22/07/2016

Con-cordar


Desde o dia em que te vi, Juraci
nunca mais tive alegria
Meu coração ficou daquele jeito
Dando pinote dentro do meu peito


Na época em que se falava latim, cor, o coração, era a sede do conhecimento humano. Tudo ali se resolvia e se firmava. Se batia no coração, era porque valia a pena. Se passava por dentro dele, era porque valia a pena. E tudo o que valia a pena se guardava do lado esquerdo do peito. As evidências são muitas, e as que vou apresentar são todas etimológicas (porque, veja: se a Palavra é o dom mais humano, muito divina deve ser toda significação que uma palavra possa ter tido no início dos tempos e em todo o seu transcorrer).

De cor (que era, portanto, coração) surgiu coraticum, coragem, a qualidade que mora no coração. E surgiu também cordatus, que é aquele que tem prudência. E ainda concordare, que são dois corações que estão juntos. Con-cordam.

Poderia você pensar que concordar fosse duas pessoas dizerem sim (ou não, se o caso for de discórdia) para uma coisa. Terem a mesma opinião. A mesma percepção. Concordarem em ir pela esquerda, ou pela direita, ou de mãos dadas, ou fingindo nem se conhecerem. Pois nada disso. Concordar é mais sério e mais profundo. Não vem da razão nem do pensamento. Vem do interior dessa cavidade maltratada que é esse nosso músculo único, de aspecto único, de capacidades únicas. Se o seu, aí dentro do peito dando pinote, está junto do coração da pessoa ao seu lado - é porque bate em sintonia com ele, é porque se reconhece na pele do outro rosto, é porque sem nenhum motivo explicável você sabe que aquilo que o o outro ao seu lado disser, você dirá também. Aquilo que o outro ao seu lado sentir, você sentirá também. Sem pensar nem estabelecer nada. E aí você con-corda com a pessoa ao seu lado, e ela vice-versa, os dois meio abobados pela vida de repente parecer tão perfeita.

Concordar não é concordar (sic) sobre coisas, ou situações, ou opiniões, ou roteiros, ou planos. Concordar é saber que seu coração está junto do coração do outro, e aquilo que você fizer ao coração do outro, fará também a seu próprio coração, porque eles estão juntos, e juntos semearão os campos do futuro. Quando seguem cada um para seu lado, não é que tenham tido ideias contrárias. É que seus corações avançaram por caminhos diferentes, e por isso dis-cordaram.

Agora você pensou poxa que pena? Pois não precisa. Porque nem todos os corações concordam, e aqueles que se "vestem de concórdia" estão apenas vestidos - nada são. Faltou-lhes abrir a porta do sangue, permitir-se todos os ventríloquos. Dessa forma, o melhor mesmo é que discordem. O quanto antes, para que os caminhos fiquem abertos e claros, ainda que distintos.

30/05/2016

Like Underwood

Cheguei atrasada a House of Cards. Não sou propriamente uma fanática por séries, mas de vez em quando calha de atravessar-me o caminho uma delas. Primeiro, foi Gregory House. E agora são as artimanhas de Frank Underwood.

Não é a situação política atual que me leva a escrever sobre Underwood. Ainda que pudesse, e quem acompanha uma e outro saberá do que falo. É a atração que exerce sobre as pessoas a falta de humanidade. Não à toa, é grande o sucesso.

Adivinha-se essa falta logo nos primeiros capítulos. Underwood cativa pelos comentários sarcásticos (mas altivos), pelo desprezo que sente por tudo o que é mesquinho (ainda que sejam, ou talvez especialmente, as necessidades alheias). Talvez em algum momento surja em nós a incompreensão de por que continuamos assistindo, mesmo reconhecendo a manipulação, a perversidade, o oportunismo, a deslealdade e o interesse próprio como único motor da ação. Porque temos tudo isto dentro de nós mesmos, já me dizem aqui os amigos com quem converso a respeito. E eu respeito muito essa posição meio psicanalítica, mas o que me intriga é essa forma sedutora com que o mal se apresenta. E como se reproduz e, pouco a pouco, se torna pouco menos que normal. A potência que tem essa sedução de se apropriar dos nossos sentimentos, dos nossos valores, da nossa própria moralidade.

Aos poucos, quase se tornam simpáticos, esses personagens. Toleramos o intolerável. Rimos do que não é risível. Vamos aceitando, quase quase justificando o injustificável. Diremos consternados que a política é assim mesmo (como subir sem pisar num pequeno alguém aqui e ali?), que as coisas, afinal, podem mesmo levar as pessoas a situações extremas.

A tolerância pode ser um atributo sanguinário. Expande-se como cera quente derramada em mármore. Ultrapassa fronteiras e limites, sem que doa, sem que se sinta, sem que aparentemente nada se altere. Quando a conta chega, é invariavelmente alta. Às vezes, sequer se consegue pagar.

Os Frank deste mundo são como ele: implacáveis. Não hesitam em descartar quem atrapalha seus planos, ou suas vontades. Não nutrem mágoas, a não ser quando lhes podem valer de algo. Não sentem dor, e por isso sequer vislumbram a que provocam. O que existe é apenas o que lhes interessa, justificável porque lhes interessa.  Os demais, à sua volta, são como nós, seus espectadores: enquanto estivermos sentados em nossas poltronas, deixando-nos seduzir, deixando-nos guiar, deixando-nos manipular pelos seus olhares profundos e suas falas programadas, seremos úteis às suas estatísticas de audiência. Quando não, é só descartar. Logo ali, na primeira esquina.

Mas hoje não há mais como. Porque nesse virar dessa primeira esquina há uma menina de 16 anos estuprada por 33 homens, e ali acima, no Piauí, outra, agora vandalizada por cinco, e por todos os recantos deste país, a cada quatro horas, mais uma. Riem-se esses homens, e com eles riem-se outros, e com estes outros tantos, e há os que apenas esboçam um sorriso constrangido, e aqueles que se calam e se refugiam em qualquer lugar distante dessa menina desacordada de sexo e alma sangrando, e aqueles que justificam e aqueles que encolhem os ombros e decidem que a responsabilidade não passa em seu quintal. Uns poucos (entre eles talvez você que chegou até aqui) erguem-se indignados e perplexos. São minoria - há homens demais conseguindo entrever, por entre os fatos, atenuantes para a barbárie.

O fato é que a nossa abstinência de pensamento próprio e autônomo chega para cobrar-nos a tal conta, e é alta. Essa forma utilitária e perversa de tratar o outro, e neste caso especialmente a mulher, está por todos os cantos, e é promovida, e aceite, por todos os lados. Seja no outdoor ou na propaganda da revista de moda, numa série inofensiva ou na grande bilheteria, na conversa do bar na sexta fim de tarde, na sua rodinha de amigos homens, na piada que chega pelo twitter e faz sorrir, ou numa corte ministerial formada apenas e totalmente por homens. Dirá você que nada disso tem realmente relação - e eu lhe digo que tem, porque o nosso coração e o nosso cérebro aceitam e se acostumam  rápido demais o que nos chega bem vendido, e mais rápido do que você percebe a sua boca repete a estupidez que seu ouvido acabou de escutar.

Essa conta, que todos pagamos hoje junto com essa menina, vem embrulhada em mil tons de cinza. Este tempo todo em que não pudemos ou não quisemos pensar a respeito, e este nosso silêncio histórico, esta nossa necessidade de sermos tolerantes até mesmo com a iniquidade, compactua com a ferida alheia. Passamos tempo demais observando, aceitando, envergando, querendo enxergar alguma valiosa virtude nos jogos sedutores da escuridão, e silenciando quando duvidamos dela. Esse silêncio obsequioso, que pretensamente diz respeitar o outro, dar-lhe a chance de defesa quando já se sabe de todo indefensável, compromete e fere de morte a todos nós.



Ilustração para The imp of the perverse (O demônio da perversidade), conto de Edgar Allan Poe

14/03/2016

Coração em aberto


Coração aberto, sensibilidade à flor da pele, delicadeza e noção exata da preciosidade do amor: pré-requisitos do encantamento amoroso.

Tenho o livro de Vinícius dentro das mãos. É ele quem diz essas coisas sobre o amor, não eu. Maria Letícia encontra-me na escada onde me sentei. Colega de faculdade, está guardada naquele lugar vago que chamamos de lapso de memória. Estou sentada com o livro de Vinícius nas mãos, porque tenho uma aula a dar, e é sobre ele, e convém que me prepare.

Demoro a lembrar-me da Maria Letícia – o que tanto significa que possa demorar-me em sua pessoa, detendo-me e olhando-a atenta, quanto que tarda a lembrança a aflorar do subterrâneo da história. Não lhe digo, porque a magoaria.

O maior solitário é o que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...) Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno.

É a memória seletiva, essa que me salva das coisas que não têm por onde escapar desta vida para outro lugar qualquer. Às vezes, é vantagem. Não faço esforço para lembrar-me, porque nem sei que tenha do que lembrar-me. As pessoas aproximam-se (como Maria Letícia neste lance de escada) e, porque não tenho o que resgatar, nenhuma imagem anterior, nenhum comentário que a tenha eternizado dentro de mim (realmente não me lembro), posso olhá-la com olhos virgens, sem nenhuma desconstrução a fazer que me deixe mais honesta diante dessa que pode haver (terá) se transformado no correr dos anos. Fresca novidade, a Maria Letícia.

A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

E ela sorri, enquanto acena (ela sobe o lance de escadas para alcançar-me) e grita de lá: “Te reconheci pelo livro!”. E lembra-me, ato contínuo e já ao meu lado, do seminário apresentado em Literatura Brasileira II, das frases que recortei desse mesmo livro que tenho dentro das mãos, e que ficaram dentro dela vibrando semanas a fio. “Comprei esse livro por tua causa”, diz mais baixo. “Ajudou-me a atravessar momentos difíceis”.

O amor exige a exposição ao sofrimento e um tipo especial de coragem.

Eu lia Vinícius um tanto à toa. Esperava o fim da aula de vôlei da minha filha, e o livro estava ali, pousado no banco, perdido, ao meu lado. Mergulhei nessa insensatez que o Poetinha propõe e foi de repente, eu que não me lembro da Maria Letícia, muito menos da Literatura Brasileira II. Sou engolida por essas palavras que julgava nunca ter lido. Sento-me no degrau mais alto da escada, para que o mundo fique longe e não se intrometa, Maria Letícia ao meu lado, e lemos uma à outra os trechos que, nesse exato momento (farei força por não esquecer nunca), aquecem as duas almas como se fossem gêmeas, e dissolvem esse sentimento insuportável de não pertencer. Como um voo rasante de pássaro, o sentido passa por nós, e se materializa adiante, e logo passa, e já somos só nós, outra vez, sentadas no degrau mais alto de todos, onde chegam finalmente os gritos das meninas do vôlei, como estilhaços de vidro quebrado contra o concreto.



(Os trechos em itálico são de “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes e poderiam ser bíblia para aqueles que não têm ideia do que seja, de verdade e com consistência e força, amar.)

19/02/2016

As avezinhas do céu



O sonho desta noite. 

Um caboclo eleva a vista, e a minha segue com ele. Sobe depressa pelos troncos das árvores, e agora já estamos no topo. Há uma mata fechada em volta dos nossos olhos, um rodeio de tapete verde, espesso, cerrado, imenso. Olho em volta pelos olhos do caboclo, sinto as pernas tremer de cansaço. Ele entrecerra os seus olhos e com eles os meus se afinam. Ao fundo há uma planície de água. Ao redor de toda a mata fechada, uma planície brilhante de água.

"Não há nada que dure eternamente", diz o caboclo fechando seus olhos. "Porque te preocupas com o pássaro que tens na mão? O que fazem os que passam voando sobre ti? Não vês que o que seguras é o limite que a ti mesmo impões? Mão fechada diante da maravilha da mata? Abre a mão, deixa o pássaro no voo que é seu. Pousa teus olhos nas asas dos que vivem no alto do céu, e dirige-te nessa sua direção. Não os abatas, para que os possas ter na mão: segue e aprende o caminho do voo. 

As asas do pássaro celeste são caminho do pai criador. Se manténs esse pássaro preso, essa segurança que ninguém pode dar, matas dele e de ti a alma pura, espremes a tua vida e a dele na palma da mão. Vai, afrouxa a tensão dos teus dedos, abre espaço pra vida viver. Deixa que pouse na mão estendida só o pássaro que semente trouxer. Observa o bico certeiro, o olho alerta, as penas do corpo que não é sofredor. E depois vê como eleva seu canto, seu voo deixando ao teu lado um sossego com cheiro de flor."

Acordo pensando em Mateus. "Olhai as avezinhas do céu" diz ele. "Nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros. São como os lírios do campo."

Sinto caboclo e discípulo num só. E sinto, e sinto outra vez: o que mais vale na vida é sentir. 


Revoada de pássaros em Ibirapuera, Araguaia. http://1080.plus/gmXz8C-AqMU.video


15/01/2016

Brain damage

You lock the door
And throw away the key
There's someone in my head but it's not me
And if the cloud bursts, thunder in your ear
You shout and no one seems to hear
And if the band you're in starts playing different tunes
I'll see you on the dark side of the moon



Ligação na madrugada. Amiga aflita. O que faço é sair da cama, entrar no carro e ir até sua casa. Faz frio, está escuro e chove. A porta está aberta quando chego, a entrada molhada, a mesma escuridão dentro que fora. Entro muito rápido, agarro-a por um braço e arranco-a de dentro. 

Tem uma hora, digo eu a ela, que é preciso fechar a casa, trancar e jogar a chave fora. Deixar tudo lá dentro como está, não trazer nem uma agulha sequer, nem uma poeira. Nada. Porque há casas que são assim, como essa sua onde você veio se meter: inutilidades completas, cheias de pormenores irrelevantes feitos só e apenas para confundir a sua cabeça, dando a entender, fazendo de conta, parecendo que... e nada. É só vazio. A única coisa que tem dentro dela são as coisas que você construiu. As prateleiras esculpidas na parede para guardar lembranças de viagem. Os armários à espera das colchas tecidas, dos fios trançados. As panelas e os pratos e os talheres aguardando o almoço feito por alguém que não você. Você não vê?

All that you touch
And all that you see
All that you taste
All you feel
And all that you love
And all that you hate
All you distrust
All you save

É nada. Você não vê?

Vamos até o ponto mais alto da cidade, o vento fazendo seu serviço do lado de fora do carro. Ela se encolhe no banco. Não me ouve, só olha pra dentro de si mesma. A casa está dentro dela. Este é o lado escuro da lua.

Digo-lhe as palavras óbvias: melhor (claro) é não se ocuparem nunca jamais casas assim. Não se permitir a morada em mofo pintado pra parecer reformado. Mais tempo, menos tempo, o mofo aparece, junto com a sua pestilência. Mas às vezes entra-se numa, porque era preciso, não tinha jeito, faz parte e esse longo etcetera que seus amigos (eu incluída) tentarão usar para consolo, embora todos eles e você mesma saibam, de antemão, que não passam de desculpas pra aliviar a alma. E nessa hora de agora, essa hora precisa, aqui paradas dentro do carro em frente ao abismo de pedra: não é alívio. É tormento. Seus olhos dizem-me isso. E eu calo-me.

Quero dar-lhe a mão. Abraçá-la. E só quando percebo que é a chave da casa que ela tem na mão é que me dou conta. Por isso a casa dentro dela. Por isso seus olhos as janelas escancaradas gritando crueldade em silêncio. O sangue escorre por dentro dos seus olhos, e eu não consigo estancá-lo. E dói, como se fosse em mim, esse sofrer calado. Digo-lhe: entregue-me. Eu jogo. Lá do fundo do seu olhar alguém se contorce dizendo não. Alguém dentro dela luta. Quem é essa, que diz não à salvação?

Largue essa chave. Pare de procurar luz onde a escuridão cravou sua garra. Você não vê? As janelas não abrem, a porta é emperrada, essa casa que você insiste em querer arejar está cheia de pregos e tábuas, como cidade abandonada no velho oeste saqueado. São só restos, amiga minha. Só restos de mil vidas mal vividas, todas elas lado a lado, todas elas estendendo mãos e recebendo facas. E quando digo "mil vidas", quando a olho do fundo dessas mil vidas, seus olhos se espantam, e as mil vidas se espantam neles, e a mão abre-se por fim.

Agora, não a vejo, junto ao abismo. A neblina acompanhou-a até à borda. Percebo um movimento da sua sombra na direção do vazio. Uma luz brilha um instante e cai. Espero que seja a chave, digo em voz alta. Abro os olhos, e acordo.




Pela janela

Foi dessa janela, numa tarde de junho. Sabe aquelas tantas coisas que ela lhe dizia? Escaparam-se pelo flanco dessa cortina branca. Tanto tempo guardadas, com fome de ouvir, com fome de ser. Tanta fome, tanta. Cansaram-se, perderam o timbre, o brilho, o frescor juvenil dos encontros.

E ela foi-se, com as palavras, sem esperar sequer que eu lhe abrisse a porta. Disse-me, antes de passar a segunda perna pela abertura na parede, "portas? são espaços traidores". E é ao meio termo que ela se referia (já tínhamos conversado sobre isso): portas entreabertas. Coisas assim. Não, não deixe de ouvir o que mais ela disse antes de sair e deixar a cortina impecável, branca, na parede branca, essa paz pintada para enganar os trouxas.

Daquelas coisas que ela lhe dizia, veja: arrependeu-se de várias. Em segredo, sei que saiu para erguê-las do chão onde ficaram caídas (as coisas que lhe disse), como pérolas opacas, órfãs de ostra e colar. Deve estar, neste momento em que falamos, tentando reerguê-las, limpá-las, acalentá-las, dizer-lhes: "não fostes vós, mas a falta de dedos". Não sei se pérolas voltam à vida depois de esmigalhadas.

Ela lamenta, deixou escrito aqui num papel. Lamenta como um pássaro colhido dentro da gaiola, um pássaro a quem lhe cortaram as asas, um pássaro atingido pela pedrada sádica. Deixou as caixas todas em cima do armário. Vazias. Acho que ela não lhe deixou nada.

Só quero dizer-lhe, agora, que a vida é bem maior. E depois dissp saiu cantando. Disse que a terra é profunda. E eu me lembrei: a cova pode ser rasa. A terra é profunda.


Foto: Não é, mas podia ser do Antonio Claret, que foi quem a trouxe.


28/12/2015

O império do eu


Jonas voltou pra casa arreliado com a placa. Até fotografou. Ficou matutando no erro que tinha ali, e Maria dizendo deixa disso, tem erro não, vem deitar que eu faço você esquecer essa confusão, vem.

E Jonas nada. Encasquetado.

Sentou na cozinha. Acendeu a luz por cima da mesa. Passou um café.

Tentou discriminar, como lhe dizia seu primo Beto que devia fazer na vida. Botar as coisas certas de um lado, as erradas de outro. Assim, bem preto no branco e branco no preto. Ficou lembrando das palavras da placa. O café queimando na xícara de esmalte.

Meu Deus.

Já começava assim de um jeito que incomodava, essa mania das coisas serem minhas/nossas, tuas/deles. E Deus lá gosta de ser propriedade de alguém? Tomou mais um gole, apoiou a cabeça na palma da mão, deu um suspiro, olhou pra porta entreaberta do quarto.

Meu Deus.

Importante era o EU, assim nessa letra garrafal, dava pra ver de longe, maior que tudo. E do lado o motociclista, estendido ao comprido, dando mesmo a entender que era Outro, e não EU. EU estava passando por baixo da placa, aliviado que fosse Outro e não EU estatelado no asfalto. Com vida ou sem ela. A placa fazia prever o pior.

Podia ser EU.

Mas não era, e assim (mesmo Jonas) passara com alívio por baixo da placa, tomando cuidado para não ser ele o Outro na próxima esquina.

Lembrou-se do Beto. Com a mão, colocou um Deus invisível de um lado da mesa (esse é o lado certo, falou pra xícara). Do outro, o Meu. Do lado certo, o podia ser (porque tudo Deus pode, e por isso tudo podia mesmo ser, pensou mas não disse). E, do outro, Eu.

Depois trocou. Mesmo ele ficou arreliado do Eu ficar do lado do errado. Manteve Deus do lado certo, metade por teimosia, metade por fé. E trouxe o Eu pro lado dele. Deixou o podia ser do lado de lá, e levou o meu pra acompanhar. E antes mesmo de terminar o café já tinha formado uma nova frase.

Eu, Deus, podia ser meu.

Maria nem abriu os olhos quando Jonas se deitou, num abraço desmanchado em sorriso horas depois.


24/12/2015

Para 2016, com duplo amor

Abro as mãos, e abro os olhos. Por entre os veios de um ano duro, vejo dedos antigos tecendo raízes submersas, erguendo galhos caídos, sustentando hastes quebradas, desviando uivos aflitos. Este ano que acaba é um ano de milagres, desses de todos os dias, desses que, se deixarmos e não olharmos, se despedirão de nós invisíveis. Talvez precisem repetir-se até deixarmos de ser cegos. 

Será preciso redobrar o olhar e o coração. Limpar duas vezes o que não fomos nós a sujar. Brilhar duas vezes na escuridão que se formar. Sorrir duas vezes para quem um insulto atirar. Desfazer nós, embaraços, trabalhos. E acender todas as velas, todos os dias e todas as noites, dentro e fora de casa, dentro e fora do peito, dentro e fora da certeza. A todo custo, e a todo preço, aproximar-se em vez de afastar-se, correr riscos, subir alturas, descer abismos e enfrentar quaisquer feras. Este que começa logo ali será um ano de precisão de força, e só se chamará fraqueza se a ela dermos nome e alimento farto. Venha 2016 limpo e livre, com as escuridões e os tropeços que nos fortalecem, e humanizam, porque tudo, mas tudo mesmo, um dia passa. 

Mas que nada nem ninguém passe impune, nem sem sentido. Que o que passe por nós nos atinja, nos afete, nos torne mais dos outros que de nós mesmos, ainda que derrube nossas proteções, fustigue nossos músculos, triture as nossas vísceras. Que nos sobrem coragem e entrega, e em nós se fortaleça o lugar do não esconder-se. E que ao medo, e à vergonha, e à dúvida, ofereçamos apenas uma palavra: só amor, e mais nada. Só amor, e mais nada.



23/12/2015

Museus e palavras

Não sei se o mais impressionante foram as chamas avançando sobre a torre da estação da Luz ou as imagens aéreas do prédio do Museu da Língua Portuguesa e os destroços queimados do seu telhado. Como muitos, fiquei sem palavras - todas elas arderam dentro da tela do meu computador.

Tive o privilégio de visitar várias vezes o Museu. A sorte de apresentá-lo a muitas pessoas queridas, filhos, alunos, amigos, conhecidos. Tornou-se roteiro obrigatório nas idas a São Paulo. 

Da primeira vez, fui sozinha, desconfiada dessas manobras com que a nossa civilização gosta de ensombrecer as coisas: colocá-las dentro de caixas para podermos tê-las sob controle. Mas me rendi, logo no primeiro andar, diante daquele "Grande Sertão: Veredas" aberto como flor para tirar o fôlego (de novo), reinventando Rosa de um jeito que (desconfio) ele gostaria. Elevador acima, mais uma rendição diante do corredor plural de imagens e sons e gentes. Como andar sem parar? Foi preciso sentar. Muita informação. Muita. Disponível e em forma de encantamento, parecendo depender das nossas mãos para se abrir. Pra lá e pra cá, grupos de estudantes com roteiro de visita a tiracolo, não sei se ajuda ou impedimento. Para onde foi a experiência primeira, sem mediações, das coisas? pensei eu. E sorri pra eles e arrisquei um "deixa o roteiro pra lá, se encante sozinho".

Como um amor que pede tempo, frequência, profundidade, foi preciso revisitar. Encontrar pretextos. Tropeçar sem querer na estação errada de metrô e decidir que já que chove, já que venta, já que muito sol, já que quase cedo, já que ainda tarde: ir ao Museu outra vez. E, em todas essas vezes, mil temporalidades surpresas, de Machado a Cora, de Oswald a Pessoa, de Jorge Amado às mídias em encontro e à provocação do "menas". Tudo sempre diferente e tudo sempre igual.

E, ainda por cima, e literalmente por cima, o terceiro andar, essa invasão inesquecível de som, escuridão e palavras, esse universo chamado palavra que é onde mais gosto de morar. E eu acostumei-me a começar a visita antecipando o gozo final, essa certeza de que o amor está onde o vimos a primeira vez, e também por isso garantindo a dose de lágrimas quase rotina. Como chegar ao lugar de pertencimento, e nele mergulhar e ser chamada, conduzida, levada. 

Da segunda vez, com um grupo muito querido de alunos, misturou-se isso ao privilégio de poder levar os outros a esse mesmo lugar, e abrir ao amor essa porta do compartir. E como choro se contagia, éramos um ônibus inteiro emocionado. Esse ritual do choro permaneceu até há poucas semanas atrás, numa que afinal foi a última visita, com amiga que nutre pela palavra amor aparentado.

O Museu deu-me respostas. Abriu-me indagações. Estendeu-me tapetes e tapetes de motivos para escrever. Guardo uma porção deles, detalhes daqui e dali, dispersos por cadernos que não sei onde guardei. Talvez não vejam a cor do dia, mas são testemunhos do poder do que não é matéria. Mais que um museu com coisas, um museu feito de palavras, essas que se reinventam e se escrevem, e depois se apagam e se tornam a escrever. Porque a rigor, se for pensar bem, a palavra é chama e precisa arder. Continua onde sempre esteve, e onde sempre está, nesse mesmo lugar de onde tentamos arrastá-la e deixá-la presa, fixa, ao alcance das nossas mãos terrenas. Porque dispersa e livre é mais difícil de se relacionar, mas é onde é mais e maior.

Rodeada pelas águas do rio Capibaribe dias atrás, debruçada na amurada de um barco, procurava o perfil de João Cabral na margem como se dele dependesse a minha sanidade inteira. Tanto as águas quanto as chamas passam. E eu (descubro) só tenho em mim as palavras que teço. Não importa se para quem as escrevo as lê. Nem sequer se a quem pertencem as percebe. Palavra é universo feito liberdade, avesso às paredes de quartos e salas, tecido escorregadio e invisível. Não são precisos museus para guardá-la, nem dinheiros que lhe paguem a existência. É ela quem nos guarda. E é com ela que guardamos.