Ontem, em plena Amando, minha querida amiga que também é nutricionista olhou-me com a expressão mais natural do mundo (o que me leva a desconfiar que muitos farão o mesmo), mas mesmo assim passei o dia com a palavra kwashiorkor ressoando dentro da minha cabeça. Gosto de palavras com esse som silenciante dentro da sua estrutura, parece que me remetem para a audição interna dos sentimentos que não são nomináveis. O desastre que kwashiorkor significa não é nominável. Como cheguei há anos à conclusão de que os males que afetam o corpo correspondem em muito aos que nos atingem a alma, kwashiorkor se converteu num assunto para muitas horas pensantes.
“Aquele que é deixado de lado”, em uma das línguas nacionais de Gana, dá nome a uma das doenças que mais matam na África rural e no sudeste da Ásia. Espécie de marasmo que incha em vez de secar de tão desnutrido, provoca barriga d’água, cabelos brancos em crianças de pouco mais de ano e outros desesperos. “Aquele que é deixado de lado” ataca mais primeiros filhos de mães em situação de miséria extrema e absoluta, que precisam amamentar com o músculo e o sangue não possuem o segundo filho que nasceu; passam a alimentar o primeiro, prematuramente, com o que têm: sopas de mandioca ou inhame ou arroz ou qualquer outra coisa carente da proteína e do ferro que fazem crescer e desenvolver. Enquanto os pequenos com marasmo (a outra forma de desnutrição por excelência) secam e desidratam, os que são deixados de lado incham, de tanto líquido retido.
Ao longo do dia, desloquei-me lentamente das dores atrozes do físico - também as almas podem sofrer de kwashiorkor, mesmo que não cheguem, com a obviedade que só o olho vê, às extremidades aflitivas da doença física. Algumas almas embrenham-se meses e meses pelos campos do marasmo, emagrecem na sua própria secura, até não conseguirmos lembrar se eram secas antes de secarem. Outras, num repente de algum processo não químico, são deixadas de lado, e começam a inchar, a reter todos os líquidos anímicos que se aproximam. Talvez seja a esperança (vã) de que revigorem e façam crescer, em fortalecimento e saúde. Formam-se barrigas d’água a partir do menor dos olhares, do esboço de um gesto, de qualquer intenção não concretizada nem prometida; de longe, tudo parece alimento, dilui-se qualquer raiz ressequida em água para que renda mais, mas a dureza das coisas, do caldo volátil feito de carboidrato sem ferro, evidencia-se na dificuldade de levantar a alma da cadeira em que desabou. Confunde-se uma alma cheia com uma alma inchada, e só de muito perto se percebe a diferença, às vezes.
Em tempos assim, a cicatrização é lenta e a imunidade baixa. As dores demoram a fechar-se dentro das feridas e qualquer desequilíbrio provoca febres e vermelhidões. Basta um desafio a mais, uma situação inesperada, para que o tônus se altere e o processo se acelere.
Por incrível que pareça, há vantagens do kwashiorkor sobre o marasmo: o segundo leva mais tempo a vencer-se, se é que se vence, porque almas (assim como corpos) que se entregam à lassidão e à indiferença sobrevivem com dificuldade e perdem-se dos outros; o kwashiorkor só precisa mesmo é de atenção, e como ataca os mais velhos em primeiro lugar, já encontra mais estrutura quando aparece. Já que há que sofrer, que se sofra com um horizonte de solução mais próximo, ainda que ilusório.
Que palavra mais triste, que vidas tristes. Sinto que as almas são mais fortes, que podem viver muitos anos com apenas um brilho no olhar e um leve sorriso.
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