31/12/2009

Solidus nescit ignavus metus

Uma das imensas vantagens de ir à manicure de vez em quando (ou ao dentista, ou ao pediatra, ou ao urologista, porque para o que me move aqui vai dar ao mesmo) é conseguir ler a revista Caras, tanto faz de qual ano ou mês. Basicamente graças à coluna de Deonísio da Silva, professor de não sei bem qual das universidades públicas do Rio de Janeiro, contemplado com o prêmio Casa de las Américas há alguns anos atrás. O resto da revista realmente faça-me o favor, mas a coluna de etimologia entretem-me, enquanto tento exemplarmente acabar com o terrível vício da onicofagia (aprendi com o Deonísio esse palavrão que impressiona bastante mais do que basicamente se saber que roem-se unhas...).

Diverti-me esta manhã tentando umas traduções para o latim de frases que me vieram à cabeça assim que acordei. Na verdade não foram frases, confesso, mas impressões fortes que quis transportar para este meio, e precisava de um motivo. Achei-o por entre divagações etimológicas: solidus nescit ignavus metus.

O latim é uma língua incrível, declinada no fundo de forma simples e lógica (bem no fundo, mas é o que consta...), conjugações e declinações que ajudam depois a estudar outras línguas, como o alemão. Tive um colega na faculdade que me dizia que o latim só sobrevivia porque era uma língua morta o que, convenhamos, é um bom paradoxo (ou contrasenso, dependendo da interpretação), exemplarmente latino. Meu primeiro professor de latim ensinou-me (e outros depois contestaram, mas ficou-me teimoso este ensinamento) que é melhor traduzir do e para o latim palavra por palavra. Ainda que demore mais tempo, porque depois é preciso voltar e ver se de fato confere e faz sentido, para quem lembra muito pouco das aulas de latim, com certeza é a melhor maneira.

Exemplifico, com a frase que dá título à crônica: solidus nescit ignavus metus.

Solidus é uma palavra forte e sonora, que tanto nos legou a solidez robusta de qualquer coisa que o seja (sólido), quanto os sentimentos que nos unem uns aos outros dessa mesma maneira (sólida e robusta), sentimento ao qual demos, ao longo dos anos, o nome de “solidariedade”. Portanto, nesse caso que nos ocupa, a tradução seria : “a solidariedade...”.

Nescit - boa palavra também, verbo que nada tem a ver com o adjetivo nescius, com o qual eu sempre me confundo e que constrói a expressão que meu avô usava para arrematar qualquer discussão que o irritasse e o levasse a marchar rumo à porta, levando-me consigo: “minha filha (isso era comigo): a palavras néscias, ouvidos surdos”. Nescit, portanto um verbo, significa basicamente “desconhecer”. Assim sendo: “a solidariedade desconhece...”.

Ignavus é a próxima palavra – tanto pode ser entendida como preguiçoso, quanto como indolente, ou fraco, ou covarde. Fácil constatar que sinônimos perfeitos são coisas inexistentes – qual dentre nós em dia de preguiça se sente covarde?!Ser ignavo fez parte da maldição que caiu sobre o tupi de Gonçalves Dias: Sempre o céu, como um teto incendido, /Creste e punja teus membros malditos /E oceano de pó denegrido /Seja a terra ao ignavo tupi!, e, como para o poeta romântico, a última opção parece a mais apropriada para este caso: “a solidariedade desconhece o covarde...”.

Metus, última palavra e motivo de toda esta arenga, entra na tal frase de maneira especial: “a solidariedade desconhece o medo covarde”. Foi nela, na solidariedade, que pensei hoje ao acordar, por ter testemunhado o poder que tem em si de espantar o medo (covarde ou não, julgue quem achar que pode), entre sólidas comidas, robustas bebidas e solidárias risadas. O medo evaporou-se ontem à noite, por entre o lume da dupla beberaxe galega que se preparou para esse fim, e por entre cada um dos passos que nos levaram a alguns esta noite pelas ruas do nosso bairro, que se ressente nos últimos meses do aparecimento desse espectro.

Paradoxalmente como a língua morta que sobrevive, esse espectro torna-nos companheiros e irmãos daqueles que o vivem dia trás dia, sem poderem escapar à fome , à guerra, ao desemprego, à discriminação, à insegurança de viver em um mundo que não se reconhece porque escapa o olhar em volta, aquele que retoma o espaço que pertence às boas energias da amizade e do companheirismo. Alerta, creio que não hesitaremos em, assim que a primeira flor for arrancada e antes que não possamos dizer mais nada, dizer não. Um não feito do replantar a mesma flor todos os dias, incansavelmente, um ao lado do outro compartilhando a terra, a enxada e a confiança em cada um dos dias do ano que começa amanhã.

Que todas as nossas e as alheias flores desabrochem e encham os caminhos das cores alegres de um feliz 2010.

27/12/2009

A propósito de um verso de um poema

Termino o ano lendo Ana Cristina César - daqueles poetas que, por incomodarem, se relem. Ana Cristina transborda desespero e angústia por tantos lados, é impossível ser-lhe indiferente. Dependendo do dia, parece que se nos cola, um grude que não desiste e se infiltra até não conseguirmos mais - e precisarmos ler. Gosto dessa impressão, mesmo podendo chamá-la de desagradável. É tão poderosa e potente que nos abalroa e subleva, e eu gosto de me sentir abalroada às vezes, sem perceber de onde mesmo foi que veio isso que me atingiu. Muita coisa provoca esse sentimento - poemas fazem-no com frequência, mas também sorrisos, especialmente aqueles que não sei se são exatamente sorrisos, se são olhares materializados em forma de lábios. Levo horas e por vezes dias para processá-los, mas aprendi ao menos a fazer tudo isso em silêncio e sozinha, dando tempo ao tempo, e duvido que alguém me perceba nesse movimento.

Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.

Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.

Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.

Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.

E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

30/11/2009

Das coisas fáceis e digressivas

Estou aqui há horas, com tanto a escrever, presa à releitura de um livro que aparentemente nada tem a ver com o que preciso fazer. Há manhãs em que se acorda com imensa facilidade para encarar o dia, e nesses dias livros assim caem-me nas mãos e há uma inércia dentro de mim que não lhes resiste. Aliás, esses dias na verdade não se encaram, desfrutam-se. Podem ser as mesmas tarefas iguais, pesadas, da véspera, quando só de nelas pensar cansava, mas de repente, mal amanhece, tudo parece mais fácil e leve, e essa sensação atravessa o dia e invade as horas da noite. Até fazer o oposto do que se devia é tarefa fácil e que não pesa na consciência.

Foi isso (que há dias que se desfrutam, não pesam), mais ou menos, que um de meus filhos me disse hoje de manhã, ao acordar, cedo como sempre, mas sem o franzir de testa que às vezes precisa para assumir mais um amanhecer. Fiquei de longe observando os planos do dia, e achei melhor começar pelas tarefas mais ativas, pela limpeza que invariavelmente depois conduz à reflexão, quem sabe se porque varrer e lavar as ruínas do passado recente, que ainda doem, abra as portas às mais distantes, que se converteram em memórias da parte boa.

Convidei esse meu filho, já que estava tão bem disposto, a que me acompanhasse, mas ele, bem disposto como estava, rapidamente conseguiu arranjar um parceiro de futebol, e essa imagino que seja a tarefa que considere prioritária. Nem sempre coincidimos, obviamente. Os demais nas suas próprias coisas, decidi não estragar o dia a ninguém - mesmo que as teias de aranha invadam o teto, hoje a minha vontade é encerar. Pode a pia ficar cheia de louça e o tanque de roupa: o chão rebrilhará a tarde inteira. Tenho motivos pra isso, descobertos numa gaveta da lavanderia.

Viajando com pouco dinheiro, muitas vezes acabo por trazer presentes e lembranças que custam pouco mas representam muito. Cera de chão, por exemplo, portuguesa e com cheiro de alfazema. Tem quem me diga que não, que não era essa a que minha avó usava, mas as minhas narinas atestam-me o contrário, e, graças a essa bisnaga lilás, estou transportada para um universo de coisas simples, que só o são porque estão longe e no passado e, como disse, delas guardo só as coisas boas, porque as doloridas já foram lavadas. Ainda por cima, coisas simples assim têm um poder mágico de se regenerarem – logo entra outro filho, cheira o ar e diz “olha, você usou a cera da casa da sua avó!”, mesmo nunca tendo posto os pés nessa casa, nem conhecido sua bisavó, nem sentido o cheiro da cera que ela efetivamente usava – mas, ainda assim, incrível, ele reconhece!

Surpreende-se porque só muito raramente o faço - por muitas bisnagas que contrabandeie no meio de camisetas e saias, um dia acabam, e eu fico a ver navios. Por isso, economizo-as e só as uso quando tenho muito bons motivos. Imagino que a minha memória das coisas boas e simples precisasse de ativação urgente, porque esse parece-me o único motivo para que hoje, especialmente, tenha eu desengavetado uma das últimas bisnagas. Essa história da memória tem me acompanhado nos últimos dias e fez-me, além de querer esfolar os joelhos no chão (porque a cera é em pasta, dura, daquelas de antigamente), resgatar um livro que li há anos - “Memória e sociedade”, chama-se, de autoria de uma professora querida, Eclea Bosi, numa daquelas preciosas e raras junções entre academia e poesia: histórias de velhos que recolheu para seu trabalho, entrelaçadas com as teorias psicológicas sobre a memória, seu campo de pesquisa e estudo.

Acho que o inferno astral está de fato me afetando, porque me pus a ler pensando nas coisas que, deste ano, ficarão gravadas na memória futura. Sei quais ficaram na memória de curto prazo, mas as interrogações me chegam quando penso no que lembrarei depois de ter esquecido.

Deve ser por isso que resgatei o livro (ou ele a mim, não fui à sua procura, ele de fato caiu-me nas mãos), já que sei que ele me dirá que ficarão impressas as coisas que se liguem ao que virá e o resignifiquem, sem obedecer a qualquer pensamento lógico do que é bom guardar ou esquecer. Por isso não valem a pena as minhas interrogações. É provável, também, que só eu lembre daquilo que lembrar, e que só eu saiba (ou nem saiba) porque um fato minúsculo me fará recordar tantos outros, detonando uma crise de lágrimas quando, velha como os velhos que Eclea entrevistou, alguém me perguntar sobre os eventos da minha própria vida, e eu me lembrar de um que ninguém perceba à primeira vista porque tão triste, porque tão evocativo, porque lembrá-lo afinal.

Fiquei tentando imaginar quem me fará chorar quando, como o rei Psâmenito chorou ao ver o mais velho de seus servos feito prisioneiro, vir passar à minha frente todas as lembranças da minha vida. Heródoto, que conta a história do rei egípcio, está presente no livro de Ecléa, e ela, que conta a história da memória, está presente nesta escrita desta madrugada, e fiquei com vontade de lhe telefonar e perguntar-lhe do que mesmo ela lembra dos momentos que eu lembro. Ecléa é um ser especial e sensível, que de vez em quando se lembra de mim; manda-me coisas as mais variadas, um dia um artigo sobre aquecimento global e transgênicos, outro uma poesia em francês, escrita à mão - no tamanho exato que cabe na parede da cozinha, de onde me acompanha dias e dias, permeando a minha lembrança de caligrafias miúdas, tintas azuis, papéis que de tão comuns reluzem naquilo que alguém já chamou de “as fímbrias da memória”.

Enquanto não me esqueço, é muito bom lembrar-me.

De companheirismo

Pela primeira vez, escrevo uma crônica encomendada. Alguém (não contarei quem) sugeriu-me dias atrás que escrevesse sobre companheirismo. Artigo em falta, disse-me no email mandado. E eu fiquei matutando um tanto, atrapalhada com o pedido, inusitado, e com a falta de inspiração, que espero se resolva no meio desta madrugada. O pedido foi pra lá de simpático, quero atendê-lo rápido!

Pensei (um tanto obviamente) em buscar as raízes primeiras da palavra e o resultado da pesquisa agradou-me apenas 50%. Cum pani foi onde consegui chegar; claro que logo me atiça a vontade de convidar alguém para comer alguma coisa, não necessariamente o pão do qual o latim fala – mas tenho um trânsito atravessando a minha carta astral, que me induz a refrear-me e a conter-me, juntando-se em coro insuportável a esse bom senso que insiste em me lembrar que não invente nenhuma novidade para este fim de semana. É melhor que procure formas feitas de ócio puro e simples, ainda que não me permitam transformar convidados em companheiros com quem divida (ou some, multiplique, potencialize, digira) o pão.

Companha (pus-me a brincar com a palavra, buscando-lhe as derivações) é um camonismo em desuso, respondendo por “tripulação de barco” ou “agremiação de pescadores”, lá pelos idos de mil quatrocentos e alguma coisa. Um pouco antes no tempo, descubro que a palavra conpaneyro tem registro escrito na Ibéria do século XIII, e que as primeiras conpanyas foram organizadas por gente em viagem precisando proteger-se dos assaltos das estradas – ou dos mares, séculos depois. Gente que se juntava por proteger-se e por viajar uns em companhia dos outros, dividindo o que levassem consigo ou encontrassem durante o tempo em que estivessem juntos.

Começo a perceber, ao de longe, de onde o motivo para o pedido pela crônica, porque essa mesma pessoa me dizia, há algum tempo, o quanto a solidão a ataca quando menos espera, o quanto sente falta da proteção do outro a seu lado, e o quanto lamenta que, ao contrário de antes, lhe falte o ânimo para ir atrás dela. Os anos vão chegando, e passando, e talvez a cada dia fique mesmo mais difícil andar em direção ao outro, ainda que pareça que o contrário fosse mais óbvio e fácil, já que em teoria quanto mais (nos) conhecemos mais fácil seria sermos pertos uns dos outros em vez de longes.

Talvez por isso esse filme especial, L’heure d’ été, tenha cuidado tanto da cena em que um encontro em volta de uma mesa, para um almoço celebração, evoca outro, em volta da mesma mesa, trazendo para perto companheiros partidos. A mesa e o pão dividido entre si, e passa-me pela cabeça que companheirismo seja o refinamento da amizade no seu mais alto grau, talvez esse pão que se divida seja o do próprio coração, talvez o alimento supremo, talvez a inspiração mais sublime, talvez o mais perfeito ato de amor, se originem do ato de ser companheiro. Companheirismo sugere proximidade, cumplicidade, a felicidade pela felicidade alheia, o acordar intranquilo à noite porque nem se sabe, mas se pressente a agonia do outro. Já não é cedo, quem as pediu só lerá estas linhas daqui a algum tempo, mas de longe e espero que não irremediavelmente tarde, quem sabe elas possam nos proteger, a ela, a mim, neste exercício feito palavras escritas, fora das barreiras do tempo, do espaço e das circunstâncias, presente concreto entrincheirado junto ao coração companheiro que quer aninhar-se no outro.

19/11/2009

Das caves

Durante boa parte da minha vida, as caves tiveram espaço e tempo para existirem e se transformarem em parte do meu sangue. Fossem as caves onde se guardava a safra de maçãs ao fim do outono, fazendo o ar rescender a algo acidamente doce que eu nunca consegui descrever nem reproduzir, fossem as caves cheias de blues, ou fados, ou vinhos - esses espaços úmidos, às vezes bolorentos, com o cheiro característico das coisas engavetadas e levemente esquecidas pelas mãos do tempo, são-me às vezes cruelmente ausentes.

Nesta semana que se acabou, sorte das sortes, fui convidada a uma cave. Daquelas coincidências que não devem receber esse nome, o convite chegou-me e eu abracei-o, tão inesperada e inexplicavelmente um quanto o outro. Já se passaram alguns dias, e não queria ir hoje deitar-me, mesmo sendo quase já tarde da noite, sem agradecê-lo, e sem registrar de maneira incompleta e provavelmente incapaz de ser transformada em palavras, os mil sentimentos que me atravessaram durante essas horas.

O mais forte de todos me faz agora fechar os olhos e visualizar diante de mim, como numa retrospectiva feita da luz dançante das velas e da cor das paredes caiadas com a cor da terra em volta, a imensa capacidade nossa de olhar para o outro sem precisar de defesas, olhar para o outro descortinando um pedaço daquilo em que podemos tornar-nos, se permitirmos tão somente que o outro nos adentre e possa transformar-nos em algo muito maior do que conseguimos ser sozinhos. Ser mais, e melhores, porque os outros estão em nós, e porque os outros permitem que estejamos neles, sem que se sintam ameaçados de que nem a nossa entrada os anule a eles, nem eles a nós mesmos.

Sermos um, e ao mesmo tempo o outro. Estarmos em nós, e ao mesmo tempo no outro. Não sei o quanto de devaneio terão estas pequenas linhas na madrugada, mas certamente irei dormir mais tranquila porque afinal não estive errada nas horas em que pensei que sim: que podemos ser um e o outro ao mesmo tempo, que podemos dar-nos e receber na mesma medida, num encontro em uma cave que nada me dizia de antemão (cega e surda que sou) que tal sentimento pudesse brotar-me, sem que eu precise perguntar-me agora de onde ou a que vem. Isso não importa, porque o que importa é o que é, e não o que eu penso do que é.

Os companheiros desta cave são todos diferentes uns dos outros. Diferem na maneira de falar, diferem na maneira de olhar, diferem na maneira de sentir e perceber. São todos improváveis encontros, distanciadas concentricidades da vida. Ainda assim, e justamente por causa da grande improbabilidade, das histórias, da vida, do mundo diferente, abrem-se-lhes os braços invisíveis aos olhos, e eu percebo-os a todos irmãos, a todos colegas de caminhada em meio às lianas da vida.

Nada de mais até aqui. Tenho a tendência a ver companheiros assim ao longo dos dias, e às vezes perco-me em tentar saber onde foi mesmo a encruzilhada em que virei para tão longe que não lhes vejo mais sequer a sombra.

Mas não nesta cave. O que aqui, à meia luz das velas e das paredes seculares que nos abrigam, se ilumina, são os dias que nos aproximam, e não os que nos afastam. Atacam-nos os nossos pontos de encontro, as nossas possibilidades de sermos plural, e somos arrastados pelos redemoinhos desse rio caudaloso do convívio sem defesas.

O milagre improvável daquilo que estava no script que perdemos, consubstancia-se imenso e terno, e uma cave, escavada com meticuloso louvor às coisas de Deus tornadas visíveis pelas mãos humanas, faz tudo isso brotar, na sua umidade e no seu bolor, que nada mais são do que aquelas curvas da nossa alma às quais fugimos por não querermos que nos digam que somos diferentes daquilo que achamos – e tão exatamente iguais àquilo que sonhamos vir a ser.

17/11/2009

Ao René, e à sua mãe, que alto esteja

Cada morte que se aproxima reinventa-me todas as mortes que persistem à minha volta. Cada um que parte, e que de alguma forma está próximo, reedita-me e aos que me deixaram sem saber o caminho de volta. Permitem que reconheça as pedras do caminho da ida, aquele mesmo que quando me chama se parece tanto com o da vinda; permitem-me sentir a humanidade latente atrás da porta de cada partida.

A mãe de meu amigo René morreu nesta semana, e eu sinto essa morte perto de mim e ao René a meu lado. Sei da força com que cuidou dela ao longo dos anos, acomodando no seu cotidiano uma doença difícil de definir e mais ainda de cuidar, com a consciência e entrega que eu mesma queria ter, ao lidar com esse processo que tenuemente nos une. Imagino-o agora a seu lado, velando-a no fim da sua luz, a caminho da seguinte. O René tem uma relação com o mundo dos espíritos que não tem rótulo nem nome, mas que o afirma e firma na terra diariamente, sem que diga nada.

O René não sabe disso (e há de saber por este meio), mas a sua significativa magreza, o seu sorriso e a sua ternura paciente serviram-me de exemplo neste pouco tempo em que nos conhecemos. A serenidade que emana, diante de um quadro que a mim me desespera ao longe, torna os meus momentos de preocupação mais leves, e por eles me decido a pegar num telefone e ir à busca de notícias do outro lado do mar.

O René não sabe disso (embora saiba muitas coisas, a maioria mais importante), mas a morte está à nossa volta o tempo todo, e permanece depois que todos se vão, e é a única que nos espreita a cada momento em que nos matamos lentamente naquilo que não nos permitimos. A morte não está no fim do caminho, mas a cada curva e a cada reta, e atinge-nos em cada discussão, em cada olhar perdido, a cada vez em que ignoramos os pequenos seres que atravessam o nosso andar. Porque a morte é a nossa própria essência, e mais estamos mortos do que vivos quando nos olharmos no espelho e vemos a transparência do espaço que existe entre nós mesmos e o reflexo da nossa pele.

Nada disso é a nossa alma, nada disso somos nós mesmos, porque estamos mais do lado de lá do que de cá, porque a cada dia nos matamos internamente para que outros possam renascer, e, para que outros possam morrer a cada dia, renascemos em nossa morte.

Um pouco como me sinto à beira da morte neste instante, reduzindo a minha noite de sono para estar mais perto de quem vela, ressuscitada nas palavras que quero deixar para este mesmo René que sei dormir de exaustão, na dúvida cruel do dever cumprido ou não, no sentimento esparso de algo ter ficado, porque sempre fica e de nada nos adianta querer atingir tudo, porque somos muito menos do que nada.

Ou um pouco como me sinto à beira da vida, quando penso em cada morte a meu lado, significando-me todos os dias, mantendo-me de pé à espera da próxima, vendo as suas costas e a sua sombra caminhando em direção ao futuro.

16/11/2009

As curvas da estrada de Pardinho

Finalmente livre da chuva ininterrupta dos últimos meses, e agraciada com uma dessas manhãs com que a aurora nos presenteia, decidi-me a desencostar a bicicleta da parede onde se apoiava há várias semanas, certa de que a sua falta poderia vir a ser um problema, no mínimo de fôlego. Pra não desanimar logo de cara, optei por ir até Pardinho pelo asfalto, evitando o estado sabe-se-lá-qual da estrada de terra. Pedalar no asfalto tem a gigante vantagem de poder aproveitar melhor a velocidade e o consequente vento no rosto, daquele tipo que varre qualquer preocupação e a deposita nas nuvens bem ao alto. Voltei sem nenhuma delas.

A estrada de Pardinho, talvez como a de Santos, tem umas curvas aerodinâmicas impossíveis de não aproveitar com deleite. Entrando nelas com a velocidade certa, a sensação é a de deslizar surfasticamente por elas, deixando pra pedalar no final e aproveitar o impulso, quase que nem sentir a subida seguinte. Não cheguei a Pardinho porque parei um milhão de vezes pelo caminho, o tanto de sol e de pequenas nuvens passeantes obrigando-me a puxar o freio pra não perder cada detalhe do passeio. Pra culminar, um grupo de paraglyder veio se avizinhando ao longe e aterrissando num pasto perto, fazendo-me perder velocidade e redobrar o cuidado que me permitisse olhar pra cima e em frente ao mesmo tempo.

Essa volta de bicicleta, que não demorou mais de hora e meia, teve a capacidade de transformar a minha semana em algo mais fácil de ser vivido, de forma consciente. Não sei que tipo de magia se estabelece no pedalar solitário. Talvez o silêncio. Talvez o outro tempo que se estabelece e não é interrompido nem mesmo com a passagem do caminhão, que buzina tentando me distrair. Talvez a cumplicidade daquele ciclista anônimo que passa, enxada amarrada ao bagageiro, expresso no “bom dia” que o balançar da cabeça denuncia. Ou talvez a vacas que para pra me ver passar, e me faz constatar pela enésima vez que não há olhar mais plácido do que o seu.

Todos percebem a diferença quando chego a casa – estava inquieta à saída, volto sorridente e com tempo para ouvir a todos, para tomar todas as xícaras de chá que tiver vontade, até para ver um dos episódios de Cheer’s que alguém aqui achou pra vender pelo preço da chuva numa locadora perdida em alguma cidade... E assistir esse episódio, no meio de uma manhã banal e tão irreal, transforma todo o meu dia: rio, porque não há como não rir com Sam Malone e seu bar, e olho em volta e sou feliz, porque tudo reluz.

06/11/2009

Listas de coisas a fazer

Comecei hoje a fazer uma lista das coisas que deixei pelo caminho ao longo deste ano, procurando imaginar (de maneira a concretizar, claro está) uma forma de encaminhá-las e dar-lhes a atenção que merecem antes que chegue dia 31 do mês que vem. Listas são coisas divertidas de fazer, até porque de repente, tornando-se enfadonhas, alegram-se magicamente com algo poético contrabandeado para dentro das suas estreitas e lógicas linhas. (Mesmo que isso não ajude grandemente a tarefa em si.) E por isso eu decidi fazer uma lista das coisas que não tenho feito, porque tenho tarefas urgentes entre mãos e quero relativizá-las, até por ter ouvido hoje que estou fazendo coisas demais... Se descubro que há várias que não estou fazendo, e quero, talvez descubra por tabela que as que tenho entre mãos não são tão grande problema assim, e me libere das primeiras mais rápido, para poder dedicar-me às demais, que passam hoje a compor a minha mais nova lista.

Enfim: a tal lista foi se encumpridando rapidamente, enquanto ao mesmo tempo me vinha à memória um amigo que me contou viver fazendo listas de coisas a fazer, cotidianamente, para ao longo do dia ir percebendo que não conseguiria chegar-lhes ao fim – invejo-lhe a tranquilidade com que se ri da situação e o sossego com que se confronta com ela, as várias vezes que o faz, que eu sei não serem poucas.

Embora não termine o dia repuxando-me os cabelos, e não tenha assim uma dificuldade homérica em deixar para amanhã o que não podia mesmo ter feito hoje (como já saberia se tivesse pensado e medido direito as horas que tenho à disposição), aborrece-me saber que algumas pessoas ainda me esperam e que outras ainda me aguardam, e tantos outros sinônimos que existem para esse mesmo sentimento verbal que traz atrás de si um “quem espera, desespera”.

Nesse meio tempo, porque fui fazendo a lista enquanto arrumava umas coisas por aqui (ordem que aliás me permita dar conta do recado deste fim de semana, que será curto para o tanto de demandas), encontrei um azulejo antigo, presente da minha avó há muitos anos, desconfiada de que algumas coisas precisassem ser-me recordadas depois que ela se fosse. Minha avó Ofélia tinha esse jeito engraçado que vira e mexe ainda me surpreende pela capacidade de ter deixado recados pela vida, vários para mim. Um desses recados é o azulejo – já o assentei em paredes de duas casas, mas quando as deixei, às paredes, trouxe-o comigo, incapaz da surdez que me faria deixá-lo por lá. Deve ter sido um presente de quando eu tinha uns 7 ou 8 anos; tipicamente azul e português, grosso como só o eram os azulejos antigos, quebrou-se já duas vezes, e das duas vezes o colei. Vou deixá-lo agora aqui, repousando diante do meu nariz, que tantas horas passa à frente desta tela. Dividirei com ele a minha atenção, poderei olhar para ele e consolar-me, outras horas alertar-me para a verdade que traz inscrita e que tantas vezes me escapa. Tê-lo assim aqui perto imagino que vá facilitar-me a lista que fiz, e que, agora reparo, é tão preenchida por conversas, encontros, convites que quis fazer e não fiz, ou fiz e não dei andamento, ou me fizeram e não correspondi, ou por aí afora uma quantidade grande de itens que poderiam estar inscritos num tópico “encontros e trocas” - e vontade de estar com os outros tão perto que eu mesma me confunda sobre quem está onde estou e quem estou onde está.

Porém, graças ao azulejo que me saudará várias vezes por dia a partir de agora, saberei que: “saber esperar é uma grande virtude”, e eu assim me lembrarei de aguardar o dia que for, do ano que for, para receber o que for para ser recebido, ou dar o que for para ser dado. Sem esquecer, é claro, de que tudo é muito, sempre, relativo.

02/11/2009

Infernos astrais

Desconfio que exista quem vá ficar com a sensação de que esta crônica foi escrita por sua causa, mas eu já vou advertindo que nem tudo parece o que é, nem tudo é o que parece, e na maioria das vezes as coisas nem são, nem parecem aquilo que achamos poderem ser. Existem coisas e pessoas inexplicáveis, às quais damos a importância que devemos ou podemos dar, enquanto que outras que achamos explicáveis nos tomam tempo demais (não deviam), e nem por isso resultam em ações que valham a pena uma explicação, ou a sua procura. Isto tudo para dizer que não: não tem endereço certo. As dores dos outros às vezes alcançam-nos, às vezes não; às vezes somos sensíveis a elas, às vezes não; e no limite o que se deve lamentar são os muros, carapaças e armaduras que erguemos à nossa volta para que os outros não nos vejam e muito menos queiram penetrar na segurança das nossas certezas. É sobre isso mesmo que me deu hoje vontade de escrever, diante do ano que vai chegando ao fim.

Quando eu era pequena, vivia considerando que várias coisas tinham vida, para poder chegar-lhes perto e abraçá-las, cheirá-las, mordê-las, acho eu que pressentindo que muito do que sou hoje estava contido naquelas coisas. Os pequenos sinais do mundo ao redor entravam-me pela pele dentro antes que eu tivesse tempo de me construir refúgios e proteções, e dizem-me as minhas tias que às vezes eu obviamente me perdia pelas coisas adentro e elas tinham trabalho para me trazer de volta. Achando que tinham de me trazer. Quantos pedaços de mim terão soterrado nesse caminho arrastado de volta que construíram, feito de fios que deveriam guiar-me pelas noites da vida?

É claro que ao longo do tempo construímos desses teares de fios rígidos que nos aprisionam em nós mesmos. Hoje, tenho um tear desses entre mãos, e confesso não saber o que fazer com ele. Fujo, e ele persegue-me; creio encontrar a maneira de soltar o tecido da sua quadratura dura, mas logo vejo que se desfaz em estado líquido, e me encharca quando mais preciso que a chuva pare; tento dialogar com ele, perguntar-lhe das mãos que o construíram, racionalizá-lo para ver se se resolve, mas ele se esconde e me atinge por trás, quando menos espero e os olhares se encontram e tudo volta ao mesmo estado latente estúpido de urdidura sem intenção.

A história do tear surgiu comigo pequena, uma das várias tentativas terapêuticas de me solidificarem num lugar visível, sem que as sombras quisessem chamar-me e eu ir ao seu encontro presa de enorme curiosidade. Gostei daquela coisa lógica e ordenada, ao mesmo tempo fluida e sob controle, a força velocidade direção e ímpeto certos no atingir o alvo, se a vida fosse fácil assim não seria necessário tecer. Do tear fui-me às palavras, e essas transformaram-se no meu tecido de vida, a cada dia o reconheço mais, com a mesma força velocidade direção e ímpeto. Cada texto que dou por terminado, mesmo que cheia da angústia de saber ter usado a palavra errada para o sentimento certo, alivia-me a alma e faz-me aquietar o que não entendo, faz-me duvidar das minhas certezas, saudável situação de levar pouco a sério aquilo que acho que sinto. Achar que se sente é um perigo, que nos invade grotesco vindo do que moldaram em nós o tempo e o mundo em volta, enchendo de nuvens aquilo que de fato se deve sentir, livres e libertos seres que no fundo somos. Achar que se sente é às vezes mais poderoso do que aquilo que de fato se sente e não se entende.

O amor incondicional, aquele que não espera nada em volta, é uma dessas coisas que não achamos que sentimos, ou nos impedimos de achar pelo tanto de vezes com que somos bombardeados com a impressão de que é preciso sermos retribuídos. Difícil digerir a vida sob o fio da espada de uma lei assim, que não preenche nem aglutina, e nos enche daquelas nuvens espessas do parágrafo anterior. O amor incondicional é uma utopia, repetem-me aqui ao lado, mas eu não sei, eu duvido. Gosto de nadar nas suas águas mesmo que ilusórias, perseguindo-o pelas corredeiras que forma, afogando-me em meio aos poços que cria ao longo do percurso, disposto a testar a minha fé na sua existência, sabendo que lhe retiro alimento mesmo que nada imagine esperar que me ofereça. O amor incondicional que não espera nada em troca é auto-alimento, percebo-lhe o espelhar de mim própria, e deste espelhar nascerem estrelas. Não tem direção nem sentido, mas é preenchido do mesmo ímpeto das minhas palavras, e a única coisa que quer é dar-se. Mas de repente sucumbo àquilo que acho que sinto, perco a noção de que não é o que sinto que me entristece e derruba, mas aquilo que não sinto, e só acho. Pelo que não sinto, não enxugo nem uma das minhas lágrimas, que podem tão bem ocupar-se do que sinto, inteira, real e de coração aberto, que é como me quero.

Final de ano é tempo de contar os passos dados, medir as costuras realizadas, perceber os encontros permitidos. Gosto deste tempo que coincide também com o fim do meu ano solar, e assim junto todos os finais num mesmo momento, dedicando-me a olhar para o tempo transcorrido como ferramenta de perceber o meu futuro próximo. O amor incondicional, que escolhi como posto de observação de mim mesma, rendeu-me momentos de felicidade absoluta ao longo destes últimos doze meses. Rendeu-me uma necessidade imperiosa de me manter em meu eixo, ainda que este tenha insistido em mudar de lugar e me feito correr atrás dele para impedir que os abismos me despedaçassem. Rendeu-me muito mais do que imaginava pudesse, e decidi manter-me firme na incondicionalidade que claro que dói e desanima. Quem disse que amar sem condições não é caminho tracejado por fios de desamparo e solidão? Esticá-los e dar-lhes os novelos que os ordenem tornou-se tarefa do meu cotidiano, dentro do cesto dos desafios que encaro, teimosa em não carregá-lo às costas, para que não me pese mais do que precisa. Às pequenas amarguras que entretanto me entristecem, uso-as como serpentinas que lanço e espalho, para que tudo se preencha de cor e movimento, laçadas luminosas no espaço que construo entre hoje e os meses que me separam da vida tal qual a sonho.

Bons últimos meses do ano a todos, na medida da felicidade construída.


01/11/2009

Meteorologia

Quem tiver consultado nos últimos dias o site do climatempo ou do INPE, não deve ter se surpreendido com estas manhãs gloriosas de sol. As previsões meteorológicas já indicavam, no meio da semana, que finalmente o verão daria as caras e a chuva uma trégua (o mesmo não se verificará, pelo que leio, a partir de terça feira...). Nem sempre as previsões coincidem, mas desta vez foram certeiras, e fizeram com que aqui em casa nos lembrássemos das histórias meteorológicas açorianas.

"Arquipélago" é uma das palavras mais bonitas que existem, e eu gosto dela talvez mais pela sua origem no meu vocabulário do que pelo seu som atual. Junção dos gregos arkai (primeiro) e pelagos (oceano), só muito tempo depois após seu aparecimento veio a significar o que hoje sabemos: agrupamento de ilhas. Quaisquer ilhas. O arquipélago-oceano-primeiro da minha vida são as ilhas dos Açores, esses diminutos mas importantíssimos pedacinhos de terra a meio do Atlântico. Cheios de açores-aves quando da sua descoberta, mantiveram-se durante décadas e décadas aglutinados em torno do anticiclone que leva seu nome e que rege boa parte da meteorologia europeia. É por ele, anticiclone, que estas ilhas eram mais conhecidas, e a distância do continente mantiveram-nas quase intactas e puras até há bem pouco tempo atrás. Não sei quem lá chega agora pela primeira vez, mas eu tive muita sorte, e vivi dessas ilhas ainda os últimos momentos de completo provincianismo aquático, bem diferente do provincianismo continental. Minha mãe nasceu numa delas, a ilha do Faial, e muitas e muitas vezes retornou espaçadamente para que eu soubesse o que era uma ilha – tarefa complexa que demandou meses e viagens de navio e avião, porque uma ilha é como um homem, e demora a deixar-se reconhecer. Não era (e nem é ainda) fácil ou barato chegar até às ilhas, mas isso não foi impedimento, até porque o estatuto de açorianos por parte de mãe sempre nos valeram descontos gigantes nas passagens aéreas.

Um dos pontos fortes das ilhas sempre foi a meteorologia. A pesquisa e o acompanhamento do tempo, especialmente da atividade vulcânica mundial, é responsável até hoje pela presença de muitos estrangeiros, assim como o foi antigamente o sistema de comunicação intercontinental, através de cabos submarinos que passavam justamente ao largo da ilha do Faial, ou o abastecimento da aviação americana durante a II Guerra e a criação consequente de uma base americana na ilha de Santa Maria. A pesca à baleia, cachalotes imensos que circundam as suas águas e que hoje já podem ser vistos de novo, graças à extinção da caça, uniu esse arquipélago ao de Cabo Verde e ambos, por décadas e décadas e décadas, à “América”. Esses fatos intercontinentais, e a relação estreita com outros povos, para cujas terras milhares de açorianos emigraram, devem ser alguns dos motivos desse provincianismo ser tão diferente de outros, e eu chamar-lhe de aquático, porque não fosse a água seria diferente.

A casa dos meus avós ficava situada (e fica, ainda lá está mesmo que em outras mãos) na base do Monte Meteorológico, bem em frente à Igreja das Angústias, onde a banda marcial e o coro faialense todos os verões ensaiavam três noites por semana, fazendo-me escapar pela janela quando me impunham horas estranhas de deitar. Mas a banda e o coro não vêm ao caso, muito menos o trompetista simpático que me deixava esgueirar-me pela porta sabendo da fuga, a questão agora é de tempo mesmo.

Este meu avô nasceu em outra ilha, a da Madeira; chegou sozinho aos Açores, embarcado e com menos de 18 anos, numa leva de migrações internas bem no começo do século XX. Pelo seu relato é óbvio o tamanho da aventura em que se metera, e das suas histórias fui formando, ao longo dos anos, uma imagem muito clara de toda a sua vida, cheia de personagens de uma vida bem vivida, recheada de situações daquelas que suspendem a respiração às netas de 5 ou 6 anos de idade. Uma delas levou-o a instalar, na parte de baixo da casa, que por lá se chama “loja”, um serviço de alimentação com entregas, inaugurando lá por 1930 o primeiro delivering português. Bom cozinheiro, levantava-se de madrugada para ir até à lota (o mercado de peixe vendido no porto, diretamente de dentro das traineiras de pesca) comprar o peixe fresco. Atuns e lagostas, e disso ainda me lembro, eram a parte barata da alimentação cotidiana. As maioneses de lagosta (reparem na minha sorte: em vez de batata, lagosta!) eram a base dos muitos piqueniques no tal Monte Meteorológico, que é para onde estou tentando ir, mas há muitas lembranças pulando diante dos meus olhos, que dificuldade manter-me ancorada ao tempo!

Foi do Monte Meteorológico que vieram as lembranças aqui em casa hoje de manhã. Pelo nome já se vê que algo de previsão de tempo acontecia por lá. Um monte cheio de moinhos, todos desativados hoje, mas a maioria então ainda entregue a seu serviço de moer trigo e sobretudo milho, aproveitando os ventos absurdos do lugar - e uma torre pequenina, parecendo um castelinho diminuto, onde um Sr. Tomás da minha infância informava, pela rádio faialense, a previsão do dia, com detalhes hilários que avisavam a minha avó e demais população feminina a que horas se devia tirar a roupa da corda, pela chuva que se avizinhava, ou a que horas fechar as portadas das janelas viradas a leste, direção do vento de 90 km por hora que se aproximava célere. Meu avô fazia-me subir ao monte de vez em quando, para perguntar ao Sr. Tomás se havia algo de mais grave, que ele estivesse ainda sem avisar pela rádio. O Sr. Tomás tinha presenciado, e sabido de antemão o primeiro, todos os ciclones e tufões que passaram pela ilha desde o seu nascimento, e por isso sabia qual era o momento certo e exato de dar o aviso de um deles, dando tempo suficiente para que todos se preparassem sem que o pânico tivesse tempo de se instalar. Dominar o tempo era a tarefa do Sr. Tomás, e talvez mais o tempo dos outros do que o tempo do tempo. Esteve presente, assim como minha mãe, à erupção do vulcão dos Capelinhos, último incidente vulcânico da ilha, década de 50, e tinha uma coleção de fotografias incrível, toda a preto e branco. O Sr. Tomás era pequeno e usava uns óculos que lembravam os do Fernando Pessoa, e falava devagar, demasiadamente devagar para o meu gosto – e por isso eu tentava escapar o quanto podia a esses pedidos do meu avô. Normalmente seguia morro acima convencida, porque o favor, se nada se avizinhasse, garantia-me no dia seguinte a ida à lota ainda antes de amanhecer, e eu acelerava nas curvas porque já ouvia os gritos dos pescadores, a sua truculência simpática e a seu modo gentil quando eu aparecia.

Manhãs gloriosas como as de hoje, naquela época e naquela ilha, levavam-me a reboque e rapidamente para as praias, todas de areia preta, cheias de águas vivas que dependiam, achava eu, da previsão do Sr.Tomás, que também sobre elas avisava, aquele tipo de água viva que rende uma boa intoxicação aos incautos teimosos que insistem em nadar. Preenchiam-me com horas e horas na vindima das uvas, ocupada em desprender os cachos sem danificar a ramada, orientada pela mão atenta, serena mas implacável do meu avô. Apeteciam-me tanto algo a mais que acabavam por me enfiar à força dentro do barco que cruza o canal e leva seus ocupantes até à ilha em frente, o Pico, a maior das altitudes portuguesas, para ir comer figos roxos colhidos ao longo das estradas feitas de pedra. E quando a tarde caía, incendiavam-me no prazer inevitável de encontrar todos os ilhéus na rua, apreciadores contumazes do céu noturno e das luzes da noite, em frente ao que hoje é a Marina e na altura era apenas o porto, um porto cheio de barcos grandes e pequenos de todas as cores, marinheiros e velejadores de todos os cantos do mundo, cada um valendo uma crônica hoje, um sonho de verão naquela época.

30/10/2009

Com dias de atraso

Portugal foi às urnas no passado dia 27 de setembro. Foi provavelmente um dia de sol, como todos aqueles em que eleições acontecem nesse meu país, dia de bandeirinhas de todas as cores, embora o laranja às vezes tenha se imposto agressivamente. Mas não desta vez.

Deve provavelmente ter sido um bom dia para apanhar um comboio e ir até à linha de Cascais; ou de subir pela rua do Alecrim acima, chegar ao Chiado e escolher o melhor lugar da Brasileira para beber uma bica; ou ainda subir ao Castelo e pedir uma imperial para amainar a sede das escadarias e ajudar a descortinar o Tejo inteiro na vista em frente. Aparentemente, a maioria dos portugueses decidiu-se por qualquer um desses programas ou ainda outro, e esqueceu-se de votar, porque - leio nos jornais - nunca os níveis de abstenção foram tão altos.

Hoje, quando abri a minha caixa de correio, descobri a possibilidade de um motivo, ainda que subjetivo. Sem querer, vou também eu fazer parte dessa triste estatística, incorporando-me sem vontade aos mais de 40% de conterrâneos meus que preferiram os últimos raios de sol por todo Portugal a exercer o direito cívico cuja conquista tantas vidas custou nos tristes dias da ditadura.

Para ser exata, poder votar, eu posso - mas não o farei. Hoje, que já é dia 7 de outubro, é que eu recebo a minha querida cédula, com partidos dos quais nunca ouvi falar entre outros em que já tive o prazer de votar. Convenhamos que é difícil encontrar algum ânimo para votar numa eleição que já teve o seu resultado mais que divulgado e confirmado. Quase que preciso olhar-me no espelho pra me certificar de não fazer parte de uma dessas piadas que circulam por aí, e mesmo à custa de poder estar a contribuir para a criação de mais uma, precisei mesmo deste desabafo, à procura de algo que me desdeprima da situação ridícula que o correio me apresentou.

Pus-me a lembrar das poucas situações de voto que pude exercer, porque raramente estive onde se conjugassem uma eleição acontecendo e eu própria presente e habilitada a exercer tal direito. Ainda assim, sempre me empolguei com todas elas, em qualquer continente ou país, buscando aquela legenda ou aquele ideário que mais se aproximasse das minhas experiências dentro de uma revolução feita de flores. Essa situação de torcida sem direito a voto nunca me chateou, nem me fez diminuir a vontade de uma bandeira ou uma estrela vermelha pendurada em algum lugar, quando foi o caso. Mas essa de ser convocada ao voto desta maneira, sinceramente e como diria meu tio Zé, ultrapassou-me as medidas.

Para me consolar, porque só está crônica talvez não o faça, decido usar os serviços telefônicos para desabafar com quem está do outro lado do Atlântico e, para minha surpresa, nem a facção mais vermelha da minha família se solidariza: “ó filha, mas tu querias votar pra quê? Então não vês que são todos iguais? Ó Manela!” - e desta feita já largou o telefone e fala com uma das minhas tias que deve estar sentada à mesa redonda da casa da minha avó ocupada com uma interminável toalha nova de crochê – “Olha a coitada da Ana ao telefone a queixar-se que só hoje é que recebeu a cédula da eleição!”. Não demora, já sei, a família inteira ri-se de mais uma das minhas coitadas ilusões, “parece até quando eras criancinha e acreditavas em tudo!”

Não sei mais para quem me virar, e então lembro-me de uma das canções que me cantavam quando eu era pequena e que se liga ao assunto; vou à procura do LP que se salvou das diversas etapas de filhos que se encantaram com eles e, além da música, cheia dos ruídos da gravação e do tempo ao passar, encontro uma dedicatória do meu pai, que foi quem me deu esse disco. E, já se vê, uma coisa leva a outra.

Junto com o envelope da cédula, recebi também a propagada eleitoral do atual partido socialista, o que me dá uma insuportável melancolia pelo outro partido socialista que se escondeu não sei bem em que localidade portuguesa, mas com certeza não se senta à mesa desse atual. Nunca fui eleitora do partido socialista, mas meu pai o foi durante anos, certo de que era certo, e embora eu me preferisse um pouco mais à esquerda, nunca me foi de todo antipático o “Bochechas”, que é como o sempre-socialista Mário Soares é chamado ainda hoje, por motivos óbvios.

Além de eleitor do PS durante anos, meu pai chegou a candidatar-se à presidência da Câmara (algo próximo ao nosso prefeito) da cidade onde nasci, o que me fez viver a situação estranha, ainda que à distância, de ver estampado em outdoors, pelos cenários da minha infância,o sorriso triunfante de meu pai, antes do triunfo propriamente dito, o que já dizia meu avô (com razão que depois se confirmou) se tratar de “péssimo agoiro”.

O seu passado de bon vivant valeu a meu pai algumas revelações inesperadas de fatos de outrora, e o acúmulo delas foi o principal responsável, disse-me ele, pela sua derrota – apertada, mas ainda assim derrota. Queixou-se, e ninguém o contradisse, de ter sido vítima da incompreensão de uma cidade provinciana, atrasada e preconceituosa, que nada entendia da necessidade da juventude se contrapor ao poder e ordem estabelecidos, trilhando seus próprios caminhos e soluções. Achei-lhe graça, lamentei internamente que essa sua consciência não tivesse atingido a seu tempo a minha própria juventude, mas lembro-me de, sensibilizada pela sua incompreensão melancólica dos rumos políticos da nação, até ter lhe dado razão.

Lá onde está deve rir-se desta minha cara apatetada de frente para esta cédula, que curiosamente tem o punho fechado do PS em primeiro lugar. Ri-se, imagino, pelo tanto que deve ter descoberto do poder de maya, a ilusão, nos passos que deu ou achou que deu, ficando tantas vezes no mesmo lugar imaginando ter avançado longas milhas. Sinto-o a meu lado, quase que lhe ouço a gargalhada, e é por isso que vim desenterrar esta crônica que já tem na verdade semanas de velha – mas é que sei que há amigos dele à espreita destas páginas, e eles merecem cada uma destas letras, e eles também como eu haverão de rir-se ao lembrar das boas histórias que o espírito inquieto e perturbador de meu pai deixou de epitáfio à sua vida. Um abraço aos amigos, seu legado mais precioso.

20/10/2009

Pessoas que parecem não valer a pena

Cansa-me, às vezes, a impressão de que há pessoas que não valem a pena. Detesto-me nesses momentos, mas aqui e ali aparecem inevitáveis. Ainda bem que são muito raros.

Fiquei hoje dando voltas em torno do porquê mesmo é que às vezes há pessoas que me parecem não valer a pena. É deprimente pensar algo assim de alguém, não gosto de mim nessas horas o tanto que devemos gostar de nós mesmos. Prefiro mil vezes inspirar-me naquele Gandhi que dizia que, se cem vezes fosse enganado por alguém, havia de confiar nele pela centésima primeira vez, sem titubear. Prefiro mil vezes acreditar nas pessoas cem e mil vezes outra vez, mesmo que me enganem e me digam quase que aos gritos que não vale a pena o sacrifício de andar a pensar nelas. Só que de vez em quando, e com algumas pessoas em particular, é difícil manter esse pensamento elevado, porque a impressão é de que não valem mesmo a pena os destroços com que nos vestem quando nos pespontam e alinhavam, em meio às dores que provoca o ser espetado por tantos alfinetes.

Às vezes, e mesmo envolta na angústia que só o sentir-me assim provoca, não valem a pena os créditos de celular que gasto para dizer um olá, porque mal me respondem e nem sequer se alegram com a lembrança. Dizer-lhes que a chuva cheirava diferente, e que por isso deu saudade daquele dia em que também chovia, não vale a pena, porque não há ouvidos escutatórios, apenas bigornas e martelos técnicos de um aparelho auditivo insensível às minhas lembranças, que seriam comuns apenas se valesse (e valessem) a pena. E detesto pensar que às vezes sinto que não valem a pena as horas que passo preocupada com a alegria ou o bem estar de quem não vale a pena, como se eu não devesse desejar alegria e bem estar a todos, independente da minha pessoa achar que valem ou deixam de valer a pena.

Mas há pessoas que são mais fortes do que o sentimento que tenho às vezes de não valerem a pena, e mesmo sabendo que talvez não a valham mesmo, lá estou eu de novo agarrada ao telefone para fazer um convite que muito provavelmente será recusado. E eu sei disso. E mesmo assim telefono.

Hoje, porém, tive uma imensa surpresa com uma dessas pessoas que às vezes acho que não valem a pena. Quando menos esperava (e não esperava não porque não quisesse, mas porque ao longo do tempo me desabituei de lhe esperar qualquer coisa), essa uma pessoa surpreendeu-me com um movimento que me permitiu pensar que vale, sim e afinal, a pena. Que vale a pena deitar-me daqui a pouco pensando como é bom ter amigos que não o parecem e de repente se revelam; como é bom manter a porta aberta à surpresa, ainda que seja muito, imensa e improvavelmente improvável; como é bom poder chegar aqui nesta folha em branco e dizer a todos, sobretudo àqueles que às vezes parecem-me não valer a pena, que eu estava enganada, porque não é possível que alguém não valha a pena. Não é possível que alguém não valha um carinho, um afago, um sorriso, um abraço, um chamego, um aperto, um doce de presente na porta de casa. E não é possível que, ao longo da minha vida, eu não me farte tanto dessa certeza, que ela deixe de importunar-me de vez em quando. Quero mais é saber visceralmente que todos valem a pena, e que essa certeza alimente a minha alma, torne-se a minha essência mais potente, a minha parte mais saudável, o meu lado mais brilhante e a minha estrela mais alta. E que nunca alguém que um dia me pareça não valer a pena me retire o poder de ver essa verdade que não quero questionar.

18/10/2009

Queimada galega

Tenho um amigo galego que um dia me deu um pote de barro, que guardo desde então (sendo esse “então” muitos e muitos anos atrás) dentro de um armário difícil de abrir de tão entulhado. Desencantei-o hoje do fundo desse armário. É um pote bastante peculiar, mais parece uma tigela com pés, e a sua lembrança fez com que me pusesse hoje à procura de elementos que me transformassem essa lembrança em algo tão palpável que quase me permitisse roçar os dedos da mão pelas sombras do passado. De quebra, ainda descobri umas informações que me ajudarão a compor esta crônica, até porque está provado que quanto mais se sabe sobre um assunto, melhor e mais facilmente se escreve sobre ele.

Esse amigo que me ofereceu o dito pote faz parte daquele grupo de amigos que já se foi para outro plano. Conhecemo-nos, eu e o César, que era na altura radialista perto da cidade espanhola de Pontevedra, num encontro de praticantes de yoga, e logo descobrimos várias afinidades, que fizeram com que nos frequentássemos assiduamente. A frequência entre as pessoas, expressão que ele usava e que me encantou pelo tanto que tem de abertura e franqueza na disposição de quem faz isso mesmo - se frequentar -, constrói sólidas paredes de amizade. Assim foi o movimento entre César e eu, durante o curto tempo em que durou. Devo-lhe, além do pote e da solidez da sua amizade, o ter podido conhecer um pouco da Galícia pelos olhos de um galego, melhor maneira de se conhecer qualquer lugar.

A peculiaridade desse pote que me trouxe o César à lembrança reside, primeiro, naquilo que o compõe – uma tigela de barro munida de três pés; várias xícaras com alça, também de barro, que se acomodam em volta desse pote, penduradas; e uma concha, feita da mesma matéria, redonda e agradável de pegar. A bebida medieval que se prepara nesse instrumento, a queimada galega, é um exorcismo das energias maléficas que nos rondam, uma espécie de parente próximo do caldeirão dos druidas celtas, sua polêmica mas talvez mais antiga inspiração. A preparação da queimada está envolta em segredos que prometi, a quem veio frequentar-me hoje à noite, não revelar neste texto que por sua vez também prometi escrever. Acho que fez parte desta nossa frequência de hoje o mantermos segredos que levem outros a, quem sabe, se frequentarem. Um dos segredos é o “conxuro” – palavras escritas em idos de mil cento e alguma coisa (data, descobri, também polêmica) que se pronunciam durante a feitura da queimada.

Foi por causa de um ritual assim que eu ganhei o pote de presente.

O César convidou-me a esse ritual por querer que eu vivenciasse o clima celta que ainda se vive nos pequenos pueblos galegos, tomados de silêncio e reverência nas noites de preparação de queimada, mesmo que hoje catedráticos tenham colossais dúvidas sobre a maioria das lendas que correm a respeito da origem da bebida. Na minha lembrança, entrelaçam-se o mar da Galícia, o dia de sol radiante, o frio da noite sem estrelas e a súbita e quase insuportável alegria e felicidade que se apossou dos participantes, libertos de si mesmos e dos caminhos estreitos. É claro que a base material com que se produz uma queimada (augardente, como dizem os galegos) deva ter ajudado, mas isso não explica tudo.

No caso deste dia de hoje, creio que deve ter sido essa frequência de quem veio frequentar a nossa casa. A construção de mais um pouco de uma parede de amizade, muito mais do que separar um cômodo de outro, permite que a casa se amplie e ganhe mais e mais espaços, para as pessoas que chegam e circulam por entre salas, quartos e cozinhas, frequentando os espaços com a leveza e o à vontade que apenas as amizades em processo permitem.

14/10/2009

A laringe da aula de anatomia

Durante o tempo em que me dispus a fazer um curso de enfermagem, uma das matérias que mais me fascinou foi anatomia. Encontrei ainda agora um dos cadernos dessa matéria, listas e listas de detalhes anatômicos, que decorei sem grande esforço porque gostei e me diverti compondo pequenos poemas, a maioria bastante tontos, com as novas palavras que fui aprendendo. Entre essas listas, descobri um texto sobre a laringe, escrito durante uma das práticas de laboratório. A laringe em questão deixou-me pasma durante dias, e não ela própria, em si, mas o fato de repentinamente ter entre as minhas mãos algo que efetivamente produziu som em alguém. Algo que emitiu pensamentos, sentimentos, sustos, alegrias, desesperos, suspiros, entregas de alguém. Achei estranho, algo difícil de apropriação como fato, e revirei a tal laringe de todos os lados, observei-a até conseguir reproduzi-la no escuro do teto do meu quarto, à noite e antes de dormir, acabada de chegar do tal laboratório. Essas aulas aconteciam às segundas feiras, fato que deixou muitas das minhas terças feiras um tanto chumbadas (como diria meu pai daqueles dias após noites de excesso etílico), porque não conseguia dormir muito, especialmente após as sessões de anatomia óssea, que me despertavam cedo e mantinham firmes os propósitos das minhas insônias. Talvez, afinal, escrevi num desses dias, “os ossos guardem a maior parte da nossa essência”.

Como tendo a escrever melhor em meio ao silêncio, gostava de ficar nesse laboratório quando já não tinha ninguém, apenas os restos da vida de alguém e eu, a sós. E como gosto de ler em voz alta, para sentir como soam os sons que juntei numa linha que normalmente segue a do sentimento que atinge o pensar, descobri que essa era a situação em que podia fazê-lo sem que me achassem talvez estranha.

Os pequenos textos que foram saindo de mim nessas ocasiões não valem, muitos deles, a tinta que os escreveu. Como raramente tenho um plano, desses que se seguem à risca para se chegar onde se quer, as palavras pedem pra sair (ou saem sem pedir) e meus portões cedem com muita facilidade. Às vezes, nem mais gonzos têm: estão caídos no chão e deixam as palavras soltas, saídas. Há quem tente soprar-lhes para que voltem, para que demorem, para que se refaçam e levem em si apenas aquilo que pode ser dito. Mas eu não costumo ajudar nenhum portão a colocar-se de volta em seu lugar, com a tranca corrida. Talvez devesse, de vez em quando. E talvez, dessa forma, esses textos produzidos, em meio a ossadas sem certidão, tivessem mais qualidade do que de fato têm.

Ainda assim, vejo bem, textos antigos ajudam a observação dos próprios caminhos, anos passados. Ajudam a discernir, por entre tantos pedidos de socorro que percebo por trás desses versos, a razão real de querer estar ali, entre restos e sobras e espantos. Essa a sensação desse texto, o da laringe, agora revisitado.

“Há uma encruzilhada que se situa na base da minha garganta e observa com seu olho mudo as pessoas e as coisas a quem quero bem. Essa encruzilhada chama-se laringe e eu tenho uma sua semelhante entre as minhas duas mãos. Essas coisas e pessoas que toda laringe observa, a umas quere-as mais perto, porque há muita poeira e ruído, às vezes luz em demasia, e não se consegue ver de que tamanho é cada uma. A outras, dá-lhes a mão ou aceita a que encontra estendida, porque é com elas que quer atravessar a porta do destino. E outras vão se aproximando (outras portas, outras pessoas, outras coisas), fazendo esse olho em minha garganta estremecer, sussurrar pedindo ajuda ao canal de ar que vive pulsando logo atrás dela, mas que nesse momento insiste em fechar-se assim que ela se contorce nesse estertor. Minha encruzilhada sabe informar-me quando alguém assim atravessa o meu caminho. Pensar a própria anatomia como se toda ela se erguesse com vida própria e fizesse o que o bom senso dita, resiste-me a ver a humanidade toda igual e amarfanhada no mesmo destino sem sentido e sem direção. Cada osso que manuseio, cada pedaço deste corpo que me entregam para que o disseque, aproxima-me da minha própria humanidade e devolve-me a certeza de que toda laringe, pulsando ou inerte, fala.”

11/10/2009

A folha da faia

Abri neste começo de domingo um livro aqui em casa, uma edição dos sonetos camonianos que meu avô me deu, esperançoso de que os lesse quando tinha qualquer coisa em torno de oito anos de idade. Não me lembro de os ter lido então, mas depois passaram anos junto à minha cama, porque não há nada melhor do que acordar no meio da noite e ter um poema ao lado para alimentar a madrugada.

Dentre as páginas, pulou-me para a mão uma folha de faia, a faia que cresce no jardim da casa dos meus avós, plantada no dia em que meu pai nasceu, testemunha de várias infâncias, dores, descobertas, segredos. As faias são árvores altas, seres consistentes e sólidos. Mesmo não sendo daquele tipo de árvores fáceis de escalar, porque não têm galhos que acolham os primeiros pés, deixam-se subir com facilidade a partir de certo ponto, quando se ultrapassou a barreira do tronco escorregadio. Ao mesmo tempo, são voláteis e imprecisas, como me atesta, de um lado, esta folha caduca que eu devo ter recolhido do chão há uns tantos anos, e que aqui está, numa construção rendilhada característica, que me enfeitiçou boa parte dos outonos. Porém, são imorredouras quase, e é a mesma folha que me atesta isso, por outro lado, porque as suas nervuras rijas e duras ainda estão aqui, carregando em si a imaginação inteira de uma árvore que só sei que está lá, ainda de pé, porque não resisti e telefonei à minha tia Luisa, e ela me garantiu que sim, que há coisas, aninhas, que nunca mudam.

Não tenho como discutir com ela. Além de minha tia, é minha madrinha, a pessoa que antes de qualquer outra me ensinou primeiro a ouvir e depois a cantar e, entre as duas coisas, a não entender como tantas horas se passavam no relógio quando a ouvia ao piano apenas o que pareciam minutos. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque entre elas emoldura o amor que sente por mim, e eu descubro, nesta folha de faia e na voz através dos fios, que são amores como esse que me transformam nessa que sou hoje, e provavelmente por isso é que o que eu quero, quase sempre, é descobrir todas as maneiras de amar o que está à minha volta. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque quer, na que eu sempre penso que pode ser a nossa última conversa, dizer-me que apesar de tudo, há aquilo que está na memória e não se apaga – a tua faia e o meu piano, aninhas, nunca mesmo que cortados deixarão de existir.

Não tenho como discutir com ela, e nem quero. Prefiro pôr-me à escuta no cais da memória, e descobrir de quantos momentos felizes e dolorosos se compõe a lembrança íntegra de alguém. Amorosa, mas severa, às vezes intransigente, outras pouco perceptiva; lembro-me de uma noite em que esta mesma tia Luísa me mandou dormir, num tom seco, minutos antes de uma sua amiga, cantora lírica, se dispor a cantar não me lembro exatamente o que. E eu ali, intacta na expectativa do ouvir, fui-me arrastada escadaria acima, através de uma casa de paredes de pedra gélidas e grossas, largura igual ao comprimento do meu braço de nove anos; depois escapei da cama e fiquei, tiritando de frio, no cimo da escada, escutando o piano da minha tia, a voz da amiga dela e o choro que não conseguia conter, morta de medo de que me descobrissem nessa contravenção. Mas logo correm à minha lembrança os domingos ensolarados em que me arrebatava da porta da igreja e me levava até Lisboa, intermináveis então 80 km, porque havia um concerto e eu tinha de ouvir. E ela tinha passado a sexta feira procurando ingressos onde já não os havia, porque aninhas, vais gostar tanto!

Esse poder de evocação das coisas é das sensações que mais nos salvam de nós mesmos e dos nossos momentos tristes, que só devem mesmo existir é para que as resgatemos a elas. Salvam-nos da impressão de que tudo está perdido, de que o que foi não é mais, de que estávamos errados na percepção do que nos amou, de que talvez seja mais sensato abandonar o que hoje não cabe no coração, talvez coisas do amor nunca mais... Evocar passados, tanto faz se longínquos ou tão próximos que ainda se sinta o calor da pele que se encostou à nossa, regenera os sentimentos e, se bem dosados, se os deixamos repousar ao nosso lado sem sequer lhes respirarmos em cima, dando graças de que existam, percebendo-lhes com exatidão o contorno, entregando-nos ao reviver que propiciam - não há nada mesmo que mude nunca: nem uma folha de faia dentro de um livro antigo, nem um telefonema a meio da madrugada do outro, nem a invasão de lembranças que nos reinventam a vontade de amarmos os outros como eles são, porque eles são e quando eles são, que é sempre.

09/10/2009

Verba volant, scripta manent

Talvez em consonância com o céu de hoje, acordei de um tom difuso e impreciso, do qual só em parte gosto e mais me esforço por suportar. Meu dia está assim mesmo, difusamente impreciso, e eu encontro-me aqui já há algumas horas à procura do ponto de interrogação, que desapareceu até mesmo do meu teclado. As perguntas que não queriam calar desapareceram nesse céu de agonia, não sei se transformadas em afirmações, se em negações, e aquilo que ontem eram as interrogações da vida está tão difuso hoje quanto o próprio tom do dia. Poderia ser bom, mas não é. Poder ao menos escrever um ponto de interrogação poderia salvar-me da indefinição instalada, porque escrever é a salvação do indefinido, que concretizo nestes símbolos aqui, aos quais falta hoje, lamentavelmente, aquele que mais interroga.

Foi daí que me veio, subitamente, a lembrança deste tão latino "verba volant, scripta manent". Imagino que dessa quase locução tenha derivado o ditado “palavras, leva-as o vento". Se as palavras faladas voam – verba volant -, as escritas ficam: scripta manent. Têm ainda, estas últimas, além do ficar, a grande vantagem de serem, ou poderem ser, recompostas. Até certo ponto (aquele em que passam a ser compartilhadas), permitem o retorno e a mudança dos sentimentos expressos, amanhã, se assim se quiser e tiver vontade. Vontade às vezes de voltar atrás no que se escreve, porque as coisas se alteram, o movimento muda, o olhar transforma-se - e aquilo que se escreveu ontem já se tingiu hoje de outros tons, que em nada se parecem com o presente. De certa forma, a palavra escrita não está no rol daquelas três coisas que se perdem na vida e nunca voltam atrás: ao contrário da palavra pronunciada, a escrita não é nem uma flecha lançada, nem uma oportunidade perdida. A não ser quando enviada, entregue, desdobrada diante de um outro alguém, o que tanto pode complicar quanto descomplicar a realidade.

As palavras escritas estendem-se aos nossos pés, se as decidimos abrir, com a sutileza de um grande e nascente amor; confortam-nos pela segunda, terceira, quarta, quinta vez, se nos esquecemos do conforto que tivemos ao escrevê-las; permitem-nos sonhos e divagações distantes daqueles que pronunciamos em alto e bom som e que prometem - mas não cumprem. Eu, pessoalmente, prefiro em muito as escritas às faladas, provavelmente porque as que escrevo permitem-me voltar ao meu próprio pensamento antes de decidir-me a dizê-lo, ao que pouco refleti e por pouco sai num ímpeto.

Gosto da fidelidade da inscrição precisa e palpável.

As palavras faladas atormentam-se, incorporam de forma excessiva a sua própria substância, alteram o tom sem que a cor de fundo de fato tenha mudado, e só tarde se percebe que pouco importa o que muitas vezes nem sequer se vê.

Por isso talvez o meu refúgio esteja forrado dessas escritas que me acompanham e rodeiam todos os dias, terapeutas silenciosos em franco desgosto quando acordo deste jeito assim, imprecisa, difusa, sem interrogações que me movimentem a alma. Hoje, o que eu queria mesmo era ter mais tempo pra ficar por aqui, às voltas com os caracteres da minha própria scripta manent. Seduz-me, creio, o poder entremear novos pensamentos aos sentimentos que vou acumulando na folha de papel, talvez um pequeno advérbio que provoque uma mudança na percepção do todo, e o permita dinâmica tal qual é, atingindo quem lê no centro do olho.

O peso do dia que acabou de começar diminuiria, se eu pudesse, de intensidade. Pelo peso do dia e por lhe desejar o fim, volto ao que escrevem outros, saboreando numa terceira ou quarta vez com mais calma o que li a correr, saltando de uma linha a outra com o assombro que provocam as palavras que se percebem pensadas para os próprios olhos, para cativarem a própria atenção, para acenderem no outro, que nesse momento sou eu, algo que ainda não se conhecia aceso antes dessas palavras serem entregues.

É por isso, penso, que vale tanto a pena escrever, porque o mundo se esclarece e nos esclarece, e é por isso que é tão valioso, e ao mesmo tempo tão perturbador, tão inteiro, tão arriscado e tão por tudo isso perfeito.

Perfeito, pela releitura que descobre o quanto permanecem os sentimentos que se desocupam de mim, porque lhes ofereço o espaço de uma lauda. Perfeito, porque assim todos eles sentimentos se distanciam e se guardam a si próprios por enquanto numa gaveta, enquanto não se tem a certeza de poder pronunciar por escrito um pedaço que borbulha ao alcance da mão, como o próprio sangue. E ao mesmo tempo perfeito, porque exatamente o oposto de tudo isso: porque me retoma e reaquece, naquilo que me engana e pode afinal já estar morto, mas que vive para sempre nesta memória inscrita, e pode através dela, como o cheiro das madeleines de Proust, inscrever-se de novo na retina do presente.

Se o que se escreve se constrói como um não, deixa de fazer sofrer assim que escrito; se feito de sim, lê-se através dos diminutos e em metades sorrisos que permearam as palavras enquanto se escreviam, sob este céu de hoje que, só por causa destas quase duas páginas, se transformou e é agora mais luminoso e mais leve. E, com ele, todas as verba volant, e todas as scripta manent.

01/10/2009

Ao amigo Peter

Conta-se em Timor que, antes de tudo ser o que é, nada nascia, nem crescia, nem falava, nem morria. As pessoas não envelheciam, tampouco eram geradas, o tempo não existia e, se bem me lembro, nem o espaço era algo muito concreto e palpável (talvez, justamente, porque esse seu primo Tempo não existisse). As coisas mudaram, e passaram a ser como são, no momento em que alguém, ao olhar para o céu e descobrir a lua que, semana trás semana, mudava de figura, espantou-se e, em seu espanto, esboçou uma pergunta. A pergunta lançou-nos neste caminho de morte e vida que nos acompanha desde então, e desde esse dia as crianças passaram a nascer e toda a vida a seguir o curso que lhe conhecemos hoje.

Hoje de manhã, enquanto os jovens do Ensino Médio da Aitiara cantavam, despedindo-nos a todos do nosso vizinho e amigo Peter Dauch, não pude evitar fazer-me perguntas, como essas que conseguiram tirar o mundo da sua imobilidade, uma imobilidade que repentinamente se confrontou com o tempo invadindo as nossas vidas e o espaço avolumando-se entre os que ficam e os que vão. Perguntava-me como é possível que de tão alegres possamos estar tristes, e, de tão tristes, alegres. Como é possível que as lágrimas que despedem o nosso amigo Peter sejam na realidade uma alegria por ter convivido com ele, por ter-nos sido possível observar-lhe a dedicação tranquila e amistosa a causas que não precisaria abraçar, mas abraçava, por ter-nos sido possível apreciar-lhe o gosto pelo convívio semanal com os amigos em uma stammtisch que a partir de hoje com certeza lhe sentirá a falta física. As nossas lágrimas choram-nos a nós mesmos e às saudades que pressentimos. Um pedacinho de mim chora também pelo leitor atento que perco, pela falta que me farão os comentários sinceros e amigos que teceu a alguns destes textos que envio, e que não sei se alguma vez agradeci como vejo agora que deveria ter feito.

Com tudo isto, veio-me uma vontade grande celebrar essa nossa possibilidade de estarmos juntos, essa felicidade que às vezes se traduz em lágrimas e da qual tivemos, neste tempo de convivência com o Peter, exemplos bastantes da sua necessidade e importância. Posso imaginar que nosso amigo gostasse de nos ver reunidos em sua homenagem, em volta de uma mesa, comendo alguma coisa enquanto nos lembramos dele e o carregamos para a eternidade nos nossos pensamentos. As portas para esse encontro estão abertas e qualquer alimento pode ser dividido entre todos, como uma amizade bem cimentada, que podemos compartilhar porque sabemos como multiplicá-la.

30/09/2009

Das estrelas

Às vezes é preciso muito pouco para que um encontro verdadeiro aconteça e, mesmo sabendo disso, decidimos andar em sentido contrário, fazendo com que aquilo que vinha encantadoramente em nossa direção desapareça, porque lhe viramos as costas. Até percebemos sem dificuldade onde seria necessário pisar, o que dizer, por onde ir, mas as situações adquirem vida própria e as coisas encontram caminhos que nos levam muito mais para longe do que para perto. Em raros momentos, porém, a vida parece entrar no foco de um prisma justamente no momento em que a luz do sol incide sobre ele, e aí as coisas mudam de brilho, enchem-se de novidades e bailam diante dos olhos. É ótimo quando isso acontece.

Numa destas últimas semanas encontrei uma pessoa com um mapa astral tão próximo do meu que, como diria minha avó Gloria, “até me fez impressão”. Claro que por causa disso passei a prestar-lhe o triplo da atenção, desconfio que o mesmo aconteceu do lado de lá, basicamente porque, claro, um ficou tão surpreso quanto o outro pela quantidade de coincidências zodiacais, que só vieram à tona porque o assunto era esse, as estrelas. A partir daí, e pena que o tempo foi curto, faltou pouco para que nos sentássemos a conferir oposições, trânsitos e quadraturas, e foi uma pena também que ambos não estivéssemos com os mapas na mão para maior fidedignidade.

Dirigindo de volta para casa, fiquei matutando na quantidade de seres que devem andar por aí à procura uns dos outros, confundidos e aturdidos pelas aparências estúpidas que herdamos ou fabricamos, e que nos cerceiam a liberdade do ir e vir de uns aos outros. Que mais não fosse por isso, todas as artes do espelhar a própria alma, da astrologia ao tarot, já valeriam a pena, por permitir-nos olhar para nós mesmos e para os outros com a facilitação de um elemento externo, que de certa forma nos protege do olhar invasivo do mundo – afinal, o olhar vai na direção do objeto, e não do sujeito que muitas vezes resulta que somos nós mesmos. Pode até ser que se chegue nele, sujeito, mas é por percursos transversos, enveredando por aqueles desvios que nos penetram apenas quando no fundo sutilmente os convidamos.

O volante é normalmente um bom conselheiro e um perfeito inspirador, facilitador do processo de recuperação da memória e do tecer do contato entre experiências distintas. Cheguei ao destino, depois desse roteiro, contente pela volta, e com uma quantidade razoável de novos elementos na bagagem, daquele tipo que se insinua interligado. Cheguei tarde e fui-me deitar, conscientemente bem feliz pela possibilidade de ter visto realizar-se mais uma vez um encontro mal divisado, surpreendente precisamente por isso – porque ninguém estava à sua espera e ninguém lhe barrou passagem. Se desse momento surgirão outros ou não, pouco importa, até porque os milagres não se perpetuam no tempo, mas na memória.