Foi num domingo de manhã qualquer. Joice arrumou-se diante do espelho na dúvida se seria o certo, se não deveria acabar com essas visitas dominicais, ritmadas, quase quase automáticas.
Mas a solidão a dois aperta seu coração. Vê-los assim, cabeças coroadas de branco, olhos encovados, faz trepidar as suas veias, e ela então lança-se a essa tarefa que nem sempre se recobre de glória.
Tocou três vezes a campainha. Preferia que soubessem que era ela, quem sabe antecipa potenciais problemas. Subiu os três lances de escadas desprezando o elevador, deixando em cada degrau o pedido de sossego, de paz, de concórdia, de puro afeto sem maiores manifestações. Se não doer, já vale a pena, range entre um e outro patamar, e ela sobe.
A porta aberta não tem ninguém atrás dela. Joice entra, atravessa o corredor que a mãe chama de hall, porque não suporta corredores porque lembram hospital, e hospital lembra abandono e abandono lembra-a de seu mais terrível medo. O terapeuta disse que era medo infantil. Mas ela já tem 76 contados dedo a dedo, e o medo é o mesmo, como se tivesse sido cultivado a quatro mãos.
A sala tem luz em excesso, as coisas não têm contornos. O pai acena por detrás do jornal, Joice hesita antes do beijo na beira da pele. Às vezes arrepia, hoje o pai sorri. Joice segue cozinha adentro. A mãe sorri, destampa panelas, aponta os garfos que ainda não estão na mesa. As facas já. Joice distende o pensamento enquanto sopesa na mão os talheres, é domingo, parecem prata.
Os copos também cintilam brilhos.
E Joice distende o corpo. Sentam-se à mesa os três. Sorriem. Dão-se as mãos num bom apetite sem vocação. O pai pergunta-lhe. Pula de um assunto ao outro. Mas ainda assim pergunta, e Joice responde, ficando aqui e ali perdida pelo questionário que segue um roteiro particular para o qual ela não foi convidada. Tropeços costumam ser inevitáveis em dias assim. Mas não. As perguntas terminam e o almoço vai avançando noite dentro.
A meio de um silêncio sem cor, a mãe sorri, a paz sentada à mesa. E também seu coração distende, ainda que o medo a ronde, e ela sem querer diz em voz alta e o pai responde que disparate. E quase tudo desanda, mas a mão do pai alcança a da mãe e há quase um carinho, uma encomenda com endereço completo. E o pai olha para Joice, aquele sorriso que a desarma, e pisca-lhe um olho, o gesto que ela abomina mas é o que lhe oferece e ela pensa, não custa nada, e é o que temos pra hoje. Joice sabe que ele sabe. E pisca de volta. Desistida.
Não há sobremesa. O que faz o pai? Pergunta? Afirma? Censura? Constata? Não se sabe, nunca. A mãe encolhe-se nos ombros, procura um lugar de saída. E o pai levanta-se solene, lento, gestos de atelier de estudo, e vai até o quarto. Demora-se antes de voltar com um meio sorriso nos lábios e os prêmios escondidos dentro das mãos.
Estende uma à filha, a outra à mãe. E ambas adivinham e ganham a prenda. E Joice sorri, porque seu bombom é de prestígio, e ela adora, e ele sabe que ela adora, e ela sabe que ele sabe que ela adora. E nessa confusão de pensamentos, nessa enxurrada de sentimentos, Joice enterra os dentes no chocolate escuro.
Fecha os olhos, dizendo-se tanto faz tudo isso, ele sabe e eu sei, e é o bastante. E Joice mastiga e uma vez mais enterra os dentes, com o cuidado de uma criança que se aproxima pequena e frágil da mais frágil ainda borboleta, para que não se assuste e voe, e desapareça para sempre.
E de repente algo obriga a boca de Joice a abrir-se. Tira o bombom de dentro dela com uma mão que estremece, e os dentes ficam marcados na massa marrom. A testa franze, a boca contorce, e então os olhos de Joice veem o mofo branco dentro do bombom, esses brancos e pequenos filamentos apontando como espadas o céu da sua boca.
(Para Regina)
http://not1.xpg.uol.com.br/wp-content/uploads/2010/06/bombons-amargo.jpg
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