22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

08/12/2011

Ensaio


Hoje assombra-me um coração conciso. Fino como tapete. Sintético como verbete de dicionário. Espremo-o, e o suco é pouco. Não o provo, porque desconfio que possa amargar-me o tempo. Salvam-me um lápis denso, o papel, as palavras que me rondam. Esvoaçam em volta de mim como noturnos insetos perdidos. (Nessa ordem é o seu esvoaçar: na noite, a asa, o desestino.)

Acendo-me e eles agitam-se mais; posso ver-lhes, através do opaco que se instala no ar ao redor, as asas - e a letra com que iniciam seu nome. Só assim meu coração sossega. Olha-se no espelho e diz-se: calma. Encolhe-se para caber no tamanho da minha vida e diz-se: calma. Respira e avança despreocupado da vidraça estilhaçada que lhe serve de chão e diz-se: calma. Olha-me com seu olho fixo, rebrilham fé e paciência caninas, e diz-se: calma.

Pode ser que seja o Mercúrio retrógrado. O inferno astral. A lua chegando ao seu desconfortável pleno. O dia de sol enevoado. A vida cheia de coisas que não cabem nos poucos minutos com que se faz uma hora. O desencaixe da alma. A saudade. A falta dela. Os fechamentos de um fim de ano.

Mas é só um coração conciso, apertado entre o sentido e o prendido, o vazio e o transbordante, a firmeza e a vontade gritante de se esvair como faz o sangue cáustico a inundá-lo, indiferente à vida que nada entende.

05/12/2011

Da felicidade


El hombre es una realidad utópica, que es y no es, que es lo que todavía no es y tal vez no pueda ser. Consiste en ser una realidad proyectiva, futuriza, deseante, nunca lograda, nunca conclusa, en suma, utópica. Nuestra vida consiste en el esfuerzo por lograr parcelas, islas de felicidad, anticipaciones de la felicidad plena. Y ese intento de buscar la felicidad se nutre de ilusión, la cual, es ya una forma de felicidad. (J.Marías)

Acontece-me às vezes. Ouço um recorte de conversa, um pedaço de fala, um fio dito por alguém e de repente as palavras tomam-me de assalto; destacam-se das demais, e ficam assim, flutuando à minha frente, e eu à mercê delas. Acompanham-me se saio ou entro, entranham-me a memória e tudo o que for espaço ocioso ao longo dos dias. Se deixo de pensar em outras coisas, penso nelas. Acorrem-me várias vezes por detrás do que faço, horas depois ainda estão ali, fazendo-me olhar para a vida como se acabasse de entrar nela. São, durante um tempo, o meu reduto de felicidade.


Às vezes, juntam-se a outras e transformam-se em textos mais longos. Outras, vivem sozinhas durante anos, e tenho aprendido a não as gastar com a frequência que pode gastar alguns amores, mesmo sabendo que é de ausências que morre a maioria. Troco de lentes para podê-las perceber com olhos alheios. Como dizem os espanhóis, “Nada es verdad ni mentira, todo depende del cristal com que se mira”.

Mais às vezes ainda, acontece-me de, num mesmo dia, num mesmo encontro, num mesmo espaço de poucas horas, ser agraciada com várias palavras. Assim foi, neste sábado, nos 81 anos da minha amiga Marina.

Marina ensinou-me, ao longo dos últimos 30 anos, uma porção de coisas. A como dobrar as fraldas para conseguir o máximo de absorção possível (e o mínimo de trocas que vem junto!); a curar panelas de pedra; a preparar frutas em calda; a olhar para os demais com a vista clara; a apreciar as rugas e os cabelos brancos como vincos de memória; a ser-se quem se é, desagrade ou não a quem estiver ao lado; a rir da vida quando ela segue por onde nem suspeitávamos; a curar as feridas sem as lamber; a gostar de pechinchas; a ver a vida com os olhos sadios de quem gosta dela por inteiro. Marina fez 81 anos e fez uma festa: todas as comidas, todos os filhos e todos os amigos, que se querem de todas as idades e de todas as latitudes, na variedade que Marina aprecia. Poesia, música, filosofia, ao longo de uma noite que se fez enorme como é o coração de Marina. Às 4 da manhã, ainda estava animada. Por ela, nem teríamos terminado.

No meio de tudo isso, três palavras que, ainda não sei por que, caminham dentro de mim como caminha, dispersa pelos meus poros, a circulação acelerada do sangue do meu corpo.

“Moro sem forro”, dizia-me Taibo.

E eu não consegui ouvir o resto. Ou ouvi, mas não me lembro, porque “moro sem forro” avançou para dentro de mim como uma onda imensa de águas cheias de estrelas, reluzindo como uma pérola recém vislumbrada. E tomou-me o resto da noite. Parece-me que, para escapar do “moro sem forro”, tentei prender-me a outras coisas das tantas que esse senhor de também 81 anos de idade ofereceu nessa noite: o ditado espanhol no forte sotaque galego dos que nascem em Vigo, uma frase bonita sobre as antecipações da felicidade plena que são os nossos momentos felizes. (Como o que me deixa, no dia seguinte, o coração em relevo agreste e quente, só por uma troca de olhar inesperada e súbita, que sequer pode ser, mas é.)

Mas eu já estava afogada de felicidade nesse “moro sem forro”, que sobe e desce em mim desde então. De outra forma que não a concreta, da casa de telha vã de Taibo na serra da Mantiqueira, sem ter diante de mim as montanhas que seus olhos saúdam ao acordar, também eu moro sem forro. Resisto às lajes e aos lambris que me separem das telhas. Quero ver os caibros e as ripas que sustentam o que impede que chova em mim, e não quero a superfície lisa e reta, nem a inclinação suave do cedrinho que pareça proteger-me do que vem do alto. O vento que atravessa silvando as frestas das minhas telhas mantém-me acordada e, como Taibo, gosto de acordar de manhã com a brisa que atravessa o telhado e vem curiosa bater em meu rosto. 





28/11/2011

Jornal de domingo no primeiro dia de Advento


Neste primeiro domingo de Advento, abro a Folha sem grandes esperanças. Embora seja jornal de domingo e há anos eu goste dos jornais de domingo, onde seja, na língua que seja. Mesmo que metade da sua massa seja de anúncios classificados, as análises literárias tendem a aparecer nesse dia, assim como as resenhas que muitas vezes orientam onde gasto meu dinheiro, os cronistas e articulistas que se publicam aos domingos e só aos domingos... Entre outras coisas.

Vou direto, normalmente, aos cadernos que prefiro; além da Ilustrada e da Ilustríssima, o Cotidiano.  Provavelmente porque seja aí que encontre, via de regra, o dia a dia das pessoas que se querem comuns, aqueles dramas pequenos cortando vidas simples em pedaços complexos. Abro o caderno de trás pra frente, que é como gosto de ler jornal: passo os olhos pelo percurso inverso de quem o montou, divirto-me lendo primeiro o que o editor quis que se lesse por último. Longe de exercer meu direito a ser do contra, mais perto da vontade de querer nortear-me eu mesma nas minhas escolhas.

Enfim, vou lendo. Descubro, na página 7, que esta é a última semana da coluna impressa do Gilberto Dimenstein. Ouço aqui ao lado, assim que comento o quanto gostei, que é controverso, olha lá... Mas o sujeito escreve realmente bem, num tom de despedida sincera e emocionada num texto da estatura dos seus melhores. Serendipity é o mote da sua gratidão pela Folha e pelo espaço que pôde ocupar dentro dela, o mote para a breve revisitação da própria vida: os prêmios coloca-os a um lado; a outro, o “encanto de transformar o acaso em aprendizado”, e isso é serendipity, a sua “palavra mais bonita”. Demoro a retomar a leitura e a descobrir por onde anda esse sujeito que ajudou a adolescente Esmeralda a colocar em forma de livro a sua vida dentro do crack, leitura que compartilhei com muitos alunos que ainda hoje se lembram dos seus relatos cáusticos e ásperos. Demoro a chegar ao final. E o final é na verdade o princípio, aquilo que gostaria de dizer a quem está, como Gilberto, de partida: “para viver experiências, sempre estamos nos despedindo de alguma coisa de que gostamos”.

E para garantir que eu não me esqueça de levar a mensagem adiante, antes mesmo de agarrar em um dos cadernos que povoam a minha mochila, retrocedo duas ou três páginas e quem me sorri do outro lado na negra tinta de gráfica é o poeta Sergio Vaz, em mais uma surpresa que vem me nutrir este início de Advento que apenas inicia. É com apreço, com encanto, com admiração que gosto desse homem. O seu sorriso largo, que não está na foto mas na minha memória, vai atravessar-me, tenho certeza, o dia inteiro.Um sorriso de Morte e Vida daqui a pouco, um Severino feito tarde de chuva que não veio, uma voz a levantar-se na planura da vida pra gritar tão alto, de cima da laje da sua/nossa/de todos Cooperifa, que quase consigo ouvi-lo daqui, tão longe da agreste periferia paulistana:

No caminho do crer e não crer
Vivo na dúvida do milagre
Entre as brumas da uva e do vinho
Sou eu quem destila o vinagre.

Caminho no chão em busca do céu
Num fogo e água que não tem fim

Porque
Não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.


17/11/2011

"Um pouco de possível, senão sufoco"


8h
“Aos tropeços.” Foi assim que me responderam hoje quando quis saber como ia a vida. Tinha razão o meu interlocutor: há dias que vão assim, aos tropeços, num sobressalto, numa espécie silenciosa de grito, uma inquietação cansativa que só termina quando o sono vence.  Eu tenho uma cada vez menor tolerância a dias assim, e hoje infelizmente é um deles.

9h30
Quando acontece, vou atrás de palavras. Às vezes com uma rede de borboletas, mas isso é quando as minhas mãos são mais leves que as nuvens. Hoje, caço as palavras de forma diferente, uma espécie de guerrilha em que preciso pular-lhes em cima, feito leoa disposta a alimentar os filhotes apesar do que for. Digamos que os filhotes são os meus neurônios, e a carne das palavras o sangue que os refaz.

12h 
Poucas pessoas conseguem acalmar-me. O melhor a fazer (aqui em casa sabem-no bem) é deixaram-me onde estou, sem grandes perguntas, muito menos cobranças, deixemos as dúvidas e os questionamentos para amanhã. Porque, também, assim como vem, vai. E não: não é menopausa, porque são anos e anos de tropeçadas irregulares. Algumas coisas ativam-me a inquietude, e nada têm a ver com hormônios. Não: um de meus problemas é estar cansada de esperar.

14h30
Primeiras presas do dia: palavras que derivam de pathe/sentimento, transformado pelos romanos em pati/suportar. Derivadas: paciência; paixão; empatia; padecer. Pausa e silêncio. Assuntos para outro dia. As palavras olham-me como eu a elas: “guardo-vos numa gaveta para ter-vos em outro momento”.

19h00 
Últimas presas do dia: palavras de Gilles Deleuze, que ainda é gentil o suficiente para me oferecer de bandeja as que dão título a esta crônica. Passo o dia à procura e eis que me encontro: da sua cadeira estofada, com apenas 1/3 de seus pulmões funcionando, esse homem de corpo-sem-órgãos diz-me, assim como se fosse óbvio, que “se não se pode captar a pequena marca de loucura de alguém, não se pode gostar desse alguém... [porque] é este lado que interessa (...) o ponto de demência de alguém ”. Inversão do lugar comum em que se acotovelam almas gêmeas; essas que compartilham, irmanadas; que se aproximam na obviedade do que é sempre o mesmo dia sem surpresas. Hoje, pelo menos, prefiro a outra imagem, a desconstruída, desconexa, ilógica, assustadora, impossível de ser manipulada por sua qualidade única e irrepetível. Gosto disso. Um pouco do possível, para que não sufoque. Agora que termina, o dia  melhora.

15/11/2011

De pé, com a dor na mão

(a propósito da exposição de Alberto Pinheiro no MAC de Botucatu)

Aprendi hoje que resistência à dor é a diferença entre dois valores: o limiar de dor e o limiar de tolerância. O primeiro é aquele ponto ou momento em que se reconhece como doloroso um estímulo (por exemplo, água a 44°C para a maioria dos mamíferos). O segundo, o momento em que esse estímulo alcança tal intensidade que deixa de ser aceitavelmente tolerado (no mesmo exemplo, água a 48°C). A resistência à dor é a diferença entre os dois limiares. A dor a que podemos aceitavelmente resistir. Dores de parto podem estar muito próximas a esse limiar de tolerância, e portanto ir além do que entendemos como resistência à dor. Cheguei à conclusão, depois de sete dessas experiências que Santo Agostinho dizia livrarem-nos a nós, mulheres, da impureza que está na origem do ser gerado, de que o limiar de tolerância obedece também à nossa capacidade de controle, acomodação, aceitação. Assim como obedece aos decretos silenciosos da sociedade em que nascemos e daquela que escolhemos ter como nossa, e por isso assumimos os riscos de a querer transformar. 

A exposição em cartaz no MAC de Botucatu, de Alberto Pinheiro, fala-me dessa resistência; sem palavras e sintomaticamente com muito ferro. Em cada peça, os dois limiares nus e crus: a dor que se aguenta e a que se torna insuportável. O resultado da exposição é a esperança: a resistência à dor; o tomar a transformação nas próprias mãos mesmo quando por entre elas parece escapar-se tudo.

Fiquei presa, muito tempo, diante da figura de uma arqueira, logo à entrada. Voltei mais tarde outra vez, porque a figura diz-me algo. Sim, o pássaro do pré sal também me diz, assim como o namoro sob a lua e a família da dependência química sob um chão de ilusão transparente. Mas a arqueira, a sua leveza, a sua precisão, a sua procura do alvo necessário, prendem-me o olhar. Estaco diante dela e diante da dor que a põe de pé e a faz levantar o arco: é a sua resistência que me fez voltar.

Impressionam-me, aqui e ali, as possibilidades infinitas de transformação da realidade em arte com que o Alberto vislumbra o oculto. Como desoculta e transfigura a verdade dura do ferro e encontra um mundo novo ao seu redor. Na matéria que é, pelas suas mãos, retornada ao seu caráter de espírito.

Conviver com o Alberto, seja aqui por meio das suas peças, seja ao vivo quando o encontro, provoca-me a mesma sensação: a da premência do olhar direto e em frente, solene e compassivo diante da quebra alheia, da desistência, da dor e de todos os seus limiares. Um olhar que apreende do outro mais a coragem da falta do que a falta da coragem. Porque é possível agrupar as palavras conforme queiramos, assim como é possível agrupar as nossas dores e colocá-las a serviço do outro. Ou não. O Alberto escolhe o sim. E eu escrevo para agradecer-lhe por isso.




Exposição “Metamorfose”, de Alberto Pinheiro
MAC - Museu de Arte Contemporânea Itajahy Martins - Av. D. Lúcio, 755
Terça a sexta das 9h às 17h; sábado, domingo e feriado das 12h às 17h
Até 4 de dezembro

12/11/2011

20 maneiras de responder a um email

Dia desses, uma amiga querida enfrentou um terrível problema. Enviou um email plenamente embaraçoso de tão honesto e ficou esperando resposta. Esperou. Esperou. Esperou. Seis dias, pelo que entendi, sem chance de descanso no sétimo, pelo que me parece.

Sabe um daqueles emails que doem se não são respondidos? Fiquei triste de vê-la nesse estado e pensei: "caramba, é nessas horas que se exerce a empatia".


E lá fui eu ser empática.


Tentei colocar-me no lugar dela: escrever um email que, considerando as circunstâncias, mais parecesse um quadro de Dali em forma de letras.  Mas quem nunca escreveu emails assim? Como aqueles que Pessoa, se encarnasse aqui ao meu lado, escreveria hoje achando ridículos, mesmo que perfeitamente consciente que ridículo mesmo é quem nunca os escreve...?


Coloquei-me também no lugar do destinatário, que na verdade mal conheço, e não resultou. 
Voltei à minha amiga; e decidi ajudá-la, enviando, a esse tal seu amigo, ideias de como responder, caso o problema fosse esse. Se puderem ser aproveitadas por outras pessoas enfrentando problemas semelhantes... 


Caro X (porque eu não vou entregar nem amiga nem sujeito, é claro): respostas possíveis ao email que você recebeu:


1. Querida fulana: estou sem palavras. (o mais votado do júri popular)
2. Cara fulana, por favor exclua-me dos seus contatos, por favor. (considerada a mais sincera)
3. Fulana, minha filha, vc é muito é sem noção... (enfim...)
4. Fulana, PQP, vai amarrar sua égua noutro lugar. (eu, no caso, riria...)
5. Literária, dos vizinhos ao lado:
         Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo
         Lo que me gusta de tu sexo es la boca
         Lo que me gusta de tu boca es la lengua
         Lo que me gusta de tu lengua es la palabra
(fala sério... pensou que ia ser só bobagem, né? Nada disso: Julio Cortázar!)
6. Fulana, eu gostaria muuuuuuuito de poder responder, mas não posso. (claro como a água turva)
7. Você não quer tomar um café um dia desses? eu não tou fazendo nada, e nem vc também, faz mal bater um papo assim gostoso com alguém? (pq a minha amiga é dos anos 80 e isso seria o êxtase!)
8. Fulana, meu anjo: vc já pensou em fazer terapia? Não terá errado o tanto de gotinhas do remedinho?
9. tum tum tum tum... o número para onde vc discou está temporariamente fora de serviço...(evasivo, mas bem compreensível...)
10. Eu te conheço? (estilo sacana...)
11. Tá precisando de serviço, é? (grosso)
12. Viu as manchetes da Folha hoje? (mudança de assunto)
13. Minha religião não permite respostas a perguntas desse tipo, desculpe...
14. Olha... vou te ensinar como não dançar bolero, tá?: dois pra lá... nenhum pra cá... (bem metafórico)
15. ééé... então... sabe... hmmm (aquela que não compromete)
16. Eu não entendi, vc pode refazer duas colocações? (acadêmico)
17. Ó... perdi meu óculos! (providencial)
18. Mensagem padrão: o destinatário encontra-se em férias em local desconhecido e inacessível entre o brasil e o chile. mensagem automática. por favor NÃO RESPONDA (entendeu, né?)
19.Ó xente, fiquei até vexado, bichinha...
20. Veja bem: há questões esotéricas panteosocráticas da rebimbela do segundo corpo da alma transversal que precisam ser melhor exploradas nesse âmbito complexo. 


21. Agora: boa mesmo, ainda mais chegando a esse número 21 que expressa a maioridade de um sujeito, é a pessoa responder com aquilo que está dentro de seu coração, e que pode agora ocupar o espaço em branco de uma página de email.

 
Com certeza essa seria a que a minha amiga mais gostaria de receber.

27/10/2011

Provas para pinguins

Fiquei particularmente tocada pelo pinguim do cartum ao lado. Enquanto os demais, apesar da expressão atônita, tentam entender o que lhes diz o senhor sentado atrás da mesa, o coitado nem olha pra ele, tão interessado está no seu colega paquiderme ao lado, doido pra puxar uma prosa. A cena seguinte, se houvesse, certamente incluiria um sobrolho franzido (do senhor atrás da mesa) e o pinguim remetido ao fundo da sala, perdão do campo, sozinho ele com o ar em volta. 


Ao final da 4ª classe primária, em 1974, eu estava tal qual o pinguim aí em cima. Para progredir para a classe seguinte, e ingressar no então ensino secundário, era preciso que, metaforicamente, escalasse uma árvore tendo como ferramentas duas nadadeiras, imensa curiosidade e essa vontade de mais conhecer os colegas sentados ao meu lado do que qualquer outra coisa. Já se percebe onde eu fui parar naquela sala.

Os exames de admissão em Portugal, assim como no Brasil, eram fundamentais para o caminho escolar. Se bem me lembro, esse foi o último ano em que aconteceram por lá. Constavam de uma prova de aritmética e geometria que devia ter uma duração de uns quarenta e cinco (longuíssimos) minutos, seguida de uma outra, de ditado e redação (a parte fácil). Terminada essa sessão, o júri se reunia e promulgava a sentença: "mau", "suficiente" ou "bom". "Mau" significava que podia voltar pra casa naquele instante mesmo; os “bons” e os “assim-assim” ficavam e precisavam encarar a prova oral. Suplício completo: uma banca na frente; dois professores perguntando, outros dois tomando misteriosas notas – que em pouco tempo se convertiam em mau, bom ou suficiente. Não me lembro nem das notas nem das perguntas, mas no ano seguinte estava uma classe adiante.

Tínhamos todos 9 anos de idade – um ótimo momento para descobrir que o mundo é uma coisa e você outra. Um desconforto imenso. E enormes aprendizados. Aprende-se rapidamente, por exemplo, a reconhecer que nem todos são pinguins, nem elefantes, nem peixes, nem macacos. Há enguias, há águias, há preguiças, até antas.  Já o que fazer com isso demora um pouco mais. Dependendo da espécie, dura a vida toda.

Aprende-se também a esconder a natureza pinguim: passa-se a gostar de água quente, deixa-se de comer peixe, anda-se de quatro, prefere-se viver sozinho – e depois descobre-se que não funciona. Que quando você é um pinguim, você é um pinguim. Tenta-se outra coisa: viver agora rodeada de pinguins, sem mais nada para atrapalhar. Também não: quanta monotonia, que falta dos lobos do mar, das focas, das aves que o Darwin veio estudar!

Por fim, não resta muito a não ser aceitar a própria condição e crescer como pinguim, nesse andar descompassado e esse ar de estar sempre pronto pra festa. Aquelas coisas que um olhar atento, quando existe, desmente em dois tempos. Aprende-se como vivem os pinguins adultos, sem fazer concessões que lhes limitem os movimentos das nadadeiras. Perdem-se uns pedacinhos delas pelo caminho, nas trombadas com os outros animais que frequentam as águas polares ou dando encontrões nas rochas que aparecem de repente em meio às ondas geladas.

Pinguins desacreditam desses senhores sentados atrás das mesas (também há senhoras, não é uma questão de gênero), que lhes pedem comprovação de que podem e sabem escalar árvores, quando o seu horizonte é feito de águas e não de bosques. Desacreditam que precisem provar o que não é provável (nem importante, acrescentam quando conversam ao se encontrarem numa alegre sessão de natação), e desacreditam mais ainda quando esse senhor sentado atrás da mesa se reúne com os demais da sua espécie e se perguntam uns aos outros como fazer para respeitar o tempo de cada um dessas criaturas simpáticas que lhes coube cuidar; leem e estudam e discutem e meditam sobre o assunto. E chegam à conclusão de que os tempos não são como dantes; que o mundo mudou, e com ele as suas mesas precisam mudar também, pelo menos de lugar, os seus sobrolhos precisam suavizar-se, transvestir-se de outras formas, assim como suas palavras; que a percepção do que é único e irrepetível, aquela que inclui a todos, trará a beleza exuberante das nadadeiras para junto da força possante das trombas. Assim que, porém, chegam à floresta, sentam-se à mesma mesa, olham para todos com os mesmos olhos e esquecem-se de que decidiram deixar o sobrolho de lado. A mesa, a árvore, a testa enrugada e as palavras antigas e habituadas pesam demais. E é preciso uma força sobre-humana, daquele tipo que nos faz levitar depois de um tempo, para dizer: "agora, ninguém mais fará a mesma prova".

21/10/2011

Aos amigos librianos



A cada ano, mais. Passa-se o tempo e eu descubro mais um libriano na minha vida. Estou completa e cada vez mais rodeada de librianos - talvez devesse fazer algum tipo de terapia e entender o porquê. Filhos (três!), um companheiro de vida, vizinhos, amigos, compadres, alunos, amores - até minha caixa de supermercado predileta, a Thaís, descubro ter feito aniversário dia 15 de outubro! É um desfilar e nunca mais acabar dessas criaturas que, embora por vezes indecisas, primam pela diplomacia, pelo bom gosto, por uma espécie simples de simpatia cativante, pela sensibilidade. Ainda que, às vezes, a embotem, ou guardem, ou ruminem, ou sublimem (não faço ideia do que aconteça, mas tanta sensibilidade esfuma-se de repente por entre os silêncios que se avolumam). Tanto libriano assim em volta me dá ensejo a comer bolos dos mais diversos sabores em pouco mais de 20 dias, o que se traduz em quilos na balança – coisa de libriano, já se vê, interferir assim, sem dó nem piedade, em balança alheia.

Muita coisa depende de seu ascendente: sim, não, talvez (eis que me atacam as dúvidas do meu objeto de reflexão). Porém, estes librianos à minha volta têm em comum o serem delicados, encantadores nessa capacidade incomum de seduzir quem está ao seu redor, gentis, solícitos, bonitos, sorrisos que desmontam. Os manuais de astrologia dizem que amam o belo, e eu só posso concordar, porque carregam diuturnamente seu senso estético aonde quer que vão – mas o que de mais belo existe entre tudo o que é belo que amam, é a harmonia, o equilíbrio, imagino até que a simetria. Tudo aquilo que justamente lhes custa, que lhes dobra a alma, porque antes fosse fácil assim: não é. Essa fixação na harmonia, às vezes, leva-os a se esquivarem à contenda que se anuncia, creio – e para quem quer frontalidade podem tornar-se um desespero. Mas só às vezes.

Librianos famosos: muitos. De Sting a José Mayer, passando por Will Smith, Mat Damon, Fernanda Montenegro e Lobão. Quem consegue não se deixar seduzir?! E este aqui, que me desceu da prateleira às mãos, e que teria feito anos dia 19, se vivo fosse. A libriana ao meu lado arrepia-se quando lhe digo que sim, que o respeito, leio até com prazer, mas não me excita os neurônios nem me estimula os outros centros de onde surgem a maioria dos meus prazeres. Outros librianos sim, é fato, mas não este. De qualquer forma, e porque não gosto de recuar diante da adversidade, pus-me a ler, bem entretida aliás, hoje pela manhã, “Para viver um grande amor”. (No fundo, no fundo, meu pensamento estava mais ocupado em descobrir como é que se sobrevive a um grande amor).

Pensava entretanto no tema de outra crônica, uma que me acompanha há semanas, sobre as coisas que nos perseguem por muito que fujamos delas e a maneira como o destino tem a capacidade de nos atropelar logo depois das curvas... Talvez Vinícius (de Moraes, o próprio) pudesse ajudar-me, ele que diz que o cronista está condenado a ver-se vez por outra às voltas com a escassez de motivos, e por isso “levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada”. Nada mesmo. Nada pelo menos que me ajude a avançar na direção da divagação que pretendia. Descubro ainda outra frase sobre o ofício de cronista: “ingrato, prosa fiada”. Suspiro e quase desanimo; em dias de mais ficção que crônica, prefiro aquela sensação do ficcionista de ser levada “a tapas pelas personagens e situações que, azar dele [meu, no caso], criou porque quis”.

Vinícius oferece ainda, em meio às crônicas desse livro, poemas que "visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um 'balanço' novo" (libriano, ele, será?!). Uma terceira possibilidade, essa de poeta: aquela que exclama a pulmões plenos que o "único patrão" da poesia “é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e em tranquilidade”. Luta contra si próprio para alcançar o amor e a tranquilidade?! Não posso deixar de sorrir: é claro que nasceu a meados de outubro!

Mesmo considerando as diferenças astrológicas que nos unem, vejo as três possibilidades em ação, lá e aqui. Dão-me trabalho, a mim, com o seu desdobrar cotidiano – um trabalho bom, daquele tipo que entorpece as pontas dos dedos a ponto de precisar mergulhar as mãos em água quente, mas que ao mesmo tempo espreita por trás do espelho, para flagrar o momento exato em que os olhos mudam porque se encontrou o caminho (qualquer caminho) a seguir.  Eu, que costumava dividir-me em apenas duas, o que já era tarefa suficiente, descubro-me três em mim dentro da escrita, três formas diferentes, cada uma num formulário distinto de requisição; formas que me aliciam, cada uma com suas melhores armas; que me seduzem e embromam, altas horas da madrugada. Como se afinal tudo isto valesse mesmo a pena ser escrito. Ao menos para dar os parabéns a quem faz aniversário por estes dias.

20/10/2011

Dia de co-memorar

Sabe um daqueles dias em que dá vontade de, como todos os grandes poetas deste nosso ocidente, de Homero a Milton, de Camões a Shakespeare, invocar a grande musa e por-se a trabalhar? Depositar nos seus invisíveis braços a carga que não sustentamos, eliminarmos toda preocupação com processo, resultado, sentido - e simplesmente pormo-nos a trabalhar?

Pois hoje é um desses dias. Porque nada me sai a contento. De nada consigo ou arrepender-me ou congratular-me, e esse é o estado de indefinição que, muito possivelmente, mais me inquiete, de uma forma que não domino e sequer desejo. Ouço ranger e estalar, como se casco de navio enferrujado, cada uma das minhas vértebras e costelas: desacomodam-se para dar passagem a um espaço de alma que estava ali, recolhido, ensimesmado, contente de caber no canto que lhe parecia reservado. Até descobrir que não. Que é mais. Que não se contenta com esses mililitros cedidos. Por mais que se alongue, torça, estique, corra: nada.

Por isso o lembrar-me das musas: para ver se encontro alívio. Antes delas, evoco Mnemosyne – aquela que vem em socorro para que eu não me esqueça, a deusa da memória por excelência. Porque a tendência a esquecer está impiedosamente ligada ao limite do que somos. Ao esquecer, perdemos humanidade, subtraímo-nos daquilo que viveu em nós e não lhe damos crédito. E o passado cola-se às nossas costas, agarrado às asas que não conseguimos despregar.  Mnemosyne, uma das Titânides, nasceu da união entre Urano e Gaia; com Zeus, teve as nove musas – todas elas filhas assim da memória.  A cada invocação a qualquer uma delas, de Calíope a Érato, de Euterpe a Tália, o que pedimos é a graça de sermos capazes de lembrar, de forma atenta, de tudo aquilo que vale a pena, antes de que tudo deixe de valer a pena.

Co-memorar faz com que nos lembremos juntos de que é preciso lembrar. Re-cordar, nesse sentido que essa palavra poderia ter, e fazer com que novas cordas se estabeleçam entre o que já foi e o que agora é. Partícipes de um passado feito império e que apenas o esquecimento poderá destruir, é urgente que saibamos da finitude do tempo, mais do que da sua relatividade, e que invoquemos Mnemosyne, comemorando esse passado que reúne os feixes de uma mesma trança.

11/10/2011

Do ventre, ao berço - esgotado

Surpresa das surpresas. Com vontade de dar um presente a uma amiga que engravidou, vou em busca do livro que escrevi há tempos - tempos que perfazem já mais de uma década! Sou informada pela editora de que esgotou. Ou seja: não há mais. Sensação estranha. “Do ventre ao berço - em casa” foi escrito durante a gravidez da filha que se foi. Meses de frio no porão da casa do Zé, o mar de Cascais a reboar nas paredes - usei seu computador por horas a fio, imprimi, corrigi, rasguei e voltei a escrever. Entre a sua escrita e o dia de hoje tenho na minha pele a marca luminosa de cinco partos, que vieram juntar-se aos dois que deram origem ao livro. Sete pontos de nascimento entre o céu e a terra.

Muitas histórias suculentas se criaram à sombra das páginas desse livro; muitas pessoas se agruparam em torno de uma forma de nascer que ganhou espaço e conquistou terreno – parece que o livro ajudou a pavimentar esse caminho. Alegro-me, porque a minha maior vontade, e o verdadeiro impulso desse livro, foi o desejo imenso de que outras mulheres tivessem a experiência transformadora de se darem à luz. E não de apenas dar à luz.

Pus-me a ler, agora há pouco, o tal livro, num dos exemplares que felizmente tenho em casa. Demoro a reconhecer-me – como acontece com outras coisas que escrevo, não consigo lembrar-me de quando escrevi aquilo.

Creio que o feito deve-se ao milagre da publicação. Texto publicado, texto esquecido – mudou de mãos, de dono, de olhos: não me pertence mais. Cada livro dado por pronto significa espaço livre no meu território de memória. Um alívio dos sentimentos que não entendo, dos renasceres que deixam de pertencer-me. Outro dia, nova alvorada.

Perguntam-me ao telefone se quero pensar em nova edição – ou seja: voltar ali, àquilo que foi dado como terminado, e ligar mais uma vez os motores. Ver se sobrou combustível, limpar as velas envelhecidas, encerar as superfícies, aprofundar a vazão por onde correm as coisas.

Pode ser que sim. Agora que o leio, percebo-lhe (tanto!) os buracos, as crostas, as varizes que precisam ser puncionadas para que o sangue possa correr liberto. Assim mesmo, nu e cru. Não me faria mal reviver o passado e acrescentar-lhe o que não está escrito. Avaliá-lo nesta distância que se criou entre ele e eu. O tom mudaria, acredito – ilusões que se perderam, outras que se criaram; parapeitos da vida que não frequento mais, porque meus cotovelos procuraram outros lugares de apoio.

Vou precisar invadir os orifícios da minha memória, conclamar a deusa mnemônica a que me guie. Que não me deixe perder no horizonte os aprendizados, ajudando-me a enfiá-los a todos num colar de pérolas inesgotáveis, brilhantes e leitosas como só o são aquelas que se criaram à custa do sacrifício da ostra. Sofrer, não quero. Mas também não me ausento se for imperioso.

02/10/2011

Óculos sinceros

Perguntam-me se sou sincera quando escrevo. Sorrio (e lembro-me do mestre Pessoa, certo de que o único a sentir verdadeiramente era o seu próprio mestre, Caeiro. Depois dele, ninguém há que saiba o que verdadeiramente sente.) Mas não me perguntam se sinto, e sim se sou sincera ao escrever (ainda que, convenhamos, sejam as duas perguntas a mesma coisa). Ouço, lá ao fundo da minha memória, um dos meus professores de latim, talvez do 8º ano. Exortava-nos a sermos vasos de barro perfeitos e finos – vasos sem rachaduras que a cera tentasse ocultar: vasos sine cera. Vasos sinceros. Ao longo dos anos, descobri que a explicação nada tem de muito certo, mas ainda assim gostei e mantive-a na memória.

Sinceridade tem a ver com pureza – com ser franco, leal, simples, verdadeiro, que não oculta ou usa disfarces, malícias, dissimulações. Aquele que é sincero nada teme - caminha de peito aberto, de sorriso iluminado, de alma constituída por partículas que brilham no encontro com o outro. Olha-se para dentro dele como se olha através das paredes de um vaso sem rachaduras nem embustes. É o que é.

Passei anos com uma vontade imensa de usar óculos. Lá pelo 3º ou 4º ano, decidi que uns antigos óculos, herança das caixas do sótão da minha avó, haveriam de ser-me muito necessários, e passei semanas usando-os (sem lentes), muito aliviada por finalmente poder escrever com mais propriedade, como se deve, como os escritores de verdade: de óculos. Enquanto isso, toda a minha família, novos e velhos, usava óculos; a miopia foi daqueles acidentes genéticos aos quais fui poupada, sem entender porque esse e não outro.

Escuros, tive vários. A cada um, a felicidade de olhar para eles e o desconforto de olhar através deles - ter a certeza de que meu interlocutor não me via através dos meus olhos, como é que se mantém uma conversa com alguém no escuro de umas lentes postas?!

Finalmente, passada a barreira dos 45 anos, uso óculos. Tenho a vista e outras coisas cansadas. Lembro-me de todas as armações que vi em tantas e tantas feiras de velharias por todos os lugares por onde passei. Sem atentar para o fato de que o tempo inevitavelmente agiria a meu favor, deixei-me levar pelos encolheres de ombros dos outros, acrescidos às vezes de impaciência, e não comprei qualquer armação que fosse – para que, se não as vais usar?

Não deveria ter-lhes dado ouvidos – hoje, não encontro nada que me agrade. Posso encomendá-los do outro lado do oceano, feliz da vida pela pechincha dos mercados livres que abrem as suas portas pela janela da internet, posso imaginar que sim, estes sim!, comprá-los e... em pouco tempo perdê-los.

Mas hoje a caixa de correio reservava-me uma surpresa. Há meses avisada, já tinha desistido dos óculos que meu filho me prometera, aflito com a minha fixação por armações estilo Oscar Wilde, prevenindo que eu as encontrasse e, pior, lhas mandasse arrematar em qualquer feira londrina. Abro a caixinha e, junto com as inevitáveis contas para pagar, que é só o que eu vou buscar ao correio, um pacotinho amassado, bendito plástico bolha a permitir que as coisas viajem aos trambolhões.

Reconheço a letra do remetente, abro-o exultante e paro pra olhar os pares de óculos que ele me manda. Sim, pares: um para ler, outro para andar de carro ao sol – ouviu-me certamente reclamar do efeito dos raios no asfalto.

São óculos diferentes do que eu esperava, confesso. Olho-os por um bom tempo, e, de repente, reconheço-os sem nunca os ter visto antes. Chegam-me de um tempo distante, um dos que guardei em algum lugar, um pedaço de vida que sem querer deixei para trás.

Muitas coisas se engrandeceram em mim, desde esses óculos até hoje; outras se amesquinharam; outras desapareceram, engolidas pelo passar dos anos, outras se transformaram em detalhes incômodos que preciso varrer para fora da minha alma. (Uma amiga me diz que a história que lhe conto a faz imaginar-me num caminhão fechado na próxima mudança que planejo – e não no caminhão aberto em que cheguei da última parada em que estava.  O caminho aberto pelos meus pés parece, com estes óculos, ter se espremido através dos espinhos. Algumas rosas. Muita secura. Uma paisagem lunar. Coisas como essa é urgente que reinvente.)

Este meu filho lembra-se do que eu sou quando era antes; retoma-me nas suas mãos, as mesmas que deixaram suas impressões na haste desses óculos, e conta-me do que eu também me constituo e às vezes esqueço.  Lembra-me sobretudo que eu sou muitas coisas ao mesmo tempo, e sem as ser a todas elas deixo de ser quem sou. Pode ser uma labuta, para mim e para os outros, mas doutra forma não sou – e mesmo sendo talvez menos cansativo, é mais triste, e é, sobretudo, menos sincero.

28/09/2011

Audiovisuais


Há muitos anos atrás, minha mãe chegou a casa entusiasmada com um novo recurso educacional. Creio que estávamos no segundo semestre de 1974, quando todas as novidades possíveis, especialmente as ideológicas, inundavam as ruas do país em que se fez a revolução dos cravos. A cidade em que estávamos vira nascer o primeiro faiscar do movimento, e talvez por isso o ar se respirasse mais carregado de sonhos. Minha mãe, professora da escola técnica, tornara-se responsável pelo setor de audiovisuais, decisão que deve ter-lhe custado, interessada como era por tudo quanto era assunto, da escolha das cadeiras novas das salas de aula aos “contentores” do novo processo da recolha do lixo da escola. Mas a menina dos olhos eram os audiovisuais, e sob sua responsabilidade ficaram. Professora de línguas, recém chegada de uma temporada em Londres e recém apresentada ao psicólogo americano Carl Rogers, era tanto o seu entusiasmo que meu pai suspirava a cada vez que precisava escutar, mais uma vez, sobre as incríveis possibilidades que oferecem o mundo da imagem e do som, e tudo o que existia escondido e agora se havia descoberto, e Tóino, ouve o que te digo, vamos revolucionar o ensino de uma vez por todas!

Nesse dia de maior entusiasmo, o sorriso transbordava logo à entrada de casa, interferindo numa das minhas ocupações favoritas - ouvir no rádio um daqueles programas cuja fórmula simpática reside em poder telefonar pedindo uma música e ser atendido – seu nome era “Quando o telefone toca”, e era conduzido pelo António Sérgio (aposto que haverá quem se lembre!). O motivo de tamanho entusiasmo materno era o ter descoberto uma forma fantástica de avaliar seu próprio trabalho – filmar-se a si mesma (e aos alunos) em sala de aula, podendo conferir logo depois a sua atuação, corrigindo-a a partir daí. Implacavelmente.

Tanto meu pai quanto eu achamos interessante, muito bem, e fomos jantar. Em pouco tempo chegariam os alunos particulares de alemão, minha mãe lá iria para a pequena sala onde dava essas aulas, e de manhã cedo sairíamos todos, cada qual para sua escola. Uma vida corrida, a da minha mãe, que ainda queria conferir-se a si mesma, não sei bem em que momento do dia.

Ficou-me isso na memória – assim como o dia em que descobriu que eu fumava e automaticamente, e até hoje, deixou de fumar. Alguns aprendizados fazem-se assim: cortam os males pela raiz (embora eu tenha continuado fumante por uns bons anos) e ficam para sempre impressos a fogo na memória. Não nos largam jamais e tornam-se inspirações do nosso cotidiano.

Lembrei-me disso hoje porque descobri por acaso uma palestra que dei há uns meses, gravada. Não a tinha visto, nem achei que aquele senhor atrás daquela câmera pudesse mais tarde transformar-se de fato em mim mesma diante de mim, presa num passado que provavelmente gostaria de mudar. Pus-me a assisti-la, torcendo-me a cada novo minuto, dos longos 47 que a compõem, incomodada com aquele trejeito, com a palavra mal usada, o exemplo desnecessário, o detalhe um tanto impertinente, a insistência estúpida no que já se explicou à exaustão... Nem consigo terminar de ver de uma só vez, é aflição demais. Gostaria de poder telefonar a minha mãe e perguntar-lhe como sobrevivia a ver a quantidade de bobagens que fazemos – a menos que seja eu apenas a fazê-las, mas como minha dosagem de auto-estima está hoje nos seus limites normais, não me parece que seja façanha de minha exclusividade. Se por acaso meu pai pudesse atender o telefone, haveria certamente de rir-se e abanar a cabeça de um jeito peculiar só seu, um “tal mãe, tal filha” mudo que eu veria sem olhos deste lado do Atlântico. Não posso telefonar a um, porque não deixou o número quanto partiu para a próxima vida, e não posso telefonar a outro, porque a estas horas dorme a sono solto. Restam-me o papel, a caneta e esta janela em que se transformou a internet de cada dia. Como os audiovisuais revolucionários da minha mãe, assustam-nos tantos novos recursos, os facebooks que podem devassar-nos a vida sem que queiramos que o façam;  usamo-los canhestramente algumas vezes, com sabedoria outras, numa tentativa de dominar os dragões do mundo. Como se uma nossa porção micaélica nos fosse enviada do passado para alcançarmos o futuro.

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


14/09/2011

Galinha sem dono

Aos amigos do Aldeia

“Já te disse que a galinha não é nossa”. Gracinha tinha certeza, e repetia a mesma coisa a seu marido vezes sem conta. Eu, do meu lado desta cerca que nos divide, cheguei a ter pena dele. Duvidou, duvidou, tentou ainda argumentar, mas foi tanta a insistência de sua esposa, que acabou por prender a galinha no galinheiro e ir em busca de seu dono. Sei que Gracinha e seu marido gostam muito de suas galinhas, cuidam delas como se fossem filhas, e isso não porque não as tenham (as filhas), têm duas e bem criadas, mas as galinhas preenchem os seus dias, com seu andar estremunhado e seus olhos que não piscam. Cantam pela manhã, elas e seus companheiros, e avisam solícitas quando acabam de por um ovo. Nem sempre meus vizinhos os resgatam a todos – uma das alegrias das suas vidas é sentarem-se à varanda, rindo das ninhadas que correm atrás das mães, alegres e contentes como só os pintos sabem viver a vida. Assim que soube disso arrependi-me de todos os ovos roubados à tardinha e jurei nunca mais fazer uma dessas. Galinhas deitam-se cedo, ainda por cima, contava-me Gracinha explicando seu amor pelas aves, numa dessas conversas à varanda, o que nos economiza o trabalho que dão os animais de hábitos noturnos. Por vivermos no campo, não é raro sermos acordados pelos gatos da vizinhança em namoros com a nossa gata. Galinhas não miam à noite e são bastante comportadas em seus namoros. Eu assenti de leve com a cabeça, sem grande entusiasmo, que a mim as galinhas agradam-me, mas não a ponto de conversar sobre elas.

Mas a galinha estranha desse dia roubou o sossego das galinhas e dos vizinhos, logo pela manhã. Grande e gorda, toda branca à exceção de algumas penas marrons e pretas (que até lhe conferiam uma certa graça, há que se dizer a verdade), apareceu no gramado pavoneando-se como se de um peru se tratasse. Um ar superior olhando as demais, andando em círculos em volta das outras pobres coitadas, que por natureza não são nem grandes nem gordas e tendem mais à cor da terra, sem nuances. Ainda assim, são de uma graça natural que a gorda e grande visitante não conhecia. E obviamente não reconhecia.

Chamaram-me por cima da cerca, certos de que seria minha embora eu nem galinhas tenha. Mas fui lá ajudá-los a espantarem-na. Em vão. Por volta das onze horas encontramo-la expulsando uma das galinhas poedeiras de seu ninho, ansiosa por botar seu grande e vermelho ovo, descomunalmente grande. Espiamos os três por cima da cerca do fundo, tentando perceber alguma semelhança entre a invasora e as galinhas da outra vizinha. Mas as dela são diferentes, estão todas misturadas, estragadas por aquele galo carijó que o filho da vizinha ganhou junto com a esposa, e que nunca mais deixou as outras galinhas sossegadas. Certamente não era da vizinha a grande e gorda galinha. O marido, com o livro sobre galinhas debaixo do braço, não se decidia em classificá-la: Gracinha, ela se parece com esta Plymouth  Rock ou com esta Leghorn? Gracinha encolhia os ombros e olhava a galinha com uma tristeza desanimada.

O marido lá foi à procura do dono. Deu-lhe motivo para passeio, e para bater à porta dos outros, que é coisa que gosta de fazer. Mesmo quando não tem motivo. Agora que o tem, haverá de divertir-se.

Em pouco tempo a vizinhança toda sabe da galinha. Recebe imensas visitas, este bicho. Gracinha interrompeu a preparação do almoço pelo menos quatro vezes para atender ao portão e mostrar a galinha – depois de encontrá-la, claro. Todos meneiam a cabeça, elogiam a imensa galinha e dizem que não, que sequer têm galinhas, mas tanta foi a divulgação que decidiram vir conhecê-la. A mim tudo isso me dá trabalho – a cada batida de palmas, corro à cerca para ver quem é desta vez. E volto rindo pra minha cozinha, meu almoço também a meio.

Marido volta aborrecido: sugeriram-lhe que entregasse a galinha, mas sem vida e depenada. Confuso, respondeu que não, que aqui não matamos nossas galinhas, que são como filhos e por tanto fora do cardápio. Mesmo a galinha não sendo dele, começou a sê-lo nesse momento, em que repentinamente se mostrou companheira de batatas e cenouras dentro da panela. Para tudo há limites, dizia inconformado o marido, nem se fosse minha, imagine que há pessoas querendo canja da galinha alheia.

Finalmente, veio a dona, Gracinha atendeu. Agradeceu o incômodo, o trabalho de divulgação e busca. Porém a galinha não apareceu. E nem marido. Só mais tarde, quase noitinha, encontramos os dois ao fundo do quintal. Ela, grande e gorda, pastando as graminhas ralas da sombra, ele entretido entre o olhá-la e o ler o jornal de domingo, atrasado quase uma semana.
Desenho de Martina Schreiner