Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos
encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente
cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás
das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.
Sustentou mulher e filhos com a venda das
músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de
importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa
entre melodia e palavra. O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a
por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre
que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as
músicas que escreveu e viraram sucesso na voz de Jerry Adriani.
Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito
anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como
gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.
Trabalha na lavanderia montada dentro dos
muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer
trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de
remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o
mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.
Recebe a visita da mulher muito de vez em
quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse
ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de
volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que
entretanto chegaram. Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é
ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo
conseguiu.
Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu
Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar pra polícia. Achava bonito,
usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de
carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês.
Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns
desfilados.
No dia em que foi preso, a mulher
apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de
tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:
- O senhor veja o que vão fazer com ele aí
dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro
que querem me devolver.
Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar
com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não
conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o
aumentam em uma década de anos.
Seu Eliazar serviu durante anos como achou que
devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas.
Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois
filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e
a mulher também.
No dia em que prendeu o traficante, não havia
trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom
humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo
algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou:
os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar
estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu
bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue
com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera
crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos
nossos”.
Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em
que foi preso, tarde da noite. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também,
a filha ainda faltava. Sai pra procurá-la. Aflito. Encontra-a na esquina antes
de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem
aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as
sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe
o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos
que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a
liberdade.
Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser
libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito,
não sabe como suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com
uma marca nas costas. Escreve pouco
nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os
demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia.
Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há
verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo
a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a
voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo
que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa
madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde
boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco
aberto no centro do peito.
(Os versos em itálico são de autoria do poeta Atiloa da Ribeira.
No mais, qualquer semelhança é absoluta coincidência. As personagens são ficcionais.)