Para as pessoas de quem aqui se fala
D. Maria corre de um lado para o outro, enlouquecida com tanta fineza. A da louça, a do papel e a do presente que lhe convinha a filha não visse ainda. Não antes do casamento. Quando encomendara, imaginara algo grandioso, mas agora estava aflita porque seria necessário comprar mais armários onde exibir tanto belezura. Nem tirem tudo das caixas, vai dizendo às empregadas que se ajoelham no chão. E elas param, atordoadas.
Agora, D. Maria examina cada pires, um legítimo Wedgwood, e o delicado desenho a prata e ouro e traços de vermelho. Pensa ter escolhido um outro, faz tantos meses que enviou o pedido para Staffordshire, na Inglaterra. Pensa na longuíssima viagem de navio, imagina o desembarque de todas essas caixas de madeira no porto de Maceió, e o seu translado em lombo de burro até à fazenda. Melhor que considere o enxoval finalmente completo. As arcas com as toalhas de linho, as colchas adasmacadas, o faqueiro de prata, e agora as travessas e as sopeiras e as saladeiras. D. Maria senta-se em sua poltrona forrada de flores de chintz e suspira entre um inspirar e um expirar.
O casamento passa, as festas acomodam-se na memória, as fotografias nos álbuns. Francine já está na casa nova. As paredes caiadas de branco, os sofás estampados com as grandes flores de que os ingleses tantos gostam, as janelas abertas de par em par - está quente demais, esse verão alagoano. Nem uma chuva no horizonte que abaixe a poeira e levante o ânimo. Esses são os pensamentos de Francine enquanto não se atreve a olhar para o futuro.
A recém-casada organiza a arrumação das coisas, atenta ao relógio e ao horário do chá. O marido prefere a limonada, mas sua mãe fez-lhe ver o quanto os hábitos que não são os nossos nos engrandecem. As caixas ainda sem desempacotar assombram as paredes, e Francine decide guardá-las no quartinho à entrada do porão. Usa a louça branca para o serviço de todos os dias, e quem sabe, quando precisar, virá buscar esta tão fina. Quando vierem os convidados, pensa enquanto alisa a manga de cetim da blusa. Francine sente o prazer que lhe darão os jantares e festas que organizará ao longo da sua vida de casada.
As filhas nascem, e o sertão fica para trás. Na mudança para São Paulo, as caixas são desenterradas daquele quartinho de onde nunca saíram. A louça ainda dorme dentro delas. A casa grande acolhe tudo, com espaço e conforto. Até o dia em que é grande demais para o vazio que se incorporou à vida. Francine olha para as paredes que forram a sua vida e vê o passo diante de si: é preciso mudar e arejar. Ainda não é hora de voltar pras Alagoas, mas é hora de sair desta casa. Diminuir os espaços conforme a vida diminui a importância das coisas que pareciam preciosas e, afinal, eram só enfeites.
As caixas espreitam do armário da garagem. É a filha de Francine que se encarrega de abrir cada grampo que prende as madeiras. Mergulha dentro do oceano de seda que envolve cada peça e volta à superfície com tigelas e pequenos pratinhos que vão abrindo um sorriso em seu rosto. Seus gestos são ternos e macios como os gestos que embalam e recolhem recém nascidos. É preciso prestar atenção a cada dobra e a cada recanto em seu primeiro encontro com o ar. Cecília precisa separar os conjuntos que as netas de Francine herdarão - é muito louça para uma pessoa só, decidiram em conselho familiar na noite anterior.
Cecília escolhe um dia de sol e prepara um café da manhã para seus companheiros de jornada. Escolhe as tigelas e os pires e as xícaras que usará; as pequenas travessas para os pães variados; os potes para a manteiga e as geleias que encomendou; as leiteiras e os bules para o chá e o café; as jarras para os sucos e a água aromatizada com hortelã. Só por último escolhe a toalha, cenário para tanta beleza e história. A louça sorri para o ar à sua volta, o tilintar dos talheres faz com que ganhe a vida que nunca teve. Que tristeza seria, pensa Cecília, esse serviço ser separado ainda virgem. E seus olhos brilham conforme os companheiros chegam, um a um, e olham assombrados para tanta delicadeza, tanto amor que se deitou nessa toalha. E a louça - ah, a louça... A louça canta, enfeitiçada pelos sons e cheiros e tatos que são a novidade da sua vida.
Agora, D. Maria examina cada pires, um legítimo Wedgwood, e o delicado desenho a prata e ouro e traços de vermelho. Pensa ter escolhido um outro, faz tantos meses que enviou o pedido para Staffordshire, na Inglaterra. Pensa na longuíssima viagem de navio, imagina o desembarque de todas essas caixas de madeira no porto de Maceió, e o seu translado em lombo de burro até à fazenda. Melhor que considere o enxoval finalmente completo. As arcas com as toalhas de linho, as colchas adasmacadas, o faqueiro de prata, e agora as travessas e as sopeiras e as saladeiras. D. Maria senta-se em sua poltrona forrada de flores de chintz e suspira entre um inspirar e um expirar.
O casamento passa, as festas acomodam-se na memória, as fotografias nos álbuns. Francine já está na casa nova. As paredes caiadas de branco, os sofás estampados com as grandes flores de que os ingleses tantos gostam, as janelas abertas de par em par - está quente demais, esse verão alagoano. Nem uma chuva no horizonte que abaixe a poeira e levante o ânimo. Esses são os pensamentos de Francine enquanto não se atreve a olhar para o futuro.
A recém-casada organiza a arrumação das coisas, atenta ao relógio e ao horário do chá. O marido prefere a limonada, mas sua mãe fez-lhe ver o quanto os hábitos que não são os nossos nos engrandecem. As caixas ainda sem desempacotar assombram as paredes, e Francine decide guardá-las no quartinho à entrada do porão. Usa a louça branca para o serviço de todos os dias, e quem sabe, quando precisar, virá buscar esta tão fina. Quando vierem os convidados, pensa enquanto alisa a manga de cetim da blusa. Francine sente o prazer que lhe darão os jantares e festas que organizará ao longo da sua vida de casada.
As filhas nascem, e o sertão fica para trás. Na mudança para São Paulo, as caixas são desenterradas daquele quartinho de onde nunca saíram. A louça ainda dorme dentro delas. A casa grande acolhe tudo, com espaço e conforto. Até o dia em que é grande demais para o vazio que se incorporou à vida. Francine olha para as paredes que forram a sua vida e vê o passo diante de si: é preciso mudar e arejar. Ainda não é hora de voltar pras Alagoas, mas é hora de sair desta casa. Diminuir os espaços conforme a vida diminui a importância das coisas que pareciam preciosas e, afinal, eram só enfeites.
As caixas espreitam do armário da garagem. É a filha de Francine que se encarrega de abrir cada grampo que prende as madeiras. Mergulha dentro do oceano de seda que envolve cada peça e volta à superfície com tigelas e pequenos pratinhos que vão abrindo um sorriso em seu rosto. Seus gestos são ternos e macios como os gestos que embalam e recolhem recém nascidos. É preciso prestar atenção a cada dobra e a cada recanto em seu primeiro encontro com o ar. Cecília precisa separar os conjuntos que as netas de Francine herdarão - é muito louça para uma pessoa só, decidiram em conselho familiar na noite anterior.
Cecília escolhe um dia de sol e prepara um café da manhã para seus companheiros de jornada. Escolhe as tigelas e os pires e as xícaras que usará; as pequenas travessas para os pães variados; os potes para a manteiga e as geleias que encomendou; as leiteiras e os bules para o chá e o café; as jarras para os sucos e a água aromatizada com hortelã. Só por último escolhe a toalha, cenário para tanta beleza e história. A louça sorri para o ar à sua volta, o tilintar dos talheres faz com que ganhe a vida que nunca teve. Que tristeza seria, pensa Cecília, esse serviço ser separado ainda virgem. E seus olhos brilham conforme os companheiros chegam, um a um, e olham assombrados para tanta delicadeza, tanto amor que se deitou nessa toalha. E a louça - ah, a louça... A louça canta, enfeitiçada pelos sons e cheiros e tatos que são a novidade da sua vida.
Manhã de trabalho com as palavras, fineza de um encontro de almas. As palavras falam direto de uns aos outros, brincando com os pensamentos, aquecendo internamente. Mas não é só. Algo mais fala diretamente ao íntimo. Como uma louça fina serve mais do que um recipiente para um alimento delicado e saboroso. Toque final. Envoltório. Lágrima escorrendo pelo semblante. Profundo agradecimento por estar ali.
ResponderExcluirHelena Birai
Temi por essa louça durante todo o seu trajeto. Felizmente, chegou a seu destino, nas mãos delicadas e cheias de alma, de Cecília.
ResponderExcluirDepois de um dia longo de trabalho chego a cas e deparo-me cm este presente da mnha querida Ana, lá tão longe...e tão perto! Obrigada
ResponderExcluirTia LUiza