Lembrei-me agora tarde deste rio que chamei de "Das Flores" tempos atrás, um dia em busca de Endovélico, um antigo deus pagão do Alentejo português. Um perfume de baunilha enchia o ar, e o rio quase que não deslizava, antes hipnotizava as coisas à sua passagem.
Passaram-se os anos. Com certeza as águas do Das Flores continuam na sua longa e perfeita marcha em direção à foz. Assim como todo rio é matéria de água, todo rio desliza ou corre ou mergulha na direção do futuro.
Observo este rio de hoje, este rio que sorri por entre rochas antigas, do tipo invencível e paciente, e me estende as mãos em convite. Faço-lhe alcançar os meus dedos e mergulho de uma só vez em suas águas claras.
Ouço seu sussurro, essa recitação suave que diz deita-te, deita-te, e deixa-te levar. Estou aprendendo. Experimento deitar-me nas águas como se me deitasse num leito. É um leito, de rio, feito casa em redescoberta. Recebo nas mãos as lições de que preciso. A da entrega. A dos olhos fechar. A do sorriso como gesto natural do lábio.
Deitar-se ao largo no rio faz o coração inchar. A garganta apertar. As mãos tremerem quando aqui e ali roçam sem querer roçar o fundo de pedras roladas escorregadias. Parece que afundo. Mas não.
Olho para o lado, com cuidado para não encher os olhos d'água. E vejo-te. Estás ali, à distância de um palmo curto, pequeno e largo. Em vez de afundar sorrio. E depois de sorrir respiro.
As águas deste rio imenso atravessam a planície. Deslizam suaves, sem tropeço de pedra. Adiante o contorno de rochas azuis. Dois pássaros secam-se ao sol, sacodem as penas luzidias, piscam os pequenos olhos. De dentro da cortina d'água, desaparecem no fundo azul do céu. Meus olhos também piscam.
Há corredeiras à frente, penso, e logo quase digo em voz alta: e uma curva longa, sinuosa e lenta adiante. Todo rio é feito de água e corre na direção do futuro, e o futuro é só o amanhã em processo de chegada. Já está aqui e ainda não chegou lá.
Não há perigo, nem sequer é preciso pensar, escuto. Se o corpo arqueia, em substrato de medo, sinto o teu vibrar ao meu lado, tão na água quanto eu, tão no leito quanto eu, tão na entrega quanto eu. Deixa a água conduzir, dizes-me, e eu descanso os músculos tesos. Respira: quando se arqueia o corpo, os pulmões esquecem-se de tudo e extasiam sem nada fazer. O rio respira sob e sobre mim, e tu ao meu lado.
Saberei deixar-me conduzir por dentro deste rio? Não me lembro de manhã tão cedo mergulhar em águas claras e largar-me assim, debaixo delas como se delas fizesse parte. Talvez o rio seja meu, seja nosso, o nosso primeiro.
Como todos, este rio, feito de água, brilha debaixo do sol amarelo enquanto o vento balança os longos galhos das árvores numa espécie de carícia. As minhas costas tremem como numa lição de amor. As águas deslizando me levam e eu só me concedo deslizar com elas.
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