Aos amigos do Aldeia
“Já te disse que a galinha não é nossa”. Gracinha tinha certeza, e repetia a mesma coisa a seu marido vezes sem conta. Eu, do meu lado desta cerca que nos divide, cheguei a ter pena dele. Duvidou, duvidou, tentou ainda argumentar, mas foi tanta a insistência de sua esposa, que acabou por prender a galinha no galinheiro e ir em busca de seu dono. Sei que Gracinha e seu marido gostam muito de suas galinhas, cuidam delas como se fossem filhas, e isso não porque não as tenham (as filhas), têm duas e bem criadas, mas as galinhas preenchem os seus dias, com seu andar estremunhado e seus olhos que não piscam. Cantam pela manhã, elas e seus companheiros, e avisam solícitas quando acabam de por um ovo. Nem sempre meus vizinhos os resgatam a todos – uma das alegrias das suas vidas é sentarem-se à varanda, rindo das ninhadas que correm atrás das mães, alegres e contentes como só os pintos sabem viver a vida. Assim que soube disso arrependi-me de todos os ovos roubados à tardinha e jurei nunca mais fazer uma dessas. Galinhas deitam-se cedo, ainda por cima, contava-me Gracinha explicando seu amor pelas aves, numa dessas conversas à varanda, o que nos economiza o trabalho que dão os animais de hábitos noturnos. Por vivermos no campo, não é raro sermos acordados pelos gatos da vizinhança em namoros com a nossa gata. Galinhas não miam à noite e são bastante comportadas em seus namoros. Eu assenti de leve com a cabeça, sem grande entusiasmo, que a mim as galinhas agradam-me, mas não a ponto de conversar sobre elas.
Mas a galinha estranha desse dia roubou o sossego das galinhas e dos vizinhos, logo pela manhã. Grande e gorda, toda branca à exceção de algumas penas marrons e pretas (que até lhe conferiam uma certa graça, há que se dizer a verdade), apareceu no gramado pavoneando-se como se de um peru se tratasse. Um ar superior olhando as demais, andando em círculos em volta das outras pobres coitadas, que por natureza não são nem grandes nem gordas e tendem mais à cor da terra, sem nuances. Ainda assim, são de uma graça natural que a gorda e grande visitante não conhecia. E obviamente não reconhecia.
Chamaram-me por cima da cerca, certos de que seria minha embora eu nem galinhas tenha. Mas fui lá ajudá-los a espantarem-na. Em vão. Por volta das onze horas encontramo-la expulsando uma das galinhas poedeiras de seu ninho, ansiosa por botar seu grande e vermelho ovo, descomunalmente grande. Espiamos os três por cima da cerca do fundo, tentando perceber alguma semelhança entre a invasora e as galinhas da outra vizinha. Mas as dela são diferentes, estão todas misturadas, estragadas por aquele galo carijó que o filho da vizinha ganhou junto com a esposa, e que nunca mais deixou as outras galinhas sossegadas. Certamente não era da vizinha a grande e gorda galinha. O marido, com o livro sobre galinhas debaixo do braço, não se decidia em classificá-la: Gracinha, ela se parece com esta Plymouth Rock ou com esta Leghorn? Gracinha encolhia os ombros e olhava a galinha com uma tristeza desanimada.
O marido lá foi à procura do dono. Deu-lhe motivo para passeio, e para bater à porta dos outros, que é coisa que gosta de fazer. Mesmo quando não tem motivo. Agora que o tem, haverá de divertir-se.
Em pouco tempo a vizinhança toda sabe da galinha. Recebe imensas visitas, este bicho. Gracinha interrompeu a preparação do almoço pelo menos quatro vezes para atender ao portão e mostrar a galinha – depois de encontrá-la, claro. Todos meneiam a cabeça, elogiam a imensa galinha e dizem que não, que sequer têm galinhas, mas tanta foi a divulgação que decidiram vir conhecê-la. A mim tudo isso me dá trabalho – a cada batida de palmas, corro à cerca para ver quem é desta vez. E volto rindo pra minha cozinha, meu almoço também a meio.
Marido volta aborrecido: sugeriram-lhe que entregasse a galinha, mas sem vida e depenada. Confuso, respondeu que não, que aqui não matamos nossas galinhas, que são como filhos e por tanto fora do cardápio. Mesmo a galinha não sendo dele, começou a sê-lo nesse momento, em que repentinamente se mostrou companheira de batatas e cenouras dentro da panela. Para tudo há limites, dizia inconformado o marido, nem se fosse minha, imagine que há pessoas querendo canja da galinha alheia.
Finalmente, veio a dona, Gracinha atendeu. Agradeceu o incômodo, o trabalho de divulgação e busca. Porém a galinha não apareceu. E nem marido. Só mais tarde, quase noitinha, encontramos os dois ao fundo do quintal. Ela, grande e gorda, pastando as graminhas ralas da sombra, ele entretido entre o olhá-la e o ler o jornal de domingo, atrasado quase uma semana.
Desenho de Martina Schreiner