Já se sabe: dezembro é tempo de agradecer as dádivas do ano. Uma, em especial, é preciso que eu agradeça antes de dia 11. Dia de último encontro de escrita criativa com o grupo de 25 detentos do presídio militar Romão Gomes, minha estreia no sistema penitenciário de São Paulo. Um grupo diferenciado, composto por policiais condenados ou em vias de (ou não), em condições de prisão bastante diferenciadas também, se formos pensar no sistema penitenciário brasileiro.
À primeira vista, trabalhar com policiais presos causou-me um certo desconforto. Puro preconceito, que tratei de desmontar com a eficácia que me foi possível antes do primeiro encontro. Ainda assim, o preconceito lá ficou, o que me fez ficar mais surpresa que o normal pelo fato de, nestas poucas semanas, o grupo ter deixado de ser "o grupo do presídio" e ter passado a ser o André, o Cruz, o Iranei, o Bélido, o Adilson, o Julião, o Ricardo, o Gama, o Barra, o Ronaldo, o Figueira, o Santinho, o Gomes, o Prado, o Sidney, o Fabiano, o Lima, o Ailton, o Soares, o Paulino, o Samuel e o Di Lucia. Seus rostos me acompanham por onde quer que eu vá; fazem-me olhar para o mundo com vontade de ver por quem não pode fazê-lo. Se fecho os olhos, vejo-os dentro da sala em que trabalhamos, cada um sentado no seu lugar cativo, o que me ajuda a lembrar dos nomes e associá-los à fisionomia, e esta àquilo que tenho entre mãos, que são os seus sonhos e o seu íntimo em forma de palavras.
Não sei de seus crimes, nem quero saber. O que me cabe está nestas horas em que somos todos seres humanos em busca da palavra exata, da construção precisa. Todos seres humanos lutando por entender-se, com dificuldade de perceber-se e urgência de perdoar-se. Prefiro olhá-los enquanto leem em voz alta o que escrevem, numa entonação que não consigo reproduzir, e que me emociona passadas horas. Como em todos os demais grupos de escrita, as dores aparecem por entre as linhas, as mais profundas esgueirando-se tenazes pelas letras que avançam seja qual for o assunto. Transmutam sofrimentos sem quase perceberem que o fazem, e eu tenho o privilégio de assistir e ser partícipe de tudo isso. Porque é fácil falar do quanto a palavra liberta a quem pensa ter a liberdade ao seu dispor; para quem sabe que liberdade é aquilo que corre nas ruas lá fora, libertar-se tem outro sentido.