26/03/2012

Dos diários II


"Agora que você não está ao meu lado, começo a desabitação da presença. Talvez para que o abandono não me doa. Que o olhar de adeus que você lançou às minhas costas, e que fez os meus músculos se retesarem, não perfure meu espaço aéreo. Qualquer som tornaria concreta a abstração tão grande deste boiar. Por isso desabito-me de você. Imóvel e em silêncio.

Vão faltar-me os nós dos seus dedos ao baterem à minha porta, mas não me interrompo no preparo da mala em que seguirá com você tudo o que nos pertence. Não é preciso que nada fique para trás. Nem um som sequer. Nem um esboço de gesto. Bastam-me as impressões gravadas por todas as paredes desta minha casa, o molde de gesso dos dias somados um ao outro, nesta casa que você habitava até eu perceber o início da desabitação. Quando a dizíamos: nossa casa. Quando assim se tornou, assim que abri a porta e deixei entrar o seu corpo esguio e oscilante, sem perguntar quase nada. Ou perguntando apenas: o que fará comigo quando se for? 

Não houve resposta, e ainda assim deixei você entrar, e o meu espaço tornou-se seu. E o tempo em que os seus passos ecoavam nas escadas de pedra da entrada de baixo fica guardado na áspera gramatura da minha memória. E eu voltarei a ouvi-los, fecharei os olhos e sentirei atrás do meu pescoço o hálito quente do toque das suas mãos. Como se elas tivessem voltado. Como se elas tivessem se reacendido no desejo que palpitará por entre as minhas veias, incendiando todo o meu corpo até chegar ao meu centro.

Dobro-me em duas nessa falta de habitação. Escorro a mobília, tão pouca, ao longo dos corredores encerados. Dobro as cortinas ali encostadas, ainda à espera da escada que nunca veio. Doo a louça ainda nas caixas, à espera de que nos sentássemos um diante do outro, as xícaras e os pires e as taças tremeluzindo nos olhares que trocamos. E de repente passa sobre mim o voo da ave que diz que a vida acaba antes de começar, mesmo quando no início tudo é já tanto. Seus olhos de azeviche, na sua dureza cruel e crua, refletem o meu rosto. Leio nele que sequer ainda começava a ser sua. E no entanto você já se foi."

(Dos diários de Hope, a personagem nascida no sul)

25/03/2012

O homem de Porto Pim


Para Antonio Tabucchi (1943-2012)

Muitos escolheram Lisboa, ao longo da vida, como seu lugar de morada. Mais raros foram os que, agora ou antes, se decidirão a mudar horizontes apaixonados por um poeta.Foi o caso de Antonio Tabucchi. Apaixonado por um pequena coletânea em francês de alguns versos de Pessoa, estudou português para lê-los no original. Mudou-se para Lisboa para penetrar a alma portuguesa com dedicação e afinco. Para assim poder ser o tradutor de Pessoa para o italiano, tarefa que manteve por toda a vida.

Conheci  Antonio Tabucchi muito por acaso há anos atrás, nas prateleiras de uma livraria pequena em Ponta Delgada, capital de São Miguel, arquipélago dos Açores, Portugal. "Mulher de Porto Pim e outras histórias". Nunca tinha ouvido falar dele, mas gostei de conhecer a escrita de um italiano que se debruçava sobre uma mulher açoriana. Estava grávida, naquele ano, fazendo um curso sobre literatura insular, e o Tabucchi foi um contraponto agradável, que me deu leveza às noites de fim de gravidez em que os pulmões espremidos nos sufocam e não nos deixam dormir.

Depois desse encontro, acompanhei-lhe os passos aqui e ali; vi a adaptação de "Afirma Pereira", um dos últimos trabalhos de Mastroianni, um ano antes de passar-se ao outro lado. E hoje, 25 de março, quem se passa para esse outro lado é Tabucchi.

Acho estranho quando um escritor morre - já escrevi isso em algum lugar. Porque nem me parece que ele estivesse vivo, que de fato vivesse enquanto escrevia. Talvez porque invariavelmente me pareça que entre as muitas palavras que leio há aquelas que vêm de um ponto que não está nem na vida nem na morte. A arte é domínio à parte, não pertence à seara do tempo.

E lá se vai Tabucchi - que dizia de si próprio ser existencialmente um professor de literatura portuguesa na Toscana, mais do que um escritor propriamente dito. A sua rotina dividia-o entre seis meses em Lisboa, seis meses na Toscana, ensinando literatura portuguesa na Universidade de Siena.  De longe, parece-me uma vida pacata, como o é a sua escrita - forte, densa e com uma dose pacata de olhar pra vida e vê-la assim, passando por nós como barcos à beira mar. Para desejar-lhe uma boa viagem, gostaria de saber em que caixa se escondem seus livros, para poder folheá-los a todos e escolher umas páginas ao acaso, lê-las em voz alta antes de dormir. Para que ele tenha certeza, no caminho que faz, de que o que escreve fica entre nós.

Do álcool - e de como nos rimos do que não tem graça

Uma de minhas colegas de curso em Porto Alegre, na sua apresentação, declarou-se vegetariana e imediatamente advertiu e pediu desculpas por simplesmente não poder olhar nos olhos de alguém que coma carne. Declarou-se radical absoluta nesse terreno. Ninguém disse nada, embora tenha sido fácil registrar um ou outro olhar trocista dos comedores de carne de plantão. O típico.

Conversei com ela depois, na hora do intervalo, porque pessoas assim funcionam-me como ímãs. Fiquei intrigada com o pedido de desculpas, tão desnecessário achei. Ela explicou, sem muitos rodeios, que estava cansada de ser taxada de radical depois de um tempo, e preferia que a vissem logo como era no primeiro contato. Achava que todo mundo saía perdendo menos tempo. Saímos pra tomar uma água, e a dureza inicial foi substituída por um interesse pelo alheio difícil de encontrar em pessoas amena e declaradamente não radicais. Em pouco tempo que olhou pra mim entreviu um tanto de coisas, e perguntou sobre elas de forma bem radical. Gostei.

Além dos animais, que não come, ama escrever (que é o que ali nos une a todos) e ama descobrir todos os terrenos em que a humanidade é dupla, ambígua, ali mesmo onde se perde pensando que está se encontrando. E por isso começamos a conversar sobre álcool. Falei-lhe das imagens que tinha recolhido uns dias atrás pelo facebook, piadas inofensivas (se tal coisa existisse, segreda-me o Freud que escreveu sobre chistes e inconsciente) em torno do consumo de álcool - aliás, eu diria que da paranoia generalizada de como tudo se reduz a beber. E ela pediu-me que lhas mandasse. Aqui estão.

Tudo engraçado, ou quase. A facilidade do botão de "curtir" faz com que todos sejam(os) vítimas fáceis do que à primeira vista é uma piada inocente e aos poucos (olhe em volta) se torna uma realidade grotesca. À qual todos nós estamos conectados e pela qual somos todos consequentemente responsáveis. Curtindo ou não curtindo as piadas de internet, o fato é que somos todos responsáveis pela quantidade assombrosa que se bebe todos os dias em todos os lugares. Por todas as idades. O estado tenta (ou parece tentar) controlar alguma coisa, lei anti álcool batendo nas portas dos bares e restaurantes, mas nada muda e o mundo bebe.  Sobretudo, os jovens. Sem saber onde tudo isso pode/vai parar. E nesse mundo colorido pela auto-complacência fácil, nossos umbigos desaparecem nessa hora, e dificilmente nos vemos eletrocutados pelo que acontece. Eu? Comigo? Não...

Todas essas imagens são auto-explicativas, dispensam comentários. Fomentam e disseminam a ideia de que estamos à merçê do álcool: é ele que ilumina meus fins de semana, é a ele que cedo o espaço dos meus peixes, a ele que dou as mãos como se fosse família, a ele que devo obediência, a ele que salvo quando tudo parece estar perdido, por ele que procuro assim que alguém chega até mim, a ele que apelo quando me falta a serenidade.

Lembro-me delas sempre que passo de bicicleta, já noite, pelas dezenas de bares que rodeiam a minha casa; enquanto diminuo a velocidade até parar e apoiar o pé na calçada. Penso no que pensarão essas centenas e centenas de pessoas, jovens na sua gritante maioria, que os enchem noite após noite. Visito-os de vez em quando - e não há conversa que consiga sustentar-se num lugar que tem tudo, menos o silêncio mínimo que permita que se ouça o interlocutor. Ou seja, conversar não precisa. Claro que a paquera rola solta, turbinada e amaciada à segunda ou terceira cerveja - mas não há nada que me faça pensar em que daqui sairão relações que durem mais do que uma noite. Ou talvez me engane, e seja este um ponto de partida válido como qualquer outro. Certezas são sombras perigosas.

Há uma vibe intensa e uníssona, e para entrar nela é preciso sim beber uma ou duas doses - é isso que me diz um garoto, feliz da vida por ter passado na faculdade e por poder curtir a vida com aqueles que (imagina) se tornarão seus amigos. Acrescentar "pro resto da vida" seria uma licença poética exagerada da minha parte, porque nem ele diz isso nem está sequer pensando que exista algo assim como "o resto da vida". Com um copo na mão, é mais fácil conversar, a vida parece muito mais amena, a manhã de estudo muito mais longe, o garoto na mesa ao lado muito mais perto. As fronteiras, ô delícia, se dissolvem, e não é preciso comprometer-se com quase, quase nada. Nem com o dia de amanhã nem com a felicidade de ninguém.

Embora a atmosfera seja leve, alegre, descontraída, as imagens que acompanham este desabafo estão fixas nas minhas retinas, assim como se fixam dentro dos cérebros desses jovens que acreditam que a felicidade que mora dentro de uma garrafa é de fato um caminho viável e inofensivo de chegar à felicidade da vida. Que publicam e curtem todas elas nos seus murais. Que crescem acreditando que um trago a mais não faz mal. Que uma bebedeira ou duas não tem risco. Porque nós fizemos igual - ouvem em casa de seus pais condescendentes. Porque faz parte dessa fase da vida - ouvem de quem quer que seja. Porque é preciso conviver com o álcool e saber beber.

Tenho andado arredia demais pra conversar, estes dias. Prefiro observar de longe, o mais distante que possa para preservar-me a mim mesma. E por isso volto pra casa, sem saber por onde continuar, ou o que começar. Têm razão os organizadores da festa do próximo 7 de abril de Botucatu - e agora José? 






24/03/2012

Dos diários

"Lembra,  meu amor, de todos os lugares que já visitamos planejando viver em cada um deles, como se pudéssemos viver todas as vidas que temos reservadas em uma só? Uma urgência de querer ser tudo a meio do caminho de ida? Sem pensar em como fazer e já fazendo, num esboço de percurso a traços largos, abertos, amplos, que se constrói só de palavras e desejo e se satisfaz pleno? Você lembra, meu amor, aí onde você está agora?

Como, num dia, a moenda de farinha de madeira antiga plantada no centro de um vale ensolarado, um rio cruzando-o a meio, cão tão branco como a lua atravessando-o para vir ao nosso encontro. Como, num dia, a fábrica de rapadura no centro do sertão queimado, quase abandonada de tão à venda e por tanto tempo. Como, num dia, o boteco à beira mar, na calma das praias abandonadas. Ou a lua alta por detrás de um castelo medieval. A escarpa sanguinária projetando-se sobre o mar. O quintal de alfaces e couves verdes na beira da estrada de muros de pedra, uma senhora de preto acenando que entrássemos. O mercado barulhento a meio do deserto escuro e fundo. A casa abandonada do vigia das ondas do fim do mundo. A enseada tranquila que de repente alguém transforma em cenário de um amor improvável. Ou a dureza da pedra no chão de terra, a vida dupla. Ou a fome. O olhar da desgraça. Todos esses que se fizeram nossos lugares de morada.

Por isso a nenhuma cidade posso ocupá-la como lugar de vida imaginária sem a sua companhia.

As coisas passam por mim e ficam, demoram-se nas perguntas que me fazem, curiosas do reflexo que teriam nos seus olhos, se você aqui estivesse. Como esta feira livre, e o seu mar, as pessoas que compram, planejam, sorriem, falam quase que em outra língua, um novo acento na emoção do tempo. E vejo por dentro como só as solidões como esta que construo com a sua ausência me fazem sorrir os lábios. Ouço as perguntas que você faria, escuto as histórias que descobriria e vejo os caminhos que se abririam só porque somos tão diferentes naquilo que ouvimos, perguntamos, descobrimos. Como dois mundos que se encontraram e se juntaram sem saber mais onde começa um e termina o outro. Nem a ausência, a distância, o som mudo da voz que se cala mudam a vida."

(feira do Brique, em Porto Alegre, onde nasce a personagem)

23/03/2012

Hora de jantar

Coisa mais engraçada, sair sozinha à noite. Não é uma experiência que me seja muito frequente, porque seja família, filhos, amigos, há sempre quem me rodeie (graças ao bom deus). Mas é que eu perco essa experiência sublime que é observar sem ter ninguém pra conversar e distrair.

Achei que depois de um dia esquecido de comer, valia a pena enfrentar a parrillada perto do hostel. Lá fui, agorinha à noite, sexta feira de céu limpo. Não sei quem, à entrada, olha com maior desconfiança - garçons, mulheres ou homens. Estou desenvolta hoje, demoro até a saber onde quero me sentar. Procuro um lugar estratégico de onde observar - preciso de ideias para minha personagem, que aliás detesta vegetarianos. Acabo de descobrir, passando ao largo da imensa grelha bem ao fundo do restaurante. Segreda-me coisas, ela. É só uma questão de ouvir.

Assim que chega a cerveja que pedi, cantos de olho olham pra mim. Posso ouvir os pensamentos em volta - além de sozinha, a mulher bebe. Ó céus. Morro de rir. Divirto-me mais ainda porque a cerveja é tamanho grande, e toda minha. Hei demorar para chegar ao fim e fazê-lo como quem saboreia o que bebe.

A tv está indefectivelmente ligada, na indefectível novela. Metade dos presentes finge que não se interessa, até aquele casal na mesa perto da entrada, cada qual pensando no que exatamente fazer quando sair dali.  Conversavam, quando cheguei, mas aos poucos as vozes foram apagando-se, as bocas ocupadas apenas em comer. Daqui a pouco ela boceja, olha em volta e sacode o cabelo bem cortado, mas se esforça em disfarçar - o que não é difícil, porque entretanto o homem de costas curvadas e camisa cor de nuvem se interessou pelo rumo da personagem má da novela (matou um, ou dois, ou três no decorrer da minha observação), nem percebe a boca que se abre atrás da mão. Assim que chega nova peça de carne à mesa, o interesse pela novela se desloca para o sangue na tábua. E ambos voltam a conversar, comentando o ponto certo do sal e a maciez do pedaço de ancho. Não os ouço, mas posso ver os lábios da mulher desenhando as palavras.

A mesa em frente vale a pena. Três homens e três mulheres. Uma delas termina apoiada nas costas do marido/companheiro/namorado, voltado o interesse por completo para a novela. As outras duas disfarçam, mas fazem de tudo para conversar com quem está à sua esquerda, e poderem ficar de frente pra tv. Os homens, dois deles de frente para mim, trocam um par de olhares, que me fazem automaticamente prestar imensa atenção na novela. O mais novo disfarça - cada vez que intercepto seu olhar, pega o guardanapo e enxuga alguma coisa - boca, mesa, rosto, braço. Uma graça - se tivesse os dutos lacrimais entupidos como eu, podia aproveitar e enxugar o olho sem parar. Decido não desviar o olhar, é preciso forçar a personagem a que se revele, aprendi. A reação é rápida; larga o guardanapo e pega nos talheres, num súbito e voraz apetite pelos restos mortais de uma salada caesar quase no final.

Viro-me para o lado e dou de cara com a senhora sentada na mesa mais próxima, olhando para meu sapato não sei se condenando-o ou se querendo saber onde o comprei. É pena que não pergunte, e que se vire para o que julgo seja seu filho, dando-me as costas, porque eu dir-lhe-ia que é um conforto só, passo o dia andando e nem sinto os dedos dos pés. Atrás de mim, em voz mais alta que o ruído de pratos e talheres, um homem comenta do trabalho que uma aluna apresentou hoje à noite. Sua companheira ri como riria de qualquer coisa que ele dissesse, porque seus olhos estão cheios de amor e seus ouvidos sequer ouvem direito. Mesmo de costas, é tão óbvio, no soar da sua gargalhada. E ao fundo, lado direito, uma mesa ocupada por três homens, todos virados para onde estou, obviamente comentando o que, se eu estivesse perto, certamente calariam. Se os olho mais dois minutos, levantarão o copo para me propor um brinde. Lembro-me de meu pai e sento-me com o que ele chamava de juízo. 

No meio de tudo isso, também eu fico presa à novela. A televisão está no modo mudo, portanto são só imagens, que dizem tudo, e até mais entusiasticamente, do que diriam as palavras das personagens. Tal o tenebroso poder da imagem. Cristiane Torloni diabólica consegue matar um na banheira, quase outra no viaduto e mais alguns num acidente de carro. Estou tão dividida entre as personagens da tv e as personagens da sala que não sei se as confundo a todas.  Compenetrada no prato que acaba de chegar, e que me dá um minuto de trégua nessa observação cruzada, esqueço-me delas. E de repente, sem que eu achasse que aconteceria, a personagem a que preciso dar vida emerge em meio às garfadas. Bem me diziam hoje que entre comer e escrever há grandes parentescos.

Facebook lacrimoso


Acordo com uma anomalia estranha, e decido ir ao médico para ver do que se trata. Interessada em saber do SUS gaúcho, é pra lá que eu vou. Espero um tanto, mas nem tanto quanto poderia se esperar. Assim que sou atendida, uma enfermeira registra minha pressão (baixa, claro) e me pergunta o que tenho. Quando lhe digo, levanta os olhos do papel e acha melhor eu mesma explicar ao médico. E deixa o papel em branco.

O médico nem me olha assim que entro. Digo-lhe então o que me acontece: “meu olho esquerdo não para de chorar”. Longe de se surpreender como a enfermeira, diz-me que sim, que não me preocupe, que se trata da obstrução de uma via lacrimal que consequentemente provoca o lacrimejamento contínuo (ou intermitente). Olho-o digerindo o arrazoado, enxugando o olho que  chora, e não entendo como uma via obstruída pode causar um lacrimejamento contínuo (ou intermitente). Mas não está obstruída? Parece-me metáfora demais pra ser verdade. Dr. Melo não me ajuda a entender; prescreve um remédio de pingar que certamente não usarei e diz-me que isso passa, que não me preocupe, repete. Só faltou o tapinha nas costas.

Dou umas voltas pela cidade – Gazômetro, só pra descobrir que errei o mês ao ver que hoje aconteceria o fórum mundial da bicicleta (foi em fevereiro); orla do Guaíba, que vem a ser (acho eu) o calçadão de Copacabana abaixo do trópico de Capricórnio; e num de repente dou de cara com a prova de laço do rodeio da cidade de Porto Alegre. Parece-me um programa pra lá de adequado à visita ao Rio Grande do Sul, mesmo chorando ininterruptamente de um olho. Um gaúcho de bombachas me olha assim que me sento na arquibancada, e olha de novo cada vez que enxugo o olho. Se me perguntasse o que tenho, diria que choro por estar entupida. E enxugaria a lágrima. Porque cada vez que falo parece que o entupimento piora e o lacrimejamento acompanha. Fico por lá um tempo, com vontade de ter ao meu lado o Thiago, ex-aluno campeão de laço, para me explicar do que se trata, como é que se pontua essa corrida desenfreada de gente a cavalo laçando as pobres novilhas desarvoradas. Vou embora passeando por entre acampamentos que cheiram a chimarrão e carne assando.

Vou fazer o que tenho de fazer, que é escrever. Chego enfim à biblioteca da PUC, depois de andar quilômetros; confortável, acolhedora, luz e temperatura no grau certo, silêncio e solidão absolutos.

Decido experimentar soltar pelo facebook a minha inquietação ocular, enquanto aqueço a memória para continuar o que escrevia ontem. É sempre um risco, já se sabe que facebook é órgão engolidor de tempo útil. Mas ainda bem que não me inquietei com o tempo, porque agora posso rir das respostas, cada uma mais inventiva que a outra, dissolvendo um a um os nódulos que me fazem chorar.

Regina diz-me que é uma verdadeira antítese, e dou-lhe razão: a vida anda mais cheia de antíteses que de metáforas, água que escorre por rios secos. A Catarina diz logo a seguir que "a lágrima entra!", o que me deixa perplexa: as lágrimas, então, entram? E por isso nos entristecemos? Porque entraram em vez de sair? A Chris, para completar, esclarece a todas nós, porque seu filho também tem dessas coisas: isso acontece quando o canal não consegue jogar a lágrima na narina, e faz com que ela pule do olho. Ou seja, descubro: também choramos pelo nariz!

Fico me perguntando quantas lágrimas não andarão perdidas por dentro de nós, confundidas com o lugar de saída, encontrando tubos obstruídos, passagens bloqueadas, saídas não programadas que dão medo por não sabermos onde conduzem. Fico feliz destas minhas terem encontrado esse subterfúgio da epífora, nome científico dado à drenagem deficiente dos canais lacrimais. Espero que tudo volte ao normal e que as lágrimas involuntárias não demorem a secar. E a Chris volta para me ajudar ainda uma vez: "deve ser por isso, Ana, que se diz engolir o choro". Quando as lágrimas caem no nariz e na garganta, em vez de escorrerem livres pelos olhos. Agora, sim, a metáfora ficou completa.

22/03/2012

Um copo d'água no museu

Tenho várias tarefas pela frente e todas elas precisam se transformar em escrita. São escrita. É uma bênção uma coisa dessas, poder desligar-me do mundo e mergulhar no que me propõem que escreva. Por dois dias, estou na posição inversa à que costumo estar. Não preciso preocupar-me com a escrita do outro (não de forma ativa, pelo menos), e posso aproveitar o que dizem dela (e da minha), absorver cada comentário e incorporá-lo ao meu arsenal crítico interno. Posso ficar sentada sem dizer uma palavra.

Dos vários exercícios, há um que me custa. Tenho horas para completá-lo, mas ainda assim. Preciso construir uma personagem com apenas dois dados: 1) um bancário, 2) aflito com o fechamento de seu caixa. Não é pra ser narração; não há história, trama, enredo – apenas a personagem. Devo fazê-la viver, ganhar corpo, sangue, concretude, e a partir desses dois dados. E lá vou. Preciso encontrar-lhe um dilema. Pergunto-me se ela não quererá no fundo a demissão de seu cargo, para que a vida lhe seja devolvida com o último contra-cheque. 

Decido amparar-me nos processos de sempre, que se resumem a divagar e a anotar palavras a esmo pelo papel. (Vejo que o professor me observa, lá da sua mesa, por cima dos óculos; professores tendem a achar que não são observados quando observam. Sorrio-lhe de cá, ele sorri sem graça de lá.) Lembro-me da “educação bancária” de Paulo Freire, e a partir dela reconstruo mentalmente aquilo que dizia Walter Benjamin (e que E. Said retomou, segreda-me o neurônio à esquerda tomado pela variante gaúcha dos meus colegas: naquele livro que tu leu, lembras?): que a barbárie é fruto da civilização. Bancos pertencem à barbárie ou à civilização? E a aflição do bancário? E o caixa? Vou registrando, depois agruparei de alguma forma as ideias.

Dos pensadores, assim aleatoriamente, volto à exposição do Bispo do Rosário que visitei de manhã, à mostra de arte contemporânea logo a seguir e à crise de choro a meio do museu, por sentir de repente em mim o poder de cura que sei e leio e sinto que a arte provoca. Sento-me de novo, dentro da minha memória, no degrau da escada; como dizem, "lavada em lágrimas"; até que um dos seguranças, velhinho de dentes tão brancos por trás da pele tão negra, me traz um copo d’água e me diz que venha ver uma coisa que me fará sorrir – uma escultura feita de ferro e vassouras verdes, como uma aranha gigante que tudo varre. E daí me conta de como gosta de trabalhar ali, um lugar onde as pessoas vêm pra se sentirem felizes e “por isso o copo d’água, porque te vi dali chorando e fiquei preocupado, não sabia se era de alegria ou de tristeza. E precisava fazer alguma coisa, né?”. E desculpa-se por não se sentar ao meu lado na escada, mas é que não lhe permitem esse descanso. Fica-se ali, só me vendo, e sem saber me amparando e me trazendo de volta da queda.

O professor vem espreitar o que escrevo, e sorri quando vê que não é a personagem. Digo-lhe que vou chegar lá, que não tenho nada para fazer até amanhã de manhã. Bate-me de manso no ombro e deseja-me boa noite – e diz que, como eu, também pretende trabalhar de madrugada. "O importante é que escrevas, guria." E eu morro de rir desse "guria" que me traz de repente outras pessoas pra dentro do peito. 

A volta à vida de um campus, especialmente como aluna, provoca-me um formigamento interno que faz com que a memória das coisas volte a funcionar. Lembro-me de textos, de autores, de frases, tudo o que estava lá guardado, no fundo do fundo da memória. Quando o inspirador-professor conduz com maestria o curso das próprias ideias, preciso refrear meu braço para acrescentar alguma coisa. Hoje, porém, refreio sem problemas, nesse estado de ensimesmamento em que me recolhi, depois de tomar até a última gota da água de seu Eusébio, segurança do Museu de Arte Contemporânea de Porto Alegre.

17/03/2012

Promessas


Acabam de me dizer, por telefone, que o óbvio e o sutil são coisas muito próximas. Escrever, às vezes, é uma tentativa de se encaixar a vida no vão que se forma entre ambos. De forma sutil, falar do óbvio. Crônicas usam largamente desse artifício. Da seguinte forma.

Parte-se de qualquer coisa. Por exemplo, da palavra “promessa”. Porque se pensou nela. Porque se tornou semente e ficou germinando por dentro. Porque alguém falou, ou de repente lemos em algum canto. Para se partir de uma palavra assim à toa, um recurso muito útil (e que pode poupar horas e horas de análise) é um bom dicionário etimológico. Ou, enquanto se vence a preguiça de procurar um, pensar em como outras línguas traduzem a palavra. No caso de promessa: promise em inglês, promesso em italiano, promesa em castelhano, promesse em francês. Vê-se que a raiz histórica é a mesma – dá logo vontade de saber mais!

Crônicas nutrem-se da curiosidade e da surpresa. Além do humor, que rezam os manuais devam contemplar, é preciso uma pequena surpresa, filha do movimento curioso. Crônicas, aliás, são coisas que se nutrem de pequenas, ínfimas surpresas, coisas que nos fazem soltar um “ó!” súbito, quase inaudível. Diferentes de coisas mais agudas, como os romances, que nos fazem rir, tremer, chorar, se extasiar, às vezes em doses superlativas. Crônicas, não: são leves, alívios, plumas absolutas no mar estranho que nos rodeia.

A surpresa, então, pode vir do significado original da palavra que se pescou no mar de todas as demais. Promessa, à guisa de ilustração, vem da palavra latina promissus: que significa fluxo, fluir, fluindo. Promessa pode portanto ser aquilo que flui, ou o próprio fluxo. (Vai ficando interessante.)

O acaso (se tal coisa existisse) ajuda bastante a escrita de crônicas. Quase sem querer, deslizando os olhos pelo longo verbete dedicado a promissus, vejo que dele se origina a palavra spondere. Só porque gosto de palavras que começam com encontros estranhos como spon, que se derretem na boca quando começam a ser pronunciados, decido ver do que se trata. E as coisas começam a fazer sentido e a encaixar-se, naquele vão entre o sútil e o óbvio; se eu estivesse à procura de uma explicação para alguma coisa, teria acabado de encontrá-la. Ora veja:

Spondere, além de ser filha de promissus, é parte integrante do nosso verbo “responder”: re-spondere. Considerando que promissus (e spondere por proximidade) significava fluir, e que re é prefixo largamente usado que significa basicamente “de volta”, chegamos à constatação (entre o óbvio e o sutil) de que uma resposta é algo que coloca o “fluxo de volta”. Sem respostas, não há fluxo que se mantenha.

E brinquemos um pouco de mais de prefixar a vida. Corresponder: aquele “fluxo de volta” adquire o fantástico co, que nos acompanha desde que o tempo ainda não era tempo de nada: vem do proto-indo-europeu kom, que significa tanto perto quanto junto quanto com. Ou seja: corresponder trata-se de criar, perto, junto e com alguém, um fluxo que retorna. Só de pensar, a gente se engrandece.

Mas promessa dá ensejo ainda a outras coisas! O verbo prometer, por incrível que pareça, tem um passado histórico muito diferente. O latino promittere tem dois grandes ancestrais (mittere e omittere) e um prefixo que muda tudo (pro). Dando asas à imaginação, posso perfeitamente pensar que, se prometo algo a alguém, envio (mittere) meu desejo, cuidando-o e pondo-o a um lado, para que não se perca (omittere). Para chegar ao nosso prometer, preciso agregar o sufixo pro, que faz com que o futuro se antecipe: envio e cuido, mas antes mesmo que tal coisa possa acontecer. E num átimo aparece-me de novo o prefixo com, que tudo mais uma vez amplia. Quando me com-pro-meto, é porque tudo aquilo (enviar e guardar antes mesmo que seja hora) deu-se com a participação de outro(s). Algo que foi pensado, desejado, querido é enviado, guardado e cuidado – junto, perto e com alguém, antes mesmo que possa ser tudo isso.

Sempre que escrevo, percebo o quanto me com-pro-meto. Ao contrário de Menalton Braff, de quem falava outro dia, não escrevo para mim mesma. Ou talvez no fundo o faça, mas é através do outro que acontece. Porque escrevo para que o outro leia, para que o outro me capte, no óbvio e no sutil, na minha escolha das palavras e nas ideias que talvez aleatoriamente procure para torná-las carne e osso. Porque tudo, na vida, é pretexto de alguma coisa: tudo, na vida, é uma espécie de ensaio daquilo que depois, aqui, será texto, antes que seja passado. As crônicas, são sobre isso. Sobre as respostas que se dão à vida para que o fluxo não se interrompa, e para que o antes não se perca em face do depois, que talvez venha a ser só silêncio.

13/03/2012

Curar panelas: dicas para quem esqueceu


Ao Daniel e à Betina, através das conversas de um dia bom

Quando se compra uma panela de barro ou ferro ou pedra, é preciso curá-la. Prepará-la para ir ao fogo e cozinhar a comida. Há várias maneiras disso ser feito, mas hoje, quando me perguntaram por aqui mesmo como era que se curavam panelas de barro, precisei avisar que há um procedimento básico, sim, mas que cada panela é uma panela. Cada forno é um forno. Cada dia é um dia. 

O básico, conforme já aprendi em mais de um lugar, com variações que percebi serem bastante irrelevantes, daquelas coisas que se inventam e depois se apelidam de “tradição”, é: unta-se com óleo por dentro e por fora e põe-se no forno bem quente durante uma hora. Mais ou menos uma hora. Mais ou menos óleo. Mais ou menos fogo forte. Porque é preciso observar o comportamento das coisas para saber como lhes pôr a mão. Nada é igual a nada. Cada panela pede um amparo diferente. Como as pessoas.

Existem até, por aí, panelas que não precisam de cura – vêm prontas da loja, é lavar e usar. Quase como comprar roupa pronta, sem precisar ver medidas, provas, saborear aos poucos a saia nova que se vai vestir. Há as de alumínio – mas fazem mal à saúde, mesmo aquelas pesadas sem polir, que sujeitos que gostam de conversar vendem pelas ruas nuns carrinhos que equilibram dezenas delas. Há as de inox, também, mas são caras, não é qualquer um que se aproxima. As de ágata eram boas, mas só antigamente, agora vem tudo da China: espirrou, lascou. Todas elas (menos as de ágata, já se vê) duram para sempre, as propagandas frisam bem essa peculiaridade, o que pode ser uma eternidade ou o sopro de um minuto, uma vantagem ou um tremendo de um incômodo – depende muito da relação que se estabeleceu com elas. Como chegaram às nossas vidas. Pelas mãos de quem. Com quais intenções. Como as pessoas.

As de barro, as de ferro, as de pedra não chegam assim tão facilmente, tão óbvias. Tive um caldeirão de pedra por quem me apaixonei certa vez que demorei pra curar: não cabia no forno, de tão grande! Encontrei-o em Varginha, a caminho de Carmo da Cachoeira, escondido atrás de uma estante escura e empoeirada. Fui usando-o bem de levinho; untei-o de óleo dias a fio, fui fervendo um tantinho de água aqui, outro ali, sem chamar muito a sua atenção, pra não acabar trincando. Pesava muito, mas muito; era difícil a operação limpeza. Mas fez muitas sopas boas, generosas, profícuas. Por fim trincou, e ganhou uma planta  verdejante e ampla para recheá-lo. Ficou pra sempre ao meu lado – mas de outras formas, mais sutilizadas, sem a obviedade do cotidiano. Como as pessoas.

Com mais de metade das panelas ainda encaixotadas pela mudança, às vezes sinto falta de algumas delas, e não faço ideia de por onde andam. Gostaria de tê-las por perto, ainda que sequer as usasse porque a cozinha a rigor ainda só existe pela metade. Mas seria bom podermos olhar umas pras outras, respirar o ar de promessas gastronômicas, lembrar das boas coisas que se compartilharam de dentro delas, rir das bobagens que se disseram enquanto se espreitava o que se mexia com a colher de pau. Como as pessoas.

O engraçado é que, às panelas, precisemos curá-las antes de nos tornarmos íntimos. Cuidá-las num antes para que num depois não trinquem. Não percam a sua função suprema. Não nos deixem na mão, deixando derramar seu conteúdo precioso no tampo do fogão. Não queimem tudo o que lhes pusermos dentro. Porque, às pessoas, costumamos na maioria das vezes precisar curá-las depois de as termos descoberto, depois de nos termos aproximado e entrado nas suas vidas, das maneiras mais insuspeitas, depois de as termos usado no bom sentido, permeando-as com os nossos sentidos e os nossos significados. 

Precisamos curá-las porque às vezes elas trincam, elas se ferem, lascam, perdem pedaços entre o armário e a pia, o fogão e a bancada. E nem sempre nos damos conta, e quando percebemos já elas estão a caminho de outra função, porque nos esquecemos ou não conseguimos curá-las a tempo. Bom é quando se encontram pessoas que cuidam da cura e protegem o tempo, alicerçam a aproximação com sutis camadas de óleo, essa matéria densa que flui escorregando, untando - como gostam alguns de dizer, "temperando a vida", com coisas que só a vida dá.