se esconde.
Não se manifesta.
Parte insolúvel
terrosa
do fundo mais fundo das
minhas entranhas
internas,
existe apenas, como
espinho encravado.

07/08/2013

Diário

(side writing)

No dia em que Ofélia, órfã aos 12 anos de idade, conheceu Robélia, moradora da última rua do Morro do Tatu, o mundo quase desaba. A chuva engrossou o rio do Zinco desde manhã cedo, escorreu pela encosta do morro, até chegar à cidade baixa. Os carros foram entupindo ruas e avenidas, desgovernados diante de tanta água, os vidros embaçados, os limpadores inúteis. Ofélia e Robélia lembram-se vagamente desse caos, mais pelas notícias dos jornais do dia seguinte do que propriamente pela vida em si. 

No mesmo dia, a quilômetros dali, Délia abria as portas cotidianas da loja. O dia cinza, o carregamento das obrigações. Sem nuvens nem sol escaldante. A vida como um soltar de cadeado, portas pesadas sob trancas, chumbo erguido dentro das mãos de Délia, mantendo abertas entradas e saídas alheias. Sentada atrás do balcão, rodeada das autopeças que lhe sobraram de herança do marido que saíra e nunca mais voltara, vidrava os olhos nas lajotas desencontradas da calçada.

Ofélia era esguia, alta e otimista. Robélia apreciara especialmente essa última qualidade, sem desconfiar de que não era construção, mas condição. Sintoma de quem nascera para enfrentar o lado duro das coisas sem dar por isso. Parecia a Ofélia, filha única de pais idosos, que a vida de qualquer um fosse mais difícil e sofrida que a sua, o que facilitava relevar e diminuir os obstáculos do caminho. Enganava, por isso. Tudo apenas parecia lhe ser fácil. Até mesmo as conquistas, num efeito dominó, pareciam menores, como que envergonhadas da própria existência diante da miséria que enxergavam pelos becos.

Robélia gostara desse otimismo, porque a sua vida fora privada dele. A dificuldade e a dureza de cada centímetro conquistado à morte eram seu dia a dia, seu conhecimento, o pano com que a sua vida se costurara. Robélia era a quinta filha de oito; perdida em meio a toda a descendência de seus pais, não tinha lembrança que fosse só sua, que não precisasse dividir com nenhum irmão ou irmã. As memórias eram sempre de outro, calejadas pelas vozes que as repetiam sem a incluir. A vida esfumava-se diante das conquistas alheias, e seus olhos sôfregos demoraram a encontrar outros que se fixassem em seu centro sem se desviar. Robélia contaria a Ofélia, meses ou anos depois, dessa infância que só descobrira infeliz depois de conhecê-la. Ao que Ofélia responderia espantada “quem foi que te disse que a infância pode ser feliz?”. 

E Robélia pensou que talvez Ofélia fosse outras além da que via. Mas não deu importância e continuou a vida como se estivesse resolvida e encaminhada. Por coisas assim, dizia-se de Robélia que era prática e simples; àqueles que traziam problemas, Robélia aconselhava com justiça, ponderação, equilíbrio e lucidez. Resolvia contendas, equilibrava opostos e resolvia discussões como se tivesse nascido para conciliar os contrários do mundo. Sua escola foram anos separando brigas de irmãos e resolvendo picuinhas de irmãs, mas ninguém se lembra dessa sua atividade de árbitro e juiz da infância. Ela mesma só se lembrou disso quando Ofélia lhe perguntou, com aquele olhar de quem vê tudo pela primeira vez.

Délia não tinha a quem contar da sua infância. Isolara-se dentro da loja, como se tudo na vida se compusesse de bronzinas, tuchos, bielas e válvulas. Seu mundo seguro. Sem eventos que lhe alterassem a ordem das prateleiras. Interessava-lhe pouco perscrutar o próprio passado, porque se ocupara com afinco em apagar as partes de que não gostava. Apagara tudo. Délia fechava-se como uma ostra que não tem a menor intenção de dividir a construção da sua pérola com ninguém. Orgulhava-se de seu sofrimento contido, das suas lágrimas engolidas, dessa maneira distante e estéril que construíra para ganhar da vida. Não sabia como andava o placar, mas cada vez percebia menos as vitórias do time oposto. Não tinha amigos que se pudessem chamar de íntimos, mas todos que a conheciam pensavam que certamente era convidada para festas e jantares. Porque era basicamente simpática e sabia ser afável sem se doar. Délia saía de casa sozinha e sozinha regressava. Mesmo quando acompanhada.

Naquele dia de chuva torrencial, Ofélia perdera-se. Antes de perceber a presença concreta e palpável de Robélia, encontrou seus olhos e estes os dela. Esqueceu-se de que estava perdida e parara para pedir informação. Saiu do carro, trancou-o e convenceu-se de que tinha fome. O pequeno restaurante em frente pareceu obra da providência, e providencial foi encontrar as mãos de Robélia e poder observar-lhes os nós dos dedos enquanto serviam seu prato. O sorriso de Ofélia desarmou as reservas da cozinheira. Se houvesse um cheiro para esse momento, seria o da hortelã recém-colhida. Ofélia perdeu a entrevista desse dia, e quase perdeu o emprego também. Demorou uma semana para reaparecer, com uma história vaga e mal contada de um carro quebrado e a reincidência de uma gripe mal curada.

Ainda hoje o barulho da chuva tamborilando no batente da janela traz aquele dia para dentro da vida de ambas. Ainda trocam olhares ou mensagens sentindo a falta mútua que a chuva desenha. O limpador do para-brisas do carro de Ofélia parece-lhe um adeus entristecido, assim como as gotas que escorrem pela janela da frente do restaurante lembram a Robélia as lágrimas de um enterro.

A vida quis que passassem mais tempo do que gostariam afastadas uma da outra. Em junho daquele mesmo ano, Ofélia estourou o escapamento do carro a meio de uma viagem. Parou numa loja de autopeças e foi catapultada para dentro da imensa e mansa loucura de Délia. A seu lado, a vida de todos os dias repentinamente desbotava. Mesmo parecendo disforme, não levantou a mão em recusa. Ofélia desfez-se da própria vida para abraçar a de Délia, e apenas a lembrança de Robélia existir em algum lugar enchia seu coração de esperança. O olhar otimista diante do adverso tornou-se escasso, porque o próprio adverso assumiu esporádicos contornos, como se tudo estivesse sendo o que estava previsto que devia ser. A inevitabilidade que Délia transpirava colou nos poros de Ofélia como piche.

Quando Robélia a encontrou, anos depois, Ofélia era um pálido esgarçamento do que fora. Os olhos da quinta de oito irmãos encheram-se de lágrimas que porém não transbordaram, porque também a sua cota de dor fora entregue conforme o tempo passara. Agarrou-a por uma mão e arrancou-a do mundo de graxa em que se enfiara até o topo do pescoço. Ofélia, que nunca antes permitira que a agarrasse pelas mãos, tinha os pulsos marcados e os ombros cheios de pesos que não eram seus. Robélia usou de toda a paciência que aprendera para retirá-los, um a um, enquanto alisava os pulsos de Ofélia e os ungia com o óleo que os santos usam e as igrejas vendem dizendo ser benzido.

Délia retomou o mesmo olhar sobre as lajotas das calçadas, ruminando a vida conforme ela se apresentava. Não se moveu nem mesmo pensou fazê-lo, nenhum quilômetro galgado para conferir se esse afinal não era mesmo seu destino. Porque o destino, e disso ela estava certa, era aquilo que lhe batia à porta e não se fazia força para encontrar ou abraçar ou possuir. Délia era uma mulher sem esperança e sem anseios. Viver ao seu redor era respirar o som do veneno. Sugara o otimismo de Ofélia como quem retira a substância vital de uma planta até fazê-la desabar no solo. Sem esforço, porque Ofélia o oferecera, enorme e belo como era, sem medidas e sem limites.

Engana-se quem achar que os anos de Ofélia junto a Délia foram difíceis, tristes, sombrios. Havia uma bem-aventurança legítima, um senso de compleição necessária, e a sua entrega nunca fora e nunca voltaria a ser a mesma. Não porque tivesse sido esgotada, mas porque era assim que devia ser. Ofélia e Délia arrastavam-se uma para dentro da outra, pela força do destino que era a força maior do universo. Ofélia, que nunca na vida pensara não ser responsável pelo próprio andar, parara de pensar por si própria para absorver por inteiro esse pensamento novo, e enquanto se desocupava para entender a memória da outra, esqueceu o quanto é importante ser previdente e adiantar-se às desgraças. Esqueceu os acidentes, os anos de orfandade e abandono, as cicatrizes da sua alma. Porque a alma de Délia pedia-lhe tanto, pensava ela, que seria triste não lhe oferecer tudo.

Não sei quem, das três, sofreu mais. Ofélia desiludiu-se de si mesma, Robélia deixou de acreditar no poder absoluto do amor, Délia não tinha mais com o que se desiludir. Quando as olho, nas fotografias que guardo dentro desta gaveta que já quase não abro, estremeço como se uma aragem gelada me chegasse pelas costas e me encontrasse desprevenida. Quero tocar-lhes os rostos, abraçar-lhes os braços e dizer-lhes que a vida sempre vale o preço que se paga.