20/12/2012

Eliazar


Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.

Sustentou mulher e filhos com a venda das músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa entre melodia e palavra. O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as músicas que escreveu e viraram sucesso na voz de Jerry Adriani.

Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.

Trabalha na lavanderia montada dentro dos muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.

Recebe a visita da mulher muito de vez em quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que entretanto chegaram. Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo conseguiu.

Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar pra polícia. Achava bonito, usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês. Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns desfilados.

No dia em que foi preso, a mulher apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:

- O senhor veja o que vão fazer com ele aí dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro que querem me devolver.

Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o aumentam em uma década de anos.

Seu Eliazar serviu durante anos como achou que devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas. Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e a mulher também.

No dia em que prendeu o traficante, não havia trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou: os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos nossos”.

Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em que foi preso, tarde da noite. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também, a filha ainda faltava. Sai pra procurá-la. Aflito. Encontra-a na esquina antes de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a liberdade.

Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito, não sabe como suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com uma marca nas costas.  Escreve pouco nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia. Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco aberto no centro do peito.

(Os versos em itálico são de autoria do poeta Atiloa da Ribeira. 
No mais, qualquer semelhança é absoluta coincidência. As personagens são ficcionais.)

11/12/2012

Presente de Natal antecipado

Já se sabe: dezembro é tempo de agradecer as dádivas do ano. Uma, em especial, é preciso que eu agradeça antes de dia 11. Dia de último encontro de escrita criativa com o grupo de 25 detentos do presídio militar Romão Gomes, minha estreia no sistema penitenciário de São Paulo. Um grupo diferenciado, composto por policiais condenados ou em vias de (ou não), em condições de prisão bastante diferenciadas também, se formos pensar no sistema penitenciário brasileiro.

À primeira vista, trabalhar com policiais presos causou-me um certo desconforto. Puro preconceito, que tratei de desmontar com a eficácia que me foi possível antes do primeiro encontro. Ainda assim, o preconceito lá ficou, o que me fez ficar mais surpresa que o normal pelo fato de, nestas poucas semanas, o grupo ter deixado de ser "o grupo do presídio" e ter passado a ser o André, o Cruz, o Iranei, o Bélido, o Adilson, o Julião, o Ricardo, o Gama, o Barra, o Ronaldo, o Figueira, o Santinho, o Gomes, o Prado, o Sidney, o Fabiano, o Lima, o Ailton, o Soares, o Paulino, o Samuel e o Di Lucia. Seus rostos me acompanham por onde quer que eu vá; fazem-me olhar para o mundo com vontade de ver por quem não pode fazê-lo. Se fecho os olhos, vejo-os dentro da sala em que trabalhamos, cada um sentado no seu lugar cativo, o que me ajuda a lembrar dos nomes e associá-los à fisionomia, e esta àquilo que tenho entre mãos, que são os seus sonhos e o seu íntimo em forma de palavras.

Não sei de seus crimes, nem quero saber. O que me cabe está nestas horas em que somos todos seres humanos em busca da palavra exata, da construção precisa. Todos seres humanos lutando por entender-se, com dificuldade de perceber-se e urgência de perdoar-se. Prefiro olhá-los enquanto leem em voz alta o que escrevem, numa entonação que não consigo reproduzir, e que me emociona passadas horas. Como em todos os demais grupos de escrita, as dores aparecem por entre as linhas, as mais profundas esgueirando-se tenazes pelas letras que avançam seja qual for o assunto. Transmutam sofrimentos sem quase perceberem que o fazem, e eu tenho o privilégio de assistir e ser partícipe de tudo isso. Porque é fácil falar do quanto a palavra liberta a quem pensa ter a liberdade ao seu dispor; para quem sabe que liberdade é aquilo que corre nas ruas lá fora, libertar-se tem outro sentido.


26/11/2012

O sal da terra

Mais ou menos assim: chega-se a casa e abre-se o facebook. Querem-se notícias dos amigos que estão longe. Por que os amigos são o tesouro de cada dia que nasce. O sal da terra.

I. sente saudades de Goiás, e de uma Cora Coralina encostada às paredes gastas de sua casa. Lembro-me da crônica de uma viagem memorável e transcendente à cidade, e solidarizo-me com a saudade - mando-lhe o link, a ele que até já teceu comentários. Pode ser que lhe faça bem relê-la. A lembrança desse amigo lembra-me um jantar de polvo, anos atrás, o que me faz chegar até o congelador e retirar o prato cozinhado há algumas semanas, à espera de quem o degustasse surpreso, mas nem chegou perto. Penso nos polvos que me intimidaram bons anos e vejo este nessa lamentável situação de pedaço de gelo; a solução do medo de polvo foi, tempos atrás, cozinhá-lo e comê-lo - na companhia daquele amigo, o das saudades de Cora, que o mastigou comigo repetindo três vezes. Deu gosto, livrar-me de um medo atávico com companhia tão compreensiva. Hoje, nem preciso cozinhar, porque estava já tudo pronto: descongelo e como, digerindo cada um dos medos de hoje com os olhos postos na tela. Porque preciso dos meus amigos.

S. manda-me de presente a música que repentinamente compõe o céu que brilha lá fora, porque não dá mais, acabaram-se todas as expectativas irreais espalhadas à minha frente. É um alívio, entre uma garfada e outra, saber que o eclipse que por aí vem afetará todo mundo - é o amigo astrólogo que me tranquiliza, "não será só com você", diz ele... Também K. aparece, e mesmo rápida e fugaz, me diz numa imagem que olho com olhos simples - venha: o retorno também virá.

A seguir é M., que envia uma imagem da lagoa das Sete Cidades, nos Açores - essa mesma que ilustra esta crônica. Num instante, catapulta-me para o passado. Revejo-me dentro das águas do mar dos Açores, a janela aberta diante do azul esverdeado que não tem fim, o silêncio e o cinza das pedras da casa ao meu redor. Não há sensação de segurança (o que é isso?!), mas de pertencimento. De saber que é ali e naquele momento que eu sou aquilo que devo ser, e que aquele que respira, ao meu lado, está e é. A janela acompanha-me a vida inteira, é através dela que olho quando me perco, quando me perdem, quando o engano é maior que a realidade e o coração bate aflito em busca de um qualquer sentido.

Lá está meu avô, dentro da janela de passado que abro neste instante, e nós dois com os pés dentro da água azul da lagoa das Sete Cidades. Conta-me a história da princesa e do pastor, história de amor negado, história das lágrimas que ambos choraram, tantas e por tanto tempo, que preencheram a cratera do vulcão - um lado azul, da cor dos olhos da princesa;  o outro, verde, da cor das lágrimas dos olhos do pastor. 

Estamos na pequena estrada que divide uma lagoa da outra, a estreita faixa de terra que separa as cores do amor. Os olhos do meu avô refletem o azul da água; num instante, que quase não percebo mas aceito, agarra-me a mão e me leva ao outro lado, onde é o verde que se reflete na bondade das suas retinas. Não há mais nada, só a mudança de rumo, o verde e a bondade. Não é preciso mais nada.


22/11/2012

Tempo de sagitário

Começa a época de Sagitário, o arqueiro. Quíron, o centauro que o representa, espreita do céu, feliz com o retorno da sua figura metade gente, metade cavalo. E eu, em pleno inferno astral, decido nova investida numa tentativa obviamente sagitariana:  ir além do que já se sabe.

Entre outras coisas (são várias janelas abertas aqui na minha frente), procuro explicações para o que vem a ser esse tal de inferno astral, e por que apoquenta tanta gente. Leio que, assim como cada casa astral representa uma esfera da vida, também cada mês do ano se dedica a uma esfera da vida, acompanhando a progressão da carta. Assim, a décima segunda casa do mapa astral corresponde aos 30 dias de inferno astral - e como essa é a casa que representa os sacrifícios e doações que se devem fazer aos outros, sem esperar por recompensa, esse é o momento do ano em que, idealmente, devemos sair de nós mesmos e olhar para o que vemos, num exercício de saudável e necessário desapego. Se não conseguimos esse distanciamento, sofremos. Se conseguimos, o inferno não é tão infernal assim.

Gosto destes 30 dias, embora na maioria das vezes se apresentem instáveis, inquietos e insatisfeitos. A instabilidade e a inquietude pela proximidade de mais um ano, considerando que pouco se sabe sobre o que virá. E a insatisfação porque talvez os planos e projetos e ideais do começo do ano que acaba não se tenham plasmado o tanto ou o como se gostaria. Difícil, portanto. Fui desenvolvendo umas estratégias que, acho eu, ajudam a passar por essa tormenta.

Encontro, por entre papéis que decido arrumar (bom momento para se livrar da quinquilharia acumulada em doze meses), uma espécie de carta de intenções para o ano que começava há 365 dias. Rio-me, de tantas coisas que queria, e rio-me de novo porque, afinal de contas, acho que até consegui um bom tanto delas. As que não aconteceram, penso, melhor mesmo que não tenham se realizado. Soa otimista? É sagitariano. 

Encontro cartas que escrevi encerrando outros infernos astrais, balanços que me fazem bem a cada fim de ano, e que devo ter guardado com essa intenção mesmo: lembrar-me de que foi bom e repetir o feito. São agradecimentos, na sua maioria, de coração sincero e aberto. Fico feliz de ter tido a coragem de ter escrito boa parte deles. E começo a fazer os deste ano que termina, e que tanto sacolejou e desarrumou a vida. Coisas de 2012, leio aqui - um ano de desacomodação. Bom saber que não foi só comigo.

Preciso agradecer todo o tempo que pude dedicar a esta tarefa que me faz mais gente: escrever. De longe, a ocupação mais proveitosa do ano. Tanto a que dediquei a minha própria escrita quanto à alheia, tantos foram os momentos de oficinas que aconteceram. Revisito de olhos fechados os momentos ricos e prenhes de palavras, ao longo de todos e cada um dos meses do ano. As lágrimas que vi tantas vezes, das abertas às escondidas, aquelas que só soube porque depois me contaram, por escrito. A emoção de ver descobrir o princípio da voz pessoal em forma escrita, aquele brilho de olhos de quem se lê e pensa: "Ó! Esse sou eu escrevendo!". E, por outro lado, o ser confrontada com os meus vácuos, as minhas tantas obviedades, as abstrações tão simples que vivo querendo fazer caber num advérbio que nada diz de fato.

Preciso agradecer pela paciência com que fui cercada e cuidada. Pelo amor que se esgueirou por entre os dias. Pelo espaço aberto. Pela vida aberta. Pelo tempo aberto. Pela espera do que fica em aberto.

Preciso agradecer por todas as estradas que se palmilharam, os tantos quilômetros andados e voados, nessa atividade tão tão tão sagitariana que é andar de um lado para o outro e sempre achar que ainda não se chegou (porque de fato não se chegou, veja bem). Viagens, contatos e diversidade: quer melhor?!

Mas preciso, mais que nada, agradecer pelos encontros, os que se desenharam além e os que foram surpresas que não vi chegando, e se instalaram. Também pelos desencontros, que ajudam a posicionar a vida no seu quadrante exato, e mesmo que doa, que arda, que queime, é bom que assim seja, porque depois da convalescença descobrem-se novas inteirezas, novas áreas conquistadas dessa floresta que todos somos. Nessa hora, olha-se para trás e vê-se um caminho percorrido - os ziguezagues não são mais tempo perdido, mas um desenho cheio de riquezas; as linhas retas deixaram atrás de si a monotonia; as curvas preencheram-se de remansos. E o espaço que brilha à frente é o horizonte infindo, à espreita das flechas que serão lançadas ao longo dos próximos 12 meses. Planos? É bom fazê-los agora, nestes 30 dias que servem de revisitação, mas também de projeção consciente.



21/11/2012

De viés

Sabe quando a vida se apresenta oblíqua? Numa diagonal em relação à maioria do que costumam ser os seus fios? É assim o dia de hoje: de viés.

Um dos arcanos maiores do tarot, o Sol, representa a felicidade, a integridade, a autoconfiança. É uma carta que brilha, mas há um alerta: tudo aquilo que brilha traz consigo o prenúncio da queima. As cartas do tarot carregam em si a dualidade que comporta e nutre a vida. Porque tudo é várias coisas ao mesmo tempo, tudo tem pelo menos duas faces, fato que nos confunde as mais das vezes. Sobretudo quando se decide confiar mais na construção de pensamento do que nos fatos em si. As evidências: é delas que preciso para conseguir que o tempo de fato se encaixe no tempo em que a minha alma estacionou. Tudo ao contrário dessa direção oblíqua, enviesada.

Viés vem, via o francês biais, do latim bifax, que significa justamente duas faces. O campo da estatística, em todas as suas vertentes, apropriou-se da palavra e às vezes a substitui por outra expressão: erro sistemático. Aproxima-se da interpretação que a psicologia lhe dá, quando fala de "viés cognitivo": a tendência ao erro sistemático baseada em fatores cognitivos e não em evidências. Essa maneira de criar mecanismos de ação e de julgamento chama-se heurística - palavra que vem do mesmo lugar de onde vem aquela palavrinha simpática que Arquimedes usou quando descobriu como medir o volume de um objeto irregular usando água: eureka! Ou seja, a heurística é uma forma de descobrir, de achar, uma maneira de se aproximar de soluções possíveis, até ideais, ainda que não necessariamente as melhores. Parece um paradoxo, mas não é: a heurística não leva em consideração todas as variáveis que incidirão na prática, e por isso pode chegar a soluções ideais que, no momento da ação, não são mesmo as melhores.

Um dos nossos mecanismos de achar soluções é o uso de estereótipos, esses atalhos que usamos para entender mais simplesmente o nosso ao redor e nos posicionarmos diante dele. Às vezes, induz ao erro; às vezes, não. O nosso dia a dia usa estereótipos o tempo inteiro. Errarmos ou não depende em muito da nossa capacidade de observação das evidências que nos cercam, e da nossa flexibilidade com relação às categorias que vamos criando internamente ao longo da vida, e que dirigem e norteiam boa parte dos nossos julgamentos e posicionamentos.

Estive imersa durante alguns dias numa realidade que no mínimo só posso chamar de paralela. Daquelas situações em que se olha em volta e se pensa "caramba, afinal a utopia é bem possível". Volto alinhavada dessa energia, querendo que meu pensamento seja tudo, menos divergente. Manter-me focada, diz-se. Mas de repente encontro-me encravada com variáveis mais duras e densas. E como me esqueci de rearmar as defesas que neste mundo transversal ainda me ajudam a manter a cabeça à tona da água, como não estava preparada, o sol, que é também mas não só felicidade, integridade e alegria, cegou-me. Porque me distraí e esqueci de olhar as evidências à minha volta.

Por isso escrevo. Como uma forma de enviesar a dor, torcendo para que esse não seja o meu particular e arraigado erro sistemático. Torcendo para amanhã voltar a ler o que escrevi e perceber que esta qualquer coisa encravada sumiu-se nas letras impressas, por entre as linhas que não li porque não previ a falta de olhos, de olfatos, de sensores para o que se materializa tão evidente e a mente em seus projetos sequer vislumbra.



Foto: Suzana Siqueira

13/11/2012

Falta d'água

Asa Branca por todo lado. 

Na voz de Caetano em "Tropicália" (excelente), na de Chambinho do Acordeon em "Gonzaga, de pai para filho" (excelente também, belíssima fotografia). Alazões morrendo de falta d'água  em todas as telas de cinema do país, e um povo inteiro acompanhando peregrinações. Demais.

Lembrei disso agora de noitinha, porque faltou água aqui em casa. Eu querendo fazer faxina noturna, lavar chão e roupa e louça e paredes e tudo o mais que precisasse de água para luzir apalermado quando o dia raiasse. Nada disso: o que me mandam as outras esferas é ficar quieta e esperar que a água chegue. Quando quiser chegar, porque a causa da falta é desconhecida - tem água na torneira lá de fora, o problema é aqui dentro.

Para dividir a aflição (juro que foi aflição) com outréns, agarro-me às virtualidades da vida: mando uma mensagem ao grupo internáutico que se criou para que a comunicação fluísse aprumada entre nós, vizinhos que moramos todos por perto uns dos outros. Será que às vezes quase nos convencemos de que a comunicação parece fluir melhor quando se é mais distante? Não sei - acho que no fundo estamos todos é em busca do canal de entrada.

Mas eu dizia então que lá fui dividir essa minha aflição, dessa forma assim em que não se ouvem as vozes, com vizinhos, uns menos e outros mais recentes, e a estes últimos não conheço nem me conhecem, ao vivo, como era costume antigamente. Mas lemo-nos uns aos outros, até nos arriscamos a um palpite aqui e ali, de vez em quando. Como se fôssemos velhos conhecidos e nos permitíssemos, tacitamente, essas liberdades de interferir nas palavras uns dos outros.

O fato é que a aflição foi dividida sim, e logo mil ajudas e oferecimentos pularam da tela pros meus olhos. Peço um encanador de estimação, acho que devem ser os canos entupidos com as algas que descem em catadupas da caixa d'água central (não seria a primeira vez). Respondem-me que encanador de estimação não têm, mas água, toda a que eu precisar - "venha!". E isso quando eu sequer fui ainda visitar o bebê recém nascido que mora nessa casa que me oferece sua água... Agradeço, e conto-lhes que já tomei banho, de canequinha - porque há uma torneira, lá fora, que ainda tem água, e o jeito foi lembrar de Asa Branca e lançar mão da canequinha de ágata. Depois releio e me espanto com o que eu mesma escrevo - pra que expor minha canequinha assim, tão sem pudor?!

Mas aqui ninguém se incomoda: não demora e oferecem-me a própria água, na própria mangueira - "eu passo logo ali, pela cerca - quer?". E eu declino, e olha que é tarde e a pessoa deve estar é cansada - e peço-lhe quem sabe a mangueira emprestada para o dia de amanhã. E o vizinho que trabalhou o dia inteiro e não tem nada com a falta d'água minha diz-me que me traz a mangueira agorinha mesmo, se for o caso e se for preciso. Digo que não, deixe disso, amanhã tá bom demais da conta. Aqui sozinha rodeada de vizinhos, sorrio pra tela opaca do computador e - milagre! - ela sorri-me de volta: "Ah, Ana, eu tou adorando, acho que vai sair uma crônica daí!"

E não é que saiu?!


(E pra quem está nessa virada de um dia pro outro ainda de olhos abertos, Caetano cantando Asa Branca em 1972, na França (num dos momentos mais bonitos do documentário), e "Gonzaga", o trailer do filme:

12/11/2012

Exercício: Atlas (1)

Podia ter-lhe chamado Bucéfalo, ou Rocinante. Mas nenhum desses nomes alcançava a generosidade e a nobreza ardente que caracterizava seu temperamento, acrescidas da amplidão em que mergulhavam seus olhos. Sabia que precisava oferecer-lhe mais do que a presença por entre as páginas de um livro. Gostava de olhá-lo de lado, o costado bem desenvolvido, extenso e profundo, onde quase lia inscrito o nome do mundo todo, e ainda uma montanha, e a realeza de um continente perdido, e um castigo que apenas Hércules tivesse a capacidade de aliviar.

Por isso, seu nome foi Atlas.

Se quisesse, Atlas cobriria a galope todos os mares, desertos, lava de vulcões, pedra de desfiladeiros. Veloz e cheio de força, levantava a cabeça delgada e seca, sacudia a fronte levemente abaulada e firmava a cernelha extensa e destacada, parando para olhá-la quando ela se aproximava. Cabeceava assim que a via e deixava-se montar e cavalgar, como seus ancestrais nos últimos 5000 anos. Ela amava-o por isso, tanto quanto amava sentir-se livre sobre seu dorso, confiada à sua vontade, o freio sem uso entre os dentes. Ele oferecia-lhe, nas patas sempre prontas, qualquer mundo que acenasse ao longe: levava-a até lá e, se por acaso ela caía, o que era raro, e ele precisava voltar para resgatá-la, fazia-o sem sacrifício. Ela amava-o ainda mais.

Talvez ajude saber que ela nascera na cidade de Ronda, na andaluzia espanhola. Onde os cavalos olham de cima, e são chamados de altaneiros por alguns dos habitantes da península, e as mulheres amam sem respeitar medidas. Onde as pessoas vivem acima dos limites do mundo, e atravessam uma das três pontes que se levantam a mais de noventa metros de altura, o rio Guadalevín fluindo lá embaixo, tão longe que nem murmura. Em cima dessa meseta rochosa que serve de chão à cidade de Ronda, o vento por vezes sopra forte. A crina de Atlas parece nesses dias uma franja de xale ao vento, mas o toque de seus fios é rude e hirsuto. Ela amava-o por isso também, por dar-lhe duas coisas ao mesmo tempo, e quando a conheci, em Algeciras, parada diante do lugar de onde saem os barcos em direção a África, apertava entre os dedos o que me pareceu um talismã feito de crina. Olhava a costa africana invisível ao longe. Longe demais para olhos que ainda estão na Europa.

Falou-me de Ronda, da antiga praça de touros, dos cavalos dentro da arena. Dos sacrifícios dos homens e dos animais da sua terra. Estava frio, nesse dia, e ela batia os pés no chão. Debaixo estavam as marcas dos pés de Atlas - mas não o cavalo, disse-me (e foi assim que ouvi falar nele pela primeira vez), e sim o filho de Jácome e Climene, primeiro rei da Atlântida, o preparador selvagem e bruto do planeta que seria morada da raça humana centenas de anos depois.

Conversamos durante horas, e por fim ela despediu-se, como se eu fosse um antigo e querido amigo que ela não visse há muito e soubesse não tornaria a ver tão breve. Embarcou em direção a Marrocos e eu fiquei a acenar-lhe, ambos presos desse encontro, ela a bordo e eu de repente sem guarida.

Anos mais tarde, quando a vida me ofereceu o sofrimento necessário para deixar tudo para trás, lembrei-me dela e comprei uma passagem de trem para Ronda. X horas desde Madrid. A praça de touros estava onde me contara, o Guadelvín serpenteando por baixo do Puente Nuevo, mais de 200 anos de idade pétrea. Descobri que não sabia seu nome, mas procurei por Atlas. E encontrei-o na praça, enorme escultura de um cavalo lusitano, a crina como um xale duro em atitude de ondular ao vento. Perguntei em volta da praça, nos cafés debaixo das arcadas brancas de cal, os garçons apoiados nas colunas, suas bandejas como luas em pleno dia. Riram-se e mandaram-me descansar.

- Atlas tem tantos anos - disse-me um deles abrindo-me uns dentes amarelos - que nenhum de nós o conheceu. Está morto desde a Reconquista, homem!

De nada adiantou dizer-lhe da mulher, nem nome tinha a mulher. Apenas a lembrança de seus dedos compridos no aperto da crina escura.

(continua)

06/11/2012

Exercício: "Como anzóis"

Tenho quase certeza de que, nas primeiras horas da manhã, os amantes procuram-se com o reluzir de anzóis dentro dos olhos, numa estonteante linha de leveza e velocidade visível no instante do lançar-se ao rio. Precisam saber se ainda se pertencem, ou se as sombras os transformaram em outra coisa que não seu encontro de amor.

Isaura não saberia dizer. Os olhos de Armindo ainda estavam fechados quando ela abriu os seus, e assim permaneceram por horas. Essa extensão de tempo fez com que as retinas de Isaura se acostumassem com as fímbrias de luz filtrada pela persiana, uma luz de dia ainda não nascido mas já grávido de si mesmo. Por isso, quando os de Armindo se despregaram e ainda a olharam cobertos pela poeira dos seus sonhos, repararam na mulher que o fitava, mas não lhe perceberam o despertencimento; ou, se o perceberam, o que é bem possível também, se formos observar os fatos, guardou-o por dentro das pálpebras, naquele único lugar em que os olhos escolhem não ver.  Não por mal, mas por não poder ver. Talvez não tenha havido nenhuma linha lançada, nessa manhã. E talvez o mundo se tenha quebrado em dois, a linha inexistente cindindo a realidade.

É Isaura quem me conta esse acordar. Transformou-o num símbolo que a persegue uma e outra noite, quando acorda num susto e abre os olhos e a imagem de Armindo de olhos fechados a atinge imensa. Como se ela fosse uma ilha, e ele a rodeasse por todos os lados, menos mansa e amorosamente do que gostaria, claro, mas ainda assim rodeando. Seus olhos encharcam-se enquanto me conta. Espera (seus soluços não me deixam ouvir-lhe todas as palavras) que esta saudade aguda se transforme em crônica, e logo mais em névoa, e logo mais numa substância de nada que a permita respirar sem ansiar pelo que se foi. As suas mãos desenham no espaço entre nós o vazio que quer tanto encontrar.

Mas seus olhos desmentem as suas palavras, coisa que não ouso dizer-lhe, para não afundá-la mais nesse poço que ocupa. Há uma distância que a ajudo a estabelecer desse amanhecer de noite de amor sem olhos; consigo-lhe perspectiva e duração ao longo de horas, mas a sombra aproxima-se com lentidão e arrebata-me Isaura, e eu perco-a novamente. Só consigo, antes de que nos separemos, marcar um novo encontro, para amanhã ao meio dia. Espero que ela não me falte. Espero que eu não lhe falte.

01/11/2012

Fragmento em viagem

As horas que passam sentadas dentro deste avião oferecem-me duas sensações: a de não ter onde ir (um considerável e paradoxal desconforto grau x de ansiedade) e a de ser invadida, obliterada por um turbilhão incessante de ideias, todas elas ligadas às minhas muitas pernas imóveis, apertadas neste espaço que cada vez se torna menor e as condena ao estado implacável de repouso. Essa invasão de motivos desencadeia outro tipo de ansiedade, que suplanta aquela de tipo x, um alicerce estendido de razão e força. Nesse ponto preciso,  sufocada entre ansiedades, posso ser a imagem que reflito no espelho; essa que, quase na hora do pouso, toma a rédea, o pulso, o chão.

Meus companheiros de voo, sentados a um lado e ao outro, devem entender pouco dessa que pareço, tomando e abandonando, consecutivas vezes sem conta, a caneta e o caderno pequeno que não me abandonam. Como um aluno em primeiros dias de escola, que esconde da professora o que escreve no momento em que o faz, preferiria que se ocupassem da própria vida e deixassem seus rabos de olhos presos a si mesmos. Mas a mão tomou posse do olho, e as palavras que soluçam precisam de ambos, e não ouso suspender a escrita por medo a que a ansiedade x volte zombeteira e me atormente nas mesmas perguntas, e a resposta não possa ser outra a não ser o encharcar do mundo com as mais grossas lágrimas que conheço.

Enquanto tudo isso acontece, ao mesmo tempo em tempos sobrepostos que confundem passado e presente, o olho de Ângela, a comissária de bordo, está fixo nos movimentos da pele da minha testa. Pergunto-me se terá ela a capacidade de ler a aflição alheia nas rugas da sua face. Olho-a, e ela retribui-me um sorriso, fecha de leve os olhos e nas suas pálpebras está escrito "stand still".


Imagem: Tai Ribeiro