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07/09/2013

7 de setembro

Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.

Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.

Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro "Eichmann em Jerusalém", onde Hannah cunhou o termo "a banalidade do mal" para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.

Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses "superiores" qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.

Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez - para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.

Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento - para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade - e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.

A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.


"Open Box", de Gavin Turk, 2008

06/09/2013

Moedas, gatos e decoerências

Jogo a moeda no ar, uma vez e outra e outra. Assim que começo a escrever, e portanto penso, alicerço a minha vontade e a minha força em um dos lados da moeda. Presto-lhe atenção, mesmo sabendo que é uma dentre possibilidades. As bordas, o centro, as rugosidades, o tom, o endurecimento do tempo na oxidação do metal. Penso. Procuro entender; não condeno, não perdoo. Apenas procuro compreender a moeda, e enquanto não consigo tê-la em mim em todas as suas formas ao mesmo tempo, observo-a nesse seu lado exposto intensa, completa e apaixonadamente. Depois, lanço-a ao ar outra vez, para que viva na possibilidade aberta, para que seja outra vez cara e coroa ao mesmo tempo. E cai no outro dos dois lados, e o que faço é entregar-me a ele com a mesma intensidade e paixão.

Migro da moeda para a caixa de madeira onde se aninha, à espera, o gato que Schröedinger pôs dentro dela. Enquanto não me aproximo da caixa, o gato está necessariamente vivo e está necessariamente morto. O meu movimento em direção à caixa, o impulso da minha pergunta está contido na mão estendida. Chama-se pensar, o movimento da minha mão, se eu o quero assim. Nasce do interesse-curiosidade, da necessidade de saber que é condição humana. É preciso que o gato seja vivo ou morto, e sou eu, e o pensar que faço conter no movimento da mão, que o faz viver ou morrer no instante em que abro a caixa. Enquanto permanece vivo e morto, não o vejo, não sou sua nem ele meu, dimensões apartadas pelas paredes de madeira da caixa. Mais livres, talvez - mas também mais cativos de tudo o que não tentamos compreender.

A pergunta que não faço, quando escolho olhar a caixa à distância e impedir que minha mão a abra, mantém a possibilidade vida/morte, e mantém a ignorância do meu pensar. Sem pensar, não faço, não sou. Aprisionado no não-interesse, mantenho-me no estado de não-saber. E por isso posso recostar-me na cadeira e respirar um alívio denso que nasce na pessoa que não exerce o seu pensar, e por isso está condenada a não saber o que contêm as caixas que passam em seu caminho.

(O que faço neste momento é escapar das tarefas que me esperam para poder sossegar o espírito. Tudo o que me atinge anuncia-se parte de um todo, e é irresistível não querer parar tudo apenas para poder pensar. Que equivale, em mim, a escrever, essa atividade pensante que me organiza o coração, especialmente.)

Hamlet está diante da mesma caixa com o mesmo gato dentro dela. Somos agora três observando a caixa: Schröedinger, Hamlet e eu. O que fazer, diz Hamlet, com o medo desse país não conhecido que nos aguarda, e do qual nunca ninguém voltou? Abro a caixa ou deixo-a fechada? Hamlet quer saber o que a caixa contém, embora o medo o paralise. Ser vivo e ser morto não é a sua questão: a sua demanda reside no ser vivo ou ser morto. Hamlet procura, em meio ao seu pavor de si mesmo e das forças que movem dentro de si mesmo, ser o agente da decoerência, o que decide a morte e a vida do gato, o que nos joga no modelo clássico fechado e cartesiano onde não seremos duas coisas. Se percebesse que também o movimento de ir e vir da caixa é dúplice e aberto, poderia ir, para depois vir, e depois ir novamente, e a cada um desses movimentos saber-se presente em todos. A superposição é fato, e o não escolher em dado momento um dos lados só nos impede de conhecer ambos.

A experiência aumenta o nosso repertório de compreensão do mundo. É ativa, empreendedora. É atividade de descoberta. E a sua raiz é perire - morrer, perecer. Toda compreensão é morte, toda compreensão é vida, pois vida e morte são os dois lados dessa moeda que atiro ao ar mais uma vez. Perire recua: sua raiz é ire - ir, andar, marchar. Lanço a moeda uma vez mais. Interrogo-a em pleno voo, e ela cai-me na mão aberta como as coisas. Todas essas coisas que parecem, aparecem, permanecem e desaparecem.

As minhas perguntas nascem do sentido da necessidade, do sentido da unidade, do sentido da verdade; querem-se aberturas do ser enquanto ser das coisas. As perguntas que faço sintetizam um ponto de possibilidades, e sinto que devo investigá-lo até que se abra em flor múltipla de várias respostas.

Não posso fazer isso sozinha: os outros são-me fundamentais. E por isso o gato de Schröedinger  por isso a decoerência quântica, por isso o pensamento vivo de Arendt, por isso a fala de seu Cobra Coral, por isso esse Caravaggio que me oferecem ao final, por isso a conversa destes professores grávidos ao meu redor, a informarem-me em mil tons de verdade que estamos e somos. Ao mesmo tempo, íntegros e inteiros. É desta forma, e de todas as outras que se abrirem pelo caminho, que quero viver.


Muitas informações sobre a experiência do gato de Schröedinger 
e sobre decoerência na internet. Frases magistrais no filme Hannah Arendt. Uma sucessão de informações que não consigo localizar no espaço. Fico a dever as referências exatas, mas preciso agradecer ao Ivan Guerrini e à Regina Arnab pelas coerentes postagens sobre decoerência, à Karla Neves pela Hannah e pelo Caravaggio, e ao Ivan pela voz de seu Cobra Coral.