Se você decidiu ler esta crônica para passar o tempo e distrair-se sem precisar pensar muito em coisa nenhuma, sem modéstia devo dizer-lhe que corra a fazer outra coisa. Eu mesma sentei-me para escrever com essa intenção (passar o tempo e distrair-me), e acabei enredada nas palavras acrescidas de sentimentos. Portanto, nem é preciso se desculpar, que a vantagem de ler é que a nós apenas compete e ninguém tem nada com isso.
Sinônimos são coisas estranhas que desde pequena me incomodam. Na primeira aula em que quiseram ensinar-me (pior: que eu repetisse) que sinônimos eram palavras que queriam dizer a mesma coisa, eu mexi-me inquieta na cadeira com tamanho despropósito. Nenhuma palavra quer dizer o mesmo que outra, o que aliás seria de cara um perdulário contrasenso: pra que duas palavras para dizer uma mesma coisa? Pra que gastar em dobro para nada dizer a mais ou a menos ou diferente?
Para provar o que me escapuliu de repente dedos afora, assim que comecei a escrever, fui-me em busca desse paquiderme bastante roído pelas traças a que damos o nome de dicionário. Abri-o assim, ao acaso, e lá estava, como sempre, um bom exemplo do inútil que é pretender saber o que são sinônimos. Como se existissem.
Sólido – verbete imenso, com um corte a meio (presente das larvas que dividem comigo a leitura dos livros), diverte-me. O que teria a humanidade em mente para conferir a uma palavra tão simples uma quantidade tão impressionante de pretensos sinônimos? Sinônimos que, como sempre, raramente entregam aquilo que prometem. Posso até, condescendente, achar que as palavras queiram dizer a mesma coisa, o difícil é que nós queiramos o mesmo. E como quem as usa somos nós, fica o caso resolvido.
De pronto: sólido. Define-se por negação: o que não é vazio e oco. O que não se deixa abater por uma força externa. Que tem consistência, é encorpado. Forte, robusto. Que tem fundamento real, seguro. Duradouro. Sério. Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico, adequado. E, por fim: corpo que tem três dimensões e é limitado por superfícies fechadas.
Bem sei que o campo da semântica correrá a contradizer-me, a cada palavra seu âmbito de uso, mas havemos de ver que as coisas, no mínimo, não se completam. Facilmente alguém advogaria que poderíamos usar uma dessas palavras em lugar de sólido, como um seu sinônimo. Será...?
Supondo que um sólido seja um corpo que tenha três dimensões e esteja limitado por superfícies fechadas, não pode estar nem vazio nem oco. Supondo ainda que todos nós, pessoas, tenhamos três dimensões (temos) e estejamos limitados por superfícies fechadas (estamos, ainda que sejam as superfícies permeáveis), não somos nunca, por definição, nem ocos nem vazios. O que, já se sabe, precisa de uma observação atenta do entorno, mas é fato. Há até quem pareça oco, vazio – mas quem está do lado de fora é que acha, do lado de dentro, em circunstâncias psiquiatricamente normais, ninguém se acha nem uma coisa nem outra.
Portanto: não somos ocos nem vazios. Abater-nos por forças externas: depende da intensidade, direção e intenção das mesmas. Do momento nosso. Da companhia, às vezes. Ou da falta dela. Dos silêncios. Ou do excesso de ruídos. Nem ocos, nem vazios, porém suscetíveis às forças que nos rodeiam. Adiante.
Consistência: temos, ou procuramos. Encorpados: uns mais que outros, como no mais (e, veja bem, encorpados são mesmo é os vinhos.)
Fortes e robustos seremos todos um dia, que a tendência à robustez aproxima-se conforme os anos se distanciam. Robustez que, em termos de sinônimos, pode até ser um eufemismo...
Agora vêm as coisas complicadas: que tem fundamento real, é duradouro e sério. Mesmo tendo as três dimensões, mesmo não sendo nem oco nem vazio, mesmo robusto e forte... nem sempre o fundamento é real, nem a seriedade e a duração se coadunam com muitos de nós. Sérios e duráveis, nós?!
Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico e adequado. Depende, é claro, assim como depende o que pensemos que seja algo “bem aplicado”, que talvez esteja distante de “ enérgico” e a léguas júliovérnicas de “adequado”... Consigo pensar assim, sem sequer pensar, em pelo menos três exemplos, que aliás não vêm ao caso nem ao espaço que aqui se quer exíguo, de situações pretensamente bem aplicadas, até enérgicas e nada, mas nada mesmo, adequadas. Pense: todos temos exemplos fáceis.
Creio que todo o meu empenho conduzir-se-á, a partir de hoje, pelo desejo e necessidade de ser sólida. Serei plena e preenchida, robusta e forte (e estou ficando, infelizmente, graças às últimas e ainda em curso aventuras gastronômicas...), séria, duradoura, visível nas minhas três dimensões, o que é uma grande vantagem, num mundo em que, se você consegue ver uma delas, já é uma grande sorte. Terei fundamento real e não me alterarei com facilidade, sendo no entanto aplicadamente enérgica - e ainda conseguindo a proeza de o fazer da forma adequada. Só de imaginar, precisei deitar e descansar, para pensar nas prováveis vantagens de ser como os vidros e viver num pouco aparente estado líquido.
Ana Vieira
Ana Vieira