Começa a época do ano em que, aqui em casa, mais há aniversários. Momentos bons de festejar a passagem do tempo. Penso nas celebrações, na sua importância.
Não são apenas festas, veja bem. Gosto destas também, mas quando o impulso da celebração está presente, o resultado é outro. Não é apenas sair para dançar, ir ao cinema, passear nos bosques - todas essas atividades, por si sós, podem ser celebrações. Mas só quando se quer que assim seja, e se age nessa sintonia. É preciso preparar-se.
Celebrar significa honrar. Deriva de celeber, que é algo várias vezes repetido, e por isso notado e percebido, e por isso digno de honra. Celebrar opõe-se à indiferença que grassa pelo mundo. Significa separar um tanto de tempo para dedicar-se a algo ou a alguém que é notado e percebido. É preciso re-parar na pessoa, e perceber que lhe é necessário, para a sua existência plena, ser notada e percebida em todos os seus lugares. Celebrada, portanto. É preciso saber olhar, e é preciso desenvolver uma capacidade que nos vem sendo negada.
Dentre as muitas verdades ancoradas no continente africano, e que reconheço como formadoras do que sou, o impulso da celebração é básico. Para viver é preciso celebrar. Por isso todo casamento africano é uma grande celebração compartilhada, que invade a cidade com seus cantos pelas ruas. O nascimento de uma criança é uma celebração. A conquista de um novo emprego. Uma viagem que se vai fazer. Uma viagem que se fez. Um ano que se passa. Um ano que se passou. Não é que africanos gostem mais de festa do que nós. O ponto é que eles sabem da importância que tem o que acontece a cada um, e o quanto o que acontece a cada um acontece a todos. E por isso a celebração é o reconhecimento da sublime importância do coletivo na vida de cada indivíduo.
Nas nossas vidas ocidentais, tão ciosas dos seus espaços e amores próprios, fazemos questão de delimitar com muita acuidade os lugares nossos onde os outros não entram. E o problema é que esses lugares modificam-se por estarem vazios do olhar do outro. Tornam-se lugares perversos, morada da obsessão, do enevoamento, da estreiteza, do medo. "Em conversa de marido e mulher não se mete a colher" significa que aquela problemática, ali, daquele casal, não me diz respeito. Não há nada que me ligue a ela. E por isso ela cresce até implodir. E, na sua implosão, às vezes perde-se tudo.
Meu amigo Aléssio, que me frequenta diariamente de uma forma africana de viver, contou-me ontem do caso do rapaz assaltado que pulou do carro dos bandidos deixando com eles a namorada. Morreu, que Deus o tenha. E ficamos ambos nos perguntando o que teria acontecido à moça, e o que teria passado pela cabeça e pelo coração do rapaz ao deixá-la ali, vulnerável e frágil, no carro dos assaltantes. Sentimo-nos mobilizados porque isso nos disse respeito. De quantos carros cada um de nós pula, deixando à mercê das sombras aqueles que estavam conosco? O que fica de nós dentro do carro, e o que levamos com nosso pulo?
Eu, gosto da vida celebrada. Compartilhada. É-me muito difícil conviver com tudo o que não pode ser celebrado e cantado, tudo o que se esconde atrás dos medos, das inseguranças, das convenções engessadoras que nos empurram a abrir mão da liberdade do bem viver. De vivermos da maneira correta, de acordo com a nossa verdade interior. (A verdade é relativa, ouço você dizer. Quiroga fala disso em sua coluna de hoje. Leia aqui http://blogs.estadao.com.br/sincronia/adaptabilidade/) Como viver, sem compartilhar com quem está ao meu redor as minhas alegrias? As minhas tristezas? Os meus avanços? Os meus retrocessos? As descobertas que faço nos caminhos que trilho? Os sustos que encontro dentro das florestas que me habitam a alma? Como fazer com que isso seja a minha verdade sem que os olhos dos outros me devolvam a mim mesma?
Não. É preciso reinventar a vida.
É preciso reinventar o dia, a hora, o abraço. Transformar os aniversários em celebrações de quem avança no tempo, sabendo que, com ele, avançamos todos. Convidar o outro para que participe da nossa festa interna, e permitir que todos os outros entrem também. A felicidade, como o amor, não se esgota. Quanto mais se compartilha, mais cresce, e mais ganha sentido. Um sentido que nos transcende como indivíduos e que brilha nos olhos dos outros, unidos a nós pela atmosfera tão sutil da celebração.
Tenho tido a sorte, ou o merecimento, de compartilhar momentos inesquecíveis com um novo grupo humano que agora me habita. O merecimento de celebrar, junto a esses meus novos irmãos, o poder que tem tudo aquilo a que se dedica sentido, unidade, inteireza, confiança e entrega. Meu maior desejo é que, desta união que transcende o espaço físico, e se aloja em lugares tão acessivelmente longínquos, nasça um eu cada vez mais verdade, um eu que possa transportar e celebrar a vida, em todo lugar: com você que me lê, com você que me escuta, com você que faz a minha palavra tornar-se maior e mais verdadeira, porque deixa de ser minha, para ser nossa. Mais que o "meu", eu quero o "nosso", em cada gota de sangue. E quero o sangue correndo livre pelas veias da terra. De outra forma, o sentido é parco, a vontade é escassa e a vida é pela metade.
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