02/10/2011

Óculos sinceros

Perguntam-me se sou sincera quando escrevo. Sorrio (e lembro-me do mestre Pessoa, certo de que o único a sentir verdadeiramente era o seu próprio mestre, Caeiro. Depois dele, ninguém há que saiba o que verdadeiramente sente.) Mas não me perguntam se sinto, e sim se sou sincera ao escrever (ainda que, convenhamos, sejam as duas perguntas a mesma coisa). Ouço, lá ao fundo da minha memória, um dos meus professores de latim, talvez do 8º ano. Exortava-nos a sermos vasos de barro perfeitos e finos – vasos sem rachaduras que a cera tentasse ocultar: vasos sine cera. Vasos sinceros. Ao longo dos anos, descobri que a explicação nada tem de muito certo, mas ainda assim gostei e mantive-a na memória.

Sinceridade tem a ver com pureza – com ser franco, leal, simples, verdadeiro, que não oculta ou usa disfarces, malícias, dissimulações. Aquele que é sincero nada teme - caminha de peito aberto, de sorriso iluminado, de alma constituída por partículas que brilham no encontro com o outro. Olha-se para dentro dele como se olha através das paredes de um vaso sem rachaduras nem embustes. É o que é.

Passei anos com uma vontade imensa de usar óculos. Lá pelo 3º ou 4º ano, decidi que uns antigos óculos, herança das caixas do sótão da minha avó, haveriam de ser-me muito necessários, e passei semanas usando-os (sem lentes), muito aliviada por finalmente poder escrever com mais propriedade, como se deve, como os escritores de verdade: de óculos. Enquanto isso, toda a minha família, novos e velhos, usava óculos; a miopia foi daqueles acidentes genéticos aos quais fui poupada, sem entender porque esse e não outro.

Escuros, tive vários. A cada um, a felicidade de olhar para eles e o desconforto de olhar através deles - ter a certeza de que meu interlocutor não me via através dos meus olhos, como é que se mantém uma conversa com alguém no escuro de umas lentes postas?!

Finalmente, passada a barreira dos 45 anos, uso óculos. Tenho a vista e outras coisas cansadas. Lembro-me de todas as armações que vi em tantas e tantas feiras de velharias por todos os lugares por onde passei. Sem atentar para o fato de que o tempo inevitavelmente agiria a meu favor, deixei-me levar pelos encolheres de ombros dos outros, acrescidos às vezes de impaciência, e não comprei qualquer armação que fosse – para que, se não as vais usar?

Não deveria ter-lhes dado ouvidos – hoje, não encontro nada que me agrade. Posso encomendá-los do outro lado do oceano, feliz da vida pela pechincha dos mercados livres que abrem as suas portas pela janela da internet, posso imaginar que sim, estes sim!, comprá-los e... em pouco tempo perdê-los.

Mas hoje a caixa de correio reservava-me uma surpresa. Há meses avisada, já tinha desistido dos óculos que meu filho me prometera, aflito com a minha fixação por armações estilo Oscar Wilde, prevenindo que eu as encontrasse e, pior, lhas mandasse arrematar em qualquer feira londrina. Abro a caixinha e, junto com as inevitáveis contas para pagar, que é só o que eu vou buscar ao correio, um pacotinho amassado, bendito plástico bolha a permitir que as coisas viajem aos trambolhões.

Reconheço a letra do remetente, abro-o exultante e paro pra olhar os pares de óculos que ele me manda. Sim, pares: um para ler, outro para andar de carro ao sol – ouviu-me certamente reclamar do efeito dos raios no asfalto.

São óculos diferentes do que eu esperava, confesso. Olho-os por um bom tempo, e, de repente, reconheço-os sem nunca os ter visto antes. Chegam-me de um tempo distante, um dos que guardei em algum lugar, um pedaço de vida que sem querer deixei para trás.

Muitas coisas se engrandeceram em mim, desde esses óculos até hoje; outras se amesquinharam; outras desapareceram, engolidas pelo passar dos anos, outras se transformaram em detalhes incômodos que preciso varrer para fora da minha alma. (Uma amiga me diz que a história que lhe conto a faz imaginar-me num caminhão fechado na próxima mudança que planejo – e não no caminhão aberto em que cheguei da última parada em que estava.  O caminho aberto pelos meus pés parece, com estes óculos, ter se espremido através dos espinhos. Algumas rosas. Muita secura. Uma paisagem lunar. Coisas como essa é urgente que reinvente.)

Este meu filho lembra-se do que eu sou quando era antes; retoma-me nas suas mãos, as mesmas que deixaram suas impressões na haste desses óculos, e conta-me do que eu também me constituo e às vezes esqueço.  Lembra-me sobretudo que eu sou muitas coisas ao mesmo tempo, e sem as ser a todas elas deixo de ser quem sou. Pode ser uma labuta, para mim e para os outros, mas doutra forma não sou – e mesmo sendo talvez menos cansativo, é mais triste, e é, sobretudo, menos sincero.

28/09/2011

Audiovisuais


Há muitos anos atrás, minha mãe chegou a casa entusiasmada com um novo recurso educacional. Creio que estávamos no segundo semestre de 1974, quando todas as novidades possíveis, especialmente as ideológicas, inundavam as ruas do país em que se fez a revolução dos cravos. A cidade em que estávamos vira nascer o primeiro faiscar do movimento, e talvez por isso o ar se respirasse mais carregado de sonhos. Minha mãe, professora da escola técnica, tornara-se responsável pelo setor de audiovisuais, decisão que deve ter-lhe custado, interessada como era por tudo quanto era assunto, da escolha das cadeiras novas das salas de aula aos “contentores” do novo processo da recolha do lixo da escola. Mas a menina dos olhos eram os audiovisuais, e sob sua responsabilidade ficaram. Professora de línguas, recém chegada de uma temporada em Londres e recém apresentada ao psicólogo americano Carl Rogers, era tanto o seu entusiasmo que meu pai suspirava a cada vez que precisava escutar, mais uma vez, sobre as incríveis possibilidades que oferecem o mundo da imagem e do som, e tudo o que existia escondido e agora se havia descoberto, e Tóino, ouve o que te digo, vamos revolucionar o ensino de uma vez por todas!

Nesse dia de maior entusiasmo, o sorriso transbordava logo à entrada de casa, interferindo numa das minhas ocupações favoritas - ouvir no rádio um daqueles programas cuja fórmula simpática reside em poder telefonar pedindo uma música e ser atendido – seu nome era “Quando o telefone toca”, e era conduzido pelo António Sérgio (aposto que haverá quem se lembre!). O motivo de tamanho entusiasmo materno era o ter descoberto uma forma fantástica de avaliar seu próprio trabalho – filmar-se a si mesma (e aos alunos) em sala de aula, podendo conferir logo depois a sua atuação, corrigindo-a a partir daí. Implacavelmente.

Tanto meu pai quanto eu achamos interessante, muito bem, e fomos jantar. Em pouco tempo chegariam os alunos particulares de alemão, minha mãe lá iria para a pequena sala onde dava essas aulas, e de manhã cedo sairíamos todos, cada qual para sua escola. Uma vida corrida, a da minha mãe, que ainda queria conferir-se a si mesma, não sei bem em que momento do dia.

Ficou-me isso na memória – assim como o dia em que descobriu que eu fumava e automaticamente, e até hoje, deixou de fumar. Alguns aprendizados fazem-se assim: cortam os males pela raiz (embora eu tenha continuado fumante por uns bons anos) e ficam para sempre impressos a fogo na memória. Não nos largam jamais e tornam-se inspirações do nosso cotidiano.

Lembrei-me disso hoje porque descobri por acaso uma palestra que dei há uns meses, gravada. Não a tinha visto, nem achei que aquele senhor atrás daquela câmera pudesse mais tarde transformar-se de fato em mim mesma diante de mim, presa num passado que provavelmente gostaria de mudar. Pus-me a assisti-la, torcendo-me a cada novo minuto, dos longos 47 que a compõem, incomodada com aquele trejeito, com a palavra mal usada, o exemplo desnecessário, o detalhe um tanto impertinente, a insistência estúpida no que já se explicou à exaustão... Nem consigo terminar de ver de uma só vez, é aflição demais. Gostaria de poder telefonar a minha mãe e perguntar-lhe como sobrevivia a ver a quantidade de bobagens que fazemos – a menos que seja eu apenas a fazê-las, mas como minha dosagem de auto-estima está hoje nos seus limites normais, não me parece que seja façanha de minha exclusividade. Se por acaso meu pai pudesse atender o telefone, haveria certamente de rir-se e abanar a cabeça de um jeito peculiar só seu, um “tal mãe, tal filha” mudo que eu veria sem olhos deste lado do Atlântico. Não posso telefonar a um, porque não deixou o número quanto partiu para a próxima vida, e não posso telefonar a outro, porque a estas horas dorme a sono solto. Restam-me o papel, a caneta e esta janela em que se transformou a internet de cada dia. Como os audiovisuais revolucionários da minha mãe, assustam-nos tantos novos recursos, os facebooks que podem devassar-nos a vida sem que queiramos que o façam;  usamo-los canhestramente algumas vezes, com sabedoria outras, numa tentativa de dominar os dragões do mundo. Como se uma nossa porção micaélica nos fosse enviada do passado para alcançarmos o futuro.

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


14/09/2011

Galinha sem dono

Aos amigos do Aldeia

“Já te disse que a galinha não é nossa”. Gracinha tinha certeza, e repetia a mesma coisa a seu marido vezes sem conta. Eu, do meu lado desta cerca que nos divide, cheguei a ter pena dele. Duvidou, duvidou, tentou ainda argumentar, mas foi tanta a insistência de sua esposa, que acabou por prender a galinha no galinheiro e ir em busca de seu dono. Sei que Gracinha e seu marido gostam muito de suas galinhas, cuidam delas como se fossem filhas, e isso não porque não as tenham (as filhas), têm duas e bem criadas, mas as galinhas preenchem os seus dias, com seu andar estremunhado e seus olhos que não piscam. Cantam pela manhã, elas e seus companheiros, e avisam solícitas quando acabam de por um ovo. Nem sempre meus vizinhos os resgatam a todos – uma das alegrias das suas vidas é sentarem-se à varanda, rindo das ninhadas que correm atrás das mães, alegres e contentes como só os pintos sabem viver a vida. Assim que soube disso arrependi-me de todos os ovos roubados à tardinha e jurei nunca mais fazer uma dessas. Galinhas deitam-se cedo, ainda por cima, contava-me Gracinha explicando seu amor pelas aves, numa dessas conversas à varanda, o que nos economiza o trabalho que dão os animais de hábitos noturnos. Por vivermos no campo, não é raro sermos acordados pelos gatos da vizinhança em namoros com a nossa gata. Galinhas não miam à noite e são bastante comportadas em seus namoros. Eu assenti de leve com a cabeça, sem grande entusiasmo, que a mim as galinhas agradam-me, mas não a ponto de conversar sobre elas.

Mas a galinha estranha desse dia roubou o sossego das galinhas e dos vizinhos, logo pela manhã. Grande e gorda, toda branca à exceção de algumas penas marrons e pretas (que até lhe conferiam uma certa graça, há que se dizer a verdade), apareceu no gramado pavoneando-se como se de um peru se tratasse. Um ar superior olhando as demais, andando em círculos em volta das outras pobres coitadas, que por natureza não são nem grandes nem gordas e tendem mais à cor da terra, sem nuances. Ainda assim, são de uma graça natural que a gorda e grande visitante não conhecia. E obviamente não reconhecia.

Chamaram-me por cima da cerca, certos de que seria minha embora eu nem galinhas tenha. Mas fui lá ajudá-los a espantarem-na. Em vão. Por volta das onze horas encontramo-la expulsando uma das galinhas poedeiras de seu ninho, ansiosa por botar seu grande e vermelho ovo, descomunalmente grande. Espiamos os três por cima da cerca do fundo, tentando perceber alguma semelhança entre a invasora e as galinhas da outra vizinha. Mas as dela são diferentes, estão todas misturadas, estragadas por aquele galo carijó que o filho da vizinha ganhou junto com a esposa, e que nunca mais deixou as outras galinhas sossegadas. Certamente não era da vizinha a grande e gorda galinha. O marido, com o livro sobre galinhas debaixo do braço, não se decidia em classificá-la: Gracinha, ela se parece com esta Plymouth  Rock ou com esta Leghorn? Gracinha encolhia os ombros e olhava a galinha com uma tristeza desanimada.

O marido lá foi à procura do dono. Deu-lhe motivo para passeio, e para bater à porta dos outros, que é coisa que gosta de fazer. Mesmo quando não tem motivo. Agora que o tem, haverá de divertir-se.

Em pouco tempo a vizinhança toda sabe da galinha. Recebe imensas visitas, este bicho. Gracinha interrompeu a preparação do almoço pelo menos quatro vezes para atender ao portão e mostrar a galinha – depois de encontrá-la, claro. Todos meneiam a cabeça, elogiam a imensa galinha e dizem que não, que sequer têm galinhas, mas tanta foi a divulgação que decidiram vir conhecê-la. A mim tudo isso me dá trabalho – a cada batida de palmas, corro à cerca para ver quem é desta vez. E volto rindo pra minha cozinha, meu almoço também a meio.

Marido volta aborrecido: sugeriram-lhe que entregasse a galinha, mas sem vida e depenada. Confuso, respondeu que não, que aqui não matamos nossas galinhas, que são como filhos e por tanto fora do cardápio. Mesmo a galinha não sendo dele, começou a sê-lo nesse momento, em que repentinamente se mostrou companheira de batatas e cenouras dentro da panela. Para tudo há limites, dizia inconformado o marido, nem se fosse minha, imagine que há pessoas querendo canja da galinha alheia.

Finalmente, veio a dona, Gracinha atendeu. Agradeceu o incômodo, o trabalho de divulgação e busca. Porém a galinha não apareceu. E nem marido. Só mais tarde, quase noitinha, encontramos os dois ao fundo do quintal. Ela, grande e gorda, pastando as graminhas ralas da sombra, ele entretido entre o olhá-la e o ler o jornal de domingo, atrasado quase uma semana.
Desenho de Martina Schreiner

07/09/2011

A escrita e o pastel

Passo hoje o dia mergulhada na escrita. Dos outros, não minha, mas da mesma forma maravilhada e plena. O tema, a poesia. O subtema, a sua vivência. O subsubtema, na escola. Perfeito.

Denise, que conheço há pouco mas parece muito, é a promotora e culpada deste feriado passado assim desta forma, trabalhando quase que pelo absoluto prazer de o fazer, descobrindo mais um tanto de coisas enquanto parece que a ajudo no que precisa fazer. Não é bem assim: dá-se daqui, recolhe-se logo ali. E entre um papel e outro, tempo para isto que faço aqui: dar-me sentido a partir da escrita.

A meio do dia, vamos almoçar. Descubro que conheço uma das cozinheiras, mas não daqui, deste restaurante do Seu Luís que sempre que chego pergunta por toda a família, sabe até metade do nome dos meus filhos! Até há alguns meses atrás a Clarisse (invento-lhe o nome, não lho perguntei) trabalhava na pastelaria do Mercado Municipal, aquela que é a primeir à entrada e a melhor, diga-se de passagem. Não resisto e vou dar-lhe um abraço, porque há tempos que a pastelaria não vê meus pés e nem eu a ela. Só conversamos uma vez, mas foi tão marcante que ficou.

Assim que me sentei no banquinho e pedi um ovo empanado (que é muito melhor que pastel), ela sorriu e foi lépida buscar o dito cujo. Voltou e ficou sorrindo à minha frente, certa de que, como eu estava sozinha, devia precisar de companhia e conversa. Perguntei-lhe se gostava de trabalhar ali, disse-me que sim. Que fazia pouco tempo, mas que estava gostando, muito. E porquê? Porque gosto muito de escrever.

Foi-se na direção de outros fregueses que entretanto chegaram e eu fiquei-me com a dúvida do que teria mesmo a ver uma coisa (vender pastel) com a outra (escrever). Voltou logo depois, mesmo sorriso, mesma disposição de prosa. Arrisquei a pergunta. “E o que é que você escreve aqui?”.

“Ah... os pedidos dos clientes!”, respondeu com um sorriso alargado, cheio daquelas águas de quem sonha com o fim da seca, ou com a própria cama depois de meses a fio na boleia de um caminhão. Meu sorriso foi diferente - e voltou hoje, acrescentado, quando lhe vejo de novo os olhos claros e a poesia toda que pavimenta seu caminho. Sem que ela saiba, dessa forma que só a poesia tem de permear a vida das pessoas, sem aviso, sem notificação, quase sem sentido e certamente sem pressa. A Denise gostou da história – quem sabe passa a fazer parte do seu texto!

05/09/2011

Entre o sarcasmo e a vida


Tenho vários exemplos, na minha grande família que vive do outro lado do Atlântico, das virtudes do saber enciclopédico. Curiosidades da cultura geral foram um prato cheio, anos a fio, diante da lareira da casa na Estrada de Tornada, quando esta ainda era uma estrada e não a rua em que se transformou, quase (inacreditável) no centro das Caldas da Rainha. Os quilômetros que eu andava para chegar à Tália (única livraria de então, onde se compravam os livros de Enid Blyton e o Diário de Notícias) parece que se reduziram a alguns metros. A casa de meus avós resiste incólume, ainda que tenham se silenciado os serões.

Está tudo isso tão longe, no tempo e no espaço. Como se algo em mim tivesse vivido outra vida em pleno século XIX.

Dentro desse saber enciclopédico, saber o que dizem as palavras revestia-se de particular importância. Discutia-se muito; meu avô divagava sobre o sabor diferente do português camoniano, as cartas do king pulavam da mesa para as teclas do piano de minha tia, e eu treinava o prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Quando estavam todos, avós, tios, tias, primos e adjacências, formava-se mais uma mesa – a discussão política entrava em campo, comentavam-se as últimas de Lisboa, às vezes em voz baixa para não ferir suscetibilidades atentas nas outras mesas. De quando em quando as palavras mereciam um tempo de silêncio – ouvia-se uma baforada de cachimbo aqui, uma cigarrada acolá, mais uma bagaceira no copo que ainda é cedo e um whisky on the rocks para os fortes.

Entre tudo isso, uma prima lia cartas que recebia de um lugar chamado Taizé. Parecia outro mundo, a Maria Alice, embrenhada naqueles papéis que vinham de França. Ensinou-me alguns cânticos, que às vezes congregavam essa família que me aqueceu a infância, unida em volta do piano de minha tia, horas a cantar que não se contavam pelos tempos do relógio. Um fio que guardo cheio de boas lembranças feito pérolas.

Maria Alice vivia dentro de uma atmosfera monástica, embora (salvo erro) fosse funcionária pública em Lisboa. Sobrinha de meu avô, herdou o nome da mãe, mas não seus olhos cor de cinza. Eram “as Alices”, que chegavam sempre juntas, às vezes vítimas daquela espécie de maldade familiar que atinge os melhores, ou os incompreendidos.

Essa maldade foi-me apresentada, pela Maria Alice, como “sarcasmo”. Não sei quantos anos eu tinha, porque é daquelas memórias linguísticas mais antigas. Disse-me que sarcasmo é uma doença, e das mais graves, que é contagiosa e dificilmente tem cura. Quando se adquire, a cura demora, e depende muito mais da força de cada um do que dos remédios dos outros. Anos passados, descobri que ela tinha toda, toda a razão.

Sarcasmo é uma palavra de origem grega, como tantas que nos foram legadas pelos helenos. Deriva de sarx – carne - e criou um verbo. Porque, embora no princípio fosse o verbo, quem primeiro chegou foi o nome. E os nomes, quando transformados em verbos, mudam-se, embrenham-se, infiltram-se e passam a ser dentro de nós coisas que não eram quando em estado de palavra pura, de dicionário drummondiano. Sarx, a carne, criou sarkásein, o arrancar carne. Carne que se arranca através da palavra deve provavelmente ser a mais dolorida, por arrancar-nos da alma a nossa identidade humana, a carne que nos constitui, o ser carnal solidário e fraterno, que antes se agrega do que se arranca de seu semelhante.

Maria Alice apresentou-me a coisas mais importantes - a comunidade Taizé, para onde me voltei durante alguns anos. Taizé apresentou-me a Tereza de Ávila, um antídoto potente ao sarcasmo do mundo, transformado numa oração simples  que por sua vez se transformou em cântico na comunidade francesa. Minha irmã, na curta visita que nos fez nesta semana, e sem saber de nada disso, ressuscitou-me desses tempos antigos, em que a família se reunia e cantava esse mesmo cântico que ela escondeu hoje pela manhã dentro da minha mão, com um sorriso nos seus olhos serenos, onde o sarcasmo nunca encontra morada.

nada te turbe
nada te espante
todo se pasa
Dios no se muda
la paciencia
todo lo alcanza
quien a Dios tiene
nada le falta
solo Dios basta

O cântico, com melodia:

25/08/2011

Sem título, por opção


Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça.  E isto a propósito de que? De duas coisas.

Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.

“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. "Graça" oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em "estado de graça" é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).

As coisas que são "de graça", contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.

Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.

Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente - ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.

Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.

23/08/2011

Fome



Contava eu hoje pela manhã a um grupo de jovens que a desgraça alheia ajuda-me desde pequena a lidar com a própria – sempre e por todo lado menor. Às vezes (agora, por exemplo, em que escrevo) chega a parecer-me quase um utilitarismo: pensar no infortúnio dos outros para consolar-me do meu. Mas não é consolo. É dimensão.

Dimensão do abismo insuportável que me separa da dor do outro, que eu quero sentir para poder aplacar, mas não sinto, e não aplaco. Insuperável , insondável, intransponível, inalcançável. Qualquer dessas palavras serve-me para o mesmo: para a dimensão desse abismo entre o que eu quero e o que eu posso, que em tudo se assemelha ao que todos queremos e de fato podemos. Meu grão de areia insuportável e intransponivelmente irrelevante. Naquilo que posso, a minúscula contribuição ao (quando muito) resgate de alguma parcela da dignidade alheia, essa que falta e escasseia - subtraída, escondida, roubada. Haveria de inventar palavras que falassem dela.

Por isso, a importância de nestes nossos dias ouvir a poesia e o canto somali, as narrativas etíopes que se perdem nos confins dos tempos em que viviam a rainha de Sabá e o rei Salomão. Aos meus olhos e ouvidos, resgatam do seu anonimato esses rostos desfigurados pela fome e pela desventura; tornam-se o semblante humano da arte, aquilo que os faz, de forma altiva e silenciosa, meus mais desgraçados irmãos – irmãos que sorriem e dão graças a deus porque de seus nove filhos dois chegaram vivos ao campo de refugiados para onde caminharam durante semanas; irmãos que dão graças a deus porque nesse dia têm uma xícara de arroz para compartilhar entre oito; irmãos que não choram mais porque as lágrimas secaram nas areias dos desertos que habitam; porque nesse dia o carregamento de água trará a ilusão de que a sede acabará; e porque amanhã a mesma coisa, até não caber no corpo nem sequer uma ilusão.

Repito a cada noite os nomes etíopes e somalis que conheço: Asad, Meseret, Mihret, Oumed, Amina, Erasto, Ayanna, Selassie, Dalmar, Nadif. Muitos podem chamar-se dessa forma, e a todos quero incluir na minha noite em que não existem nem sede, nem fome, nem quilômetros de sol à frente de meus passos nus, nem crianças mortas a cada lado da estrada, nem uma continuidade inacabável de sofrimento às minhas costas.

Repito-os para que tomem forma e me lembrem em sonhos da imensidão que é a raça humana, e a sua capacidade de sobrevivência em face do desespero alheio. A cada morte de cada um a minha existência perde algo da sua humanidade, e eu preciso da arte, desesperadamente, para lembrar-me de que o seu sofrimento é o meu também, e de que enquanto eles, tão longe de mim no tempo e no espaço, não deixarem a um lado a fome e a sede, cada meu prato de comida pesa-me uma tonelada, e jamais saciará a fome que sinto em seu nome, e da qual me lembrarei a cada noite ao dormir, a cada manhã ao levantar. Como um fardo que ponho às minhas costas porque quero e porque assim, bem mais egoísta do que gostaria de ser, posso dormir.

11/08/2011

Saraus

Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses "beedies" que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.

 Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.

Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.

Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.