Para entrar nos domínios do povo Herero, é preciso cultivar olhos novos. Olhos de entrar em contato com um mundo que nos desloca da tranquila região de conforto e nos leva por caminhos que nem sabemos quais são nem onde desembocarão. São rios internos que se projetam em rodamoinhos, e é preciso, e é urgente, que exercitemos a arte da entrega. Se não o podemos fazer com o outro em carne e em osso, o outro que se abre em primaveras para nos acolher as mãos estendidas, que ao menos o possamos fazer quando a realidade se apresenta estática, polaroid de perfis controláveis.
As fotografias do pernambucano Sérgio Guerra, expostas no Museu AfroBrasil até julho, são o nosso caminho até os Hereros. Podemos ir ao seu encontro de olhos semi-abertos, espaços internos disponíveis ao impacto de cada imagem e aos pequenos textos que acompanham cada sequência delas, pequenas luzes de um povo que de incompreensível começa a tornar-se familiar com o andar da visita. Podemos ir ao seu encontro com a alma de pé, atentos à vibração de cada olhar entregue à câmara, sem saber que aqui estaríamos, nós, a tantas milhas náuticas de distância dele, absortos nas suas pupilas atentas. Podemos deter-nos em alguns pontos e deixar-nos penetrar pela força crua da nudez das mulheres, homens e crianças dos Hereros. E podemos tudo isso ao mesmo tempo, permitindo que o tempo e a penumbra que reveste o espaço nos abram os portões do entendimento e nos façam esquecer de nós mesmos e das nossas tão pequenas e comezinhas vidas.
Os Hereros dividem-se em vários subgrupos, numa soma total de pouco mais de 240.000 pessoas espalhadas pelo sul de Angola, pela Namíbia e pelo Botsuana. A exposição contempla os povos nas províncias angolanas de Cunene, Namibe e Huíla. Pastores semi-nômades, atravessam os campos sem reparar nas fronteiras do século XIX africano, os bois sempre a seu lado, sua riqueza permeada de intensa e antiga simbologia. Senhores desses pastos desde o século XII, resistentes à escravidão e vítimas de genocídios que viram morrer mais de 80% do seu povo, olham-nos de fora do nosso tempo e forçam-nos a um deslocamento. Representam uma experiência limítrofe do encontro com o inusitado e diferente, com a desacomodação das nossas certezas estabelecidas. É preciso a alma recém acordada, naquele estágio em que ainda não nos lembramos de que o maniqueísmo existe, e com ele o certo e o errado, um estado de virgindade que acolhe e recebe o outro tal qual ele é e é feliz por isso. Só assim a poligamia que é deles pode ser a nossa, os costumes que remontam a 3000 anos podem ser os nossos, os olhares, a cor de terra, os cabelos enfartados de argila podem ser os mesmos que seriam se fossem os nossos. Sentirmo-nos próximos e em igualdade demanda a alma em estado de lua.
Seus costumes não incluem o banho de água, mas de terra esfregada, que os deixa da cor da argila molhada, torneados pelas mãos sábias do elemento dos seus próprios caminhos. Mantêm a sua língua, as suas cubatas primárias que não precisam resistir ao tempo, porque o tempo não lhes resiste. São belos, fortes e imponentes, saídos das lentes de um Verger moderno descobrindo a África. Esquecidos pelo colonizador, fortaleceram-se no seu isolamento. Deslocam-se com rapidez. Atrevem-se a ser o que querem ser, e as suas convenções sociais olham de frente para os elementos e dialogam com eles. Não sei o que se perguntarão nesse diálogo, mas ouço as perguntas que brotam em mim ao olhá-los: como deixar-se abordar pelo outro, permitindo-lhe a marca na nossa carne, sem que nos diluamos nele tão intimamente que já não nos reconheçamos nos nossos espelhos?; que capacidades construir internamente que nos permitam esse olhar, esse toque, esse som que transmuta e transforma, sem que nos percamos e nos tornemos algo que não somos porque nem podemos nem queremos?; como conviver com barreiras que nos permitam a vida sem isolamentos?
Visitar a exposição “Hereros” permite abrir um espaço de interlocução dentro de nós próprios - um espaço de observação do encontro interno com uma realidade que se afasta tanto daquela para a qual achamos estar prontos, que coloca em xeque tanto do que dissemos que seriam nossas regras, nossos acordos, nossa maneira de viver e entender a relação com o outro - que, se tudo não for exatamente como decidimos que a partir de então seria, poderia vir a ser da maneira como os Hereros decidiram que é bom que seja.
* Ruy Duarte de Carvalho, antropólogo e poeta angolano, falecido em 2010, diz assim, dos pastores do sul de Angola:
Das águas que o rino escolhe
da pedra a que o vento encosta
do unto a que o tempo obriga
dos sais que a estação abriga
do pasto a que o gado aspira
da lua em que o vento vira
Não há pastor que não saiba.
Não há pastor que não saia de alguma curva da infância.
engracado
ResponderExcluirlooooooooooooooooooooool
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Para entrar nos domínios do povo Herero, é preciso cultivar olhos novos. Olhos de entrar em contato com um mundo que nos desloca da tranquila região de conforto e nos leva por caminhos que nem sabemos quais são nem onde desembocarão. São rios internos que se projetam em rodamoinhos, e é preciso, e é urgente, que exercitemos a arte da entrega. Se não o podemos fazer com o outro em carne e em osso, o outro que se abre em primaveras para nos acolher as mãos estendidas, que ao menos o possamos fazer quando a realidade se apresenta estática, polaroid de perfis controláveis.
ExcluirAs fotografias do pernambucano Sérgio Guerra, expostas no Museu AfroBrasil até julho, são o nosso caminho até os Hereros. Podemos ir ao seu encontro de olhos semi-abertos, espaços internos disponíveis ao impacto de cada imagem e aos pequenos textos que acompanham cada sequência delas, pequenas luzes de um povo que de incompreensível começa a tornar-se familiar com o andar da visita. Podemos ir ao seu encontro com a alma de pé, atentos à vibração de cada olhar entregue à câmara, sem saber que aqui estaríamos, nós, a tantas milhas náuticas de distância dele, absortos nas suas pupilas atentas. Podemos deter-nos em alguns pontos e deixar-nos penetrar pela força crua da nudez das mulheres, homens e crianças dos Hereros. E podemos tudo isso ao mesmo tempo, permitindo que o tempo e a penumbra que reveste o espaço nos abram os portões do entendimento e nos façam esquecer de nós mesmos e das nossas tão pequenas e comezinhas vidasOs Hereros dividem-se em vários subgrupos, numa soma total de pouco mais de 240.000 pessoas espalhadas pelo sul de Angola, pela Namíbia e pelo Botsuana. A exposição contempla os povos nas províncias angolanas de Cunene, Namibe e Huíla. Pastores semi-nômades, atravessam os campos sem reparar nas fronteiras do século XIX africano, os bois sempre a seu lado, sua riqueza permeada de intensa e antiga simbologia. Senhores desses pastos desde o século XII, resistentes à escravidão e vítimas de genocídios que viram morrer mais de 80% do seu povo, olham-nos de fora do nosso tempo e forçam-nos a um deslocamento. Representam uma experiência limítrofe do encontro com o inusitado e diferente, com a desacomodação das nossas certezas estabelecidas. É preciso a alma recém acordada, naquele estágio em que ainda não nos lembramos de que o maniqueísmo existe, e com ele o certo e o errado, um estado de virgindade que acolhe e recebe o outro tal qual ele é e é feliz por isso. Só assim a poligamia que é deles pode ser a nossa, os costumes que remontam a 3000 anos podem ser os nossos, os olhares, a cor de terra, os cabelos enfartados de argila podem ser os mesmos que seriam se fossem os nossos. Sentirmo-nos próximos e em igualdade demanda a alma em estado de lua.Seus costumes não incluem o banho de água, mas de terra esfregada, que os deixa da cor da argila molhada, torneados pelas mãos sábias do elemento dos seus próprios caminhos. Mantêm a sua língua, as suas cubatas primárias que não precisam resistir ao tempo, porque o tempo não lhes resiste. São belos, fortes e imponentes, saídos das lentes de um Verger moderno descobrindo a África. Esquecidos pelo colonizador, fortaleceram-se no seu isolamento. Deslocam-se com rapidez. Atrevem-se a ser o que querem ser, e as suas convenções sociais olham de frente para os elementos e dialogam com eles. Não sei o que se perguntarão nesse diálogo, mas ouço as perguntas que brotam em mim ao olhá-los: como deixar-se abordar pelo outro, permitindo-lhe a marca na nossa carne, sem que nos diluamos nele tão intimamente que já não nos reconheçamos nos nossos espelhos?; que capacidades construir internamente que nesse toque, esse som que transmuta e transforma, sem que nos percamos e nos tornemos algo que não sopaço de observação do encontro interno com uma realidade que se afasta tanto