Meu avô, além de ser médico, escrevia. Entre uma consulta e outra, entre um e outro receituário, riscava no caderno que guardava no bolso esquerdo umas quantas linhas, sobre as quais se debruçava nos longos serões perto da lareira, pleno inverno.
Muitas vezes interrompia-se o serão. Lá saía meu avô, a cavalo, precisando correr para acudir ao parto que lhe doava, no final, aqueles dois versos de inexplicável beleza com que nos brindava assim que raiava o sol, no dia seguinte. À mesa do café da manhã, já pronto para sair de novo, repetia-os uma vez e outra, parecendo saborear, junto com a bolacha e o copo de leite quente, cada som, cada palavra.
Minha avó, ao fogão, respondia pelo lado prático: “O leite, João!”, “A hora, João!” “O hospital, João!”. E ouvia sorrindo entre dentes, satisfeita de que a vida assumisse, assim sem querer, um brilho mais límpido, mais transcendente.
Meu avô escrevia crônicas também. Um dia, publicaram-lhe uma. A revista circulou pela família como relíquia, e meu avô, tão feliz, gostava de ler-se uma e outra vez.
As primeiras letras que eu quis decifrar foram as que ele escreveu. E as primeiras que eu escrevi, escritora mirim querendo ser grande, imensa, como os sons das palavras de meu avô, foi a ele a quem mostrei. Olhou-me sério, e embora me dissesse nada entender, eu entendi que tudo ele compreendera. Mas não podia dizer, porque não podia quebrar o segredo das minhas palavras. Sorri-lhe agradecida, cúmplice, e nunca mais parei de escrever.
Meu avô tinha um grande amigo, grande escritor também. Todos os anos o encontrava, porque eram da mesma turma de curso de Medicina, de um tempo que prezava a reunião anual, o confraternizar como irmãos de fato. Uma vez acompanhei meu avô. A esse escritor, vi-o ao longe – quando ele se aproximou, suspendi a respiração, apertei-lhe a mão e, surpresa, constatei que era quente, como a de um mortal comum. Fez-me sentar ao seu lado, e presenteou-me com um de seus livros – eu, pequena do tamanho de pouco mais de 10 anos, pouco entendia do que ele escrevia, numa letra miúda em página inteira, mas na prateleira por cima da minha mesa de trabalho, lá está, luzidio, o volume dos “Diários”, dia sim dia não inspirando as minhas próprias palavras.
Minha avó, enquanto isso, dava-me livros, poemas, receitas, notícias... e muitas outras coisas, mas que eu quase não via, porque não eram escritas. A sua caligrafia miúda, inclinada, desenhada, preenchia meus cadernos com exercícios de escrita que ela corrigia, depois, com paciência e respeito de quem tinha por marido um poeta. Sua caligrafia serviu-me de modelo para subverter, quando a idade o pediu, a caligráfica medida.
Há vários livros em minha estante que acusam a oferta – “Para minha neta, no seu 13o aniversário” ou “A minha neta, em mais um Natal” ou ainda “Do avô querido, ao término de mais um ano escolar”. Guardo-os como testemunhas de um outro tempo, mesmo que já não os leia porque outras leituras agora me aguardam. Mas assim que adoeço, que preciso deitar-me, que a saudade de ser pequena e cuidada sacode a minha alma, é a eles a quem recorro: sinto-lhes o cheiro, releio-lhes as rugas, volto a ser aquela que fui e que permitiu ser a que sou.
Numa dessas ocasiões de oferta, o mal-estar instalou-se entre meus avós. Na hora do almoço, chegada eu da escola, molhada em dia de chuva e longa caminhada, chegado meu avô do consultório, sacolejando em seu vermelho citroen dois cavalos, lá estava um embrulho na mesa, de laço amarelo, papel encerado de uma cor só. Meu avô de olhos brilhantes e minha avó já desconfiada.
- Sim, está bem, João, mas antes vamos sentar e almoçar.
Ninguém discutiu a norma, e lá nos sentamos os três à grande mesa órfã dos muitos filhos destes avós. Imensa nesses dias, parecia encolher-se na Páscoa, ou no aniversário festivo da minha avó, dia 15 de Agosto, dia também de tourada, para horror da pobre senhora a quem horrorizava essa trágica tradição. Mas agora lá estávamos os três – e o pacotinho embrulhado, piscando o tempo todo, entre uma garfada de purê de batatas e um pedaço de frango. O garfo interrompia o caminho do prato à boca e lá se ouvia minha avó:
- Ande, menina, coma.
Meu avô olhava de rabo de olho, e pedia um pouco mais disto, um pouco mais daquilo. Resmungava contra a dieta que ele próprio se impusera, cuidando do coração e do colesterol – ...”ah, que saudades do pernil, lembra Ofélia?” ou “Ih, que vontade de um bifinho empanado...” – e o tempo da refeição se passava sem que o frango grelhado e o purê de batatas recebessem qualquer elogio.
Ninguém tomava café, por isso foi só a pera cozida da sobremesa (“maldita dieta!”) e logo o passar rápido de mão à procura da ponta da fita para desembrulhar o que eu já sabia, claro, só podia ser um livro. Assim que o abri, vi logo que era uma edição para gente da minha idade – “O clube da Karla”, numa capa vistosa e com desenhos que, se não primavam pelo bom gosto, certamente chamavam a atenção e despertavam o interesse de uma menina de mais de 10 e menos de 13 anos.
Minha avó, assim que passou os olhos pela capa, leu o título e viu os tais desenhos, não se conteve:
- Ó João, mas... tu leste? Folheaste? É sobre...? Eu não estou a gostar disto...
- Ora, Ofélia, olha lá o título da coleção: “Mestres infanto-juvenis” – o que é que eu preciso ler?
Minha avó arregalava os olhos: - João, parece que não sabes o mundo como está, cheio de malandragem, a levar as crianças para os piores caminhos?
E meu avô encolhia os ombros e sentava-se em sua cadeira, disposto a desfrutar a sua sesta cotidiana. E eu tentando ler o livro, pôr-lhe as mãos de novo – mas quem disse que minha avó o largava?!
O telefone tocou. Minha avó, telefonista de plantão daquele que fora o primeiro médico rural a instalar-se na região, caneta a postos, disposta a anotar o endereço do chamado. O suspiro de meu avô fez-se ouvir assim que deu com os olhos no papel – lugar longe, de acesso difícil de terra e cascalho, ainda mais nesses dias de chuva e frio...
- Ofélia, eu vou a cavalo. E a menina, se quiser, que venha também.
A contra-gosto, e sem meu livro novo, lá fui, no fundo feliz porque não era sempre que podia acompanhá-lo nessas visitas.
O lombo do Trovão era tão grande que servia aos dois, avô e neta. Na minha imaginação ele corria ligeiro, saltava pontes e cercas caídas, galopava com as crinas ao vento pelos campos afora, e até mesmo uma lua cheia iluminava as curvas e escondia o depois delas, embora fosse dia claro. Mas na realidade ele pouco galopava, muito menos saltava, limitando-se a um trote muitas vezes incômodo, mas seguro, e a uma paciência sem fim para longas esperas à porta do doente.
Seu Custódio estava de cama, com um aspecto sofrido, mas nunca soube que doença o atacava. Sei que meu avô, com sua maleta na mão, entrou pela porta estreita da casinha e lá ficou duas, três, quatro horas, saindo suado e cansado e deixando seu Custódio aliviado e devedor (“Pagar, senhor Custódio? O senhor há de pagar-me lá por volta do Natal, com um de seus perus!”). O caminho de volta, mais silencioso e mais escuro, via as sombras da noite aproximarem-se. Anoitecia cedo, naquela época do ano, e o vale onde se encontrava a casinha do senhor Custódio era tão fundo, mas tão fundo, que certamente anoitecia lá antes do que em qualquer outro lugar do mundo. Cães latiam aqui e ali, e as luzes do poente iluminavam o céu. O ombro do meu avô deixava-me às vezes ver a estrada adiante, conforme o trote do Trovão permitia. Mas a paisagem a ambos os lados era suficiente para encher-me os olhos. A cada casinha, perguntava-me quem a habitaria, e muitas vezes o descobria, porque à janela lá assomava a senhora Vicenta, a senhora Elisa, a menina Maria, que o meu avô cumprimentava com um aceno de cabeça, um gesto de uma das mãos ou um “boa tarde!” às que lhe acenavam.
Meu avô era conhecido de todos – e não é força de expressão. Como único médico do lugar durante anos, e mesmo depois da chegada de outros, único que ainda fazia visitas na região rural onde só se chegava a cavalo, a qualquer hora do dia ou da noite, era querido pelos tantos que já ajudara: mulheres em trabalho de parto, homens com crise de gota, crianças com difteria.
Ao chegar a casa, entrando pelo amplo portão recém pintado de azul, encontramos minha avó à porta, feliz e sorridente. Foi conosco até à baia do Trovão, ajudou a tirar-lhe os arreios e ficou encostada às madeiras fortes da armação do estábulo enquanto meu avô passava uma rápida escova pelos flancos do animal. Água fresca à vontade e uma braçada de feno, que eu fui buscar, e lá voltamos para casa, quase já noite escura.
A porta da cozinha estava entreaberta, e um cheiro de bolo de laranja fugia pela fresta, vindo encontrar-nos a meio do caminho. Assim que chegamos e abrimos a porta, minha avó foi até à sala e de lá voltou com uma mão atrás das costas e um sorriso nos lábios. Chegou perto de mim, esfregou-me a cabeça como sempre fazia com a mão à vista e apresentou a outra, dentro dela o “Clube da Karla”. Tranquila e segura, disse-me que certamente eu ia gostar, e que era uma pena que fizessem capas tão feias para livros interessantes. Agarrei-me ao livro e a um pedaço de bolo de laranja e comecei ali mesmo a mergulhar no clube dessa menina, apaixonada como eu por livros e que, parecia, também tinha uma avó atenta e carinhosa.
Meu avô adorou a novidade do bolo, embora reclamasse que “Mas sem cobertura?! Ora mas que chatice...”. Afundada no sofá verde da sala, vi-o ir buscar o seu livro de poemas e sentar-se em sua cadeira favorita. Minha avó já tinha sua leitura entre mãos, que eu reparei ser também de poesia. O silêncio instalou-se, permeando mais um fim de dia, que se mantém intacto, e vem à tona quando o mundo vem buscar-me e não me encontra pronta.