Coração aberto,
sensibilidade à flor da pele, delicadeza e noção exata da preciosidade do amor:
pré-requisitos do encantamento amoroso.
Tenho o livro de Vinícius dentro das mãos. É ele quem diz
essas coisas sobre o amor, não eu. Maria Letícia encontra-me na escada onde me
sentei. Colega de faculdade, está guardada naquele lugar vago que chamamos de lapso de memória. Estou sentada com o
livro de Vinícius nas mãos, porque tenho uma aula a dar, e é sobre ele, e
convém que me prepare.
Demoro a lembrar-me da Maria Letícia – o que tanto significa que
possa demorar-me em sua pessoa, detendo-me e olhando-a atenta, quanto que tarda
a lembrança a aflorar do subterrâneo da história. Não lhe digo, porque a
magoaria.
O maior solitário é o
que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...) Esse queima como uma lâmpada
triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno.
É a memória seletiva, essa que me salva das coisas que não
têm por onde escapar desta vida para outro lugar qualquer. Às vezes, é vantagem.
Não faço esforço para lembrar-me, porque nem sei que tenha do que lembrar-me.
As pessoas aproximam-se (como Maria Letícia neste lance de escada) e, porque
não tenho o que resgatar, nenhuma imagem anterior, nenhum comentário que a
tenha eternizado dentro de mim (realmente não me lembro), posso olhá-la com
olhos virgens, sem nenhuma desconstrução a fazer que me deixe mais honesta diante dessa
que pode haver (terá) se transformado no correr dos anos. Fresca novidade, a
Maria Letícia.
A maior solidão é a do
ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da
vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de
si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de
socorro.
E ela sorri, enquanto acena (ela sobe o lance de escadas
para alcançar-me) e grita de lá: “Te reconheci pelo livro!”. E lembra-me, ato
contínuo e já ao meu lado, do seminário apresentado em Literatura Brasileira
II, das frases que recortei desse mesmo livro que tenho dentro das mãos, e que
ficaram dentro dela vibrando semanas a fio. “Comprei esse livro por tua causa”,
diz mais baixo. “Ajudou-me a atravessar momentos difíceis”.
O amor exige a
exposição ao sofrimento e um tipo especial de coragem.
Eu lia Vinícius um tanto à toa. Esperava o fim da aula de
vôlei da minha filha, e o livro estava ali, pousado no banco, perdido, ao meu
lado. Mergulhei nessa insensatez que o Poetinha propõe e foi de repente, eu que
não me lembro da Maria Letícia, muito menos da Literatura Brasileira II. Sou
engolida por essas palavras que julgava nunca ter lido. Sento-me no degrau mais
alto da escada, para que o mundo fique longe e não se intrometa, Maria Letícia
ao meu lado, e lemos uma à outra os trechos que, nesse exato momento (farei
força por não esquecer nunca), aquecem as duas almas como se fossem gêmeas, e
dissolvem esse sentimento insuportável de não pertencer. Como um voo rasante de
pássaro, o sentido passa por nós, e se materializa adiante, e logo passa, e já somos só
nós, outra vez, sentadas no degrau mais alto de todos, onde chegam finalmente os
gritos das meninas do vôlei, como estilhaços de vidro quebrado contra o
concreto.
(Os trechos em itálico
são de “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes e poderiam ser bíblia
para aqueles que não têm ideia do que seja, de verdade e com consistência e
força, amar.)
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