16/06/2010

Digressões à parte



Tenho um aluno (vários, até, mas é este um que me vem à mente agora) cujo pensamento é o que eu chamo de digressivo. Infelizmente tendo de preparar-se para exames que querem perceber até onde o pensamento lógico e encadeado vai, precisa de bastante paciência para fazer frente à tarefa. Mas, justamente por ser digressivo, avança sem dificuldades. Só leva mais tempo. E algumas coisas precisam e melhoram com o tempo – como alguns vinhos, por exemplo.

A digressão, bem diz a própria palavra, leva-nos a passeio. A dissertação demanda conhecimento de causa, provas cabais de que se entende, através de exemplos e de experiências. É coisa séria, enquanto que a digressão é um tanto à toa, como sorvete num dia de inverno, só porque deu vontade.

O pensamento digressivo, útil até dizer chega ao fazer literário, é um empecilho digno de zerar nota em qualquer vestibular que peça uma dissertação ao proponente a aluno universitário. A digressão acompanha muitas das melhores peças literárias que andam por aí há muitos séculos, enquanto que a coesão lógica solicita tudo ao raciocínio e muito pouco à arte. Ou produz jóias raras, como muitos sermões de Vieira, mestre em convencer pelo poder da lógica em perfeita cadeia. Mas isso é para criaturas iluminadas como o padre barroco, e não para os comuns dos mortais.

O que é uma pena, acho, rodeada que estou de seres que se nutririam mais das digressões da vida do que de seus encadeamentos racionais. Uns, porque impera-lhes a lógica, e poderiam divertir-se com as cores e os sons da arte que ainda não distinguiram em si, ainda não deu tempo, quase que acabaram de renascer para o encantamento da Palavra. Outros, porque o aperto do mundo lá adiante, o abismo embaixo dos pés que querem mas não conseguem atravessar a  voo, o desespero de ir e querer contra o ir e o não querer - poderia aliviar-se numa digressãozinha que tirasse o peso de cima dos ombros e o fizesse levitar como uma bolha de sabão.

Com o tempo, as laudas, as páginas, o recebimento por caracter-sem-contar-espaços-que-pena familiarizei-me com a escrita e hoje tanto enveredo pelos campos verdes da digressão quanto pelos céus luminosos da argumentação. Gosto e me divirto com ambos, é uma sorte que não seja sempre tudo a mesma coisa. Mas quando me imagino às portas do futuro de antes, e vejo passar diante de mim de novo todas as cores de todos os países e pessoas do mundo, não sinto nenhuma vontade de ouvir outra vez aqueles que me diziam que era preciso ser lógica, e precisa, e assertiva, e cheia de bom senso.

Haveria de preferir, como de fato preferi, enveredar por todas as figuras de linguagem, torná-las meus vícios, desentocá-las a todas das profundezas dos seus refúgios, encontrá-las no escoramento dos poetas que mais amo. Dissertações, naquele tempo, imagino que me colocassem frente a frente com o pouco que conseguia ver através do muro que me separava do que viria a ser, e o sentimento que tudo isso me trazia de frustração e profunda incompreensão.

Espero poder ajudar este meu aluno (e os demais, que se lhe colam na minha lembrança) a não se deixar invadir pela lógica mundana a ponto de perder a sua capacidade de digressão; ajudá-lo a alinhavar-se racional e sobriamente, conseguindo divertir-se com isso, e sabendo que tudo é sempre muito mais do que parece e nada pode ser jogado fora. Se com isso ele conseguir entrar na faculdade que tanto deseja e para a qual não mede esforços, terá sido um prazer e uma alegria somados.

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