28/09/2015

Prestígio


Foi num domingo de manhã qualquer. Joice arrumou-se diante do espelho na dúvida se seria o certo, se não deveria acabar com essas visitas dominicais, ritmadas, quase quase automáticas.

Mas a solidão a dois aperta seu coração. Vê-los assim, cabeças coroadas de branco, olhos encovados, faz trepidar as suas veias, e ela então lança-se a essa tarefa que nem sempre se recobre de glória.

Tocou três vezes a campainha. Preferia que soubessem que era ela, quem sabe antecipa potenciais problemas. Subiu os três lances de escadas desprezando o elevador, deixando em cada degrau o pedido de sossego, de paz, de concórdia, de puro afeto sem maiores manifestações. Se não doer, já vale a pena, range entre um e outro patamar, e ela sobe.

A porta aberta não tem ninguém atrás dela. Joice entra, atravessa o corredor que a mãe chama de hall, porque não suporta corredores porque lembram hospital, e hospital lembra abandono e abandono lembra-a de seu mais terrível medo. O terapeuta disse que era medo infantil. Mas ela já tem 76 contados dedo a dedo, e o medo é o mesmo, como se tivesse sido cultivado a quatro mãos.

A sala tem luz em excesso, as coisas não têm contornos. O pai acena por detrás do jornal, Joice hesita antes do beijo na beira da pele. Às vezes arrepia, hoje o pai sorri. Joice segue cozinha adentro. A mãe sorri, destampa panelas, aponta os garfos que ainda não estão na mesa. As facas já. Joice distende o pensamento enquanto sopesa na mão os talheres, é domingo, parecem prata.

Os copos também cintilam brilhos.

E Joice distende o corpo. Sentam-se à mesa os três. Sorriem. Dão-se as mãos num bom apetite sem vocação. O pai pergunta-lhe. Pula de um assunto ao outro. Mas ainda assim pergunta, e Joice responde, ficando aqui e ali perdida pelo questionário que segue um roteiro particular para o qual ela não foi convidada. Tropeços costumam ser inevitáveis em dias assim. Mas não. As perguntas terminam e o almoço vai avançando noite dentro.

A meio de um silêncio sem cor, a mãe sorri, a paz sentada à mesa. E também seu coração distende, ainda que o medo a ronde, e ela sem querer diz em voz alta e o pai responde que disparate. E quase tudo desanda, mas a mão do pai alcança a da mãe e há quase um carinho, uma encomenda com endereço completo. E o pai olha para Joice, aquele sorriso que a desarma, e pisca-lhe um olho, o gesto que ela abomina mas é o que lhe oferece e ela pensa, não custa nada, e é o que temos pra hoje. Joice sabe que ele sabe. E pisca de volta. Desistida.

Não há sobremesa. O que faz o pai? Pergunta? Afirma? Censura? Constata? Não se sabe, nunca. A mãe encolhe-se nos ombros, procura um lugar de saída. E o pai levanta-se solene, lento, gestos de atelier de estudo, e vai até o quarto. Demora-se antes de voltar com um meio sorriso nos lábios e os prêmios escondidos dentro das mãos. 

Estende uma à filha, a outra à mãe. E ambas adivinham e ganham a prenda. E Joice sorri, porque seu bombom é de prestígio, e ela adora, e ele sabe que ela adora, e ela sabe que ele sabe que ela adora. E nessa confusão de pensamentos, nessa enxurrada de sentimentos, Joice enterra os dentes no chocolate escuro. 

Fecha os olhos, dizendo-se tanto faz tudo isso, ele sabe e eu sei, e é o bastante. E Joice mastiga e uma vez mais enterra os dentes, com o cuidado de uma criança que se aproxima pequena e frágil da mais frágil ainda borboleta, para que não se assuste e voe, e desapareça para sempre.

E de repente algo obriga a boca de Joice a abrir-se. Tira o bombom de dentro dela com uma mão que estremece, e os dentes ficam marcados na massa marrom. A testa franze, a boca contorce, e então os olhos de Joice veem o mofo branco dentro do bombom, esses brancos e pequenos filamentos apontando como espadas o céu da sua boca.

(Para Regina)

http://not1.xpg.uol.com.br/wp-content/uploads/2010/06/bombons-amargo.jpg

08/09/2015

A feitora de panela

Pra Ornela

Januária, a feitora de panelas, acordou desalentada. Abriu os olhos e o teto embaçou-lhe a vista, mais baixo que o costume. As vigas de madeira cada dia lhe negam um tanto de espaço. Demorou a aperceber-se do resto do corpo. Foi só olhos durante um bom tempo. Depois tirou a mão de debaixo do lençol fino, sentiu a temperatura do ar e deixou-a cair sobre a cama. A outra mão ainda ficou enrolada dentro do lençol. As mãos de Januária são gretadas, os dedos amarelados e as palmas acinzentadas. Muita argila e muito mangue vermelho. nos poros e nas veias.

Januária é paneleira. Debruçada no mangue, não consegue ver seu reflexo nas águas escuras que boiam à superfície. Há traços de verdes e azuis e pratas na água do mangue, como se lhe fosse a gordura que não se mistura às levezas aquáticas.

Januária gosta de colher a casca do mangue vermelho, à marretada. Não lhe incomoda ver a árvore sangrar à sua frente. Bate-lhe sem dó, arranca-lhe pedaços como se de vingança se tratasse. É vingança de uma vida.

Quando fizeram a reportagem, disse Januária "eu me sinto orgulhosa de ser paneleira". Orgulhosa de suas panelas cruzando os mares até chegarem a Dubai. Januária não sabe escrever nem ler, mas gostou dessa palavra aberta que é Dubai. Januária sabe que Dubai é longe e que o mangue vermelho se chama rhysophora mangle. Nada disso lhe serve para nada. Januária é analfabeta sem função para a escrita. As letras dela estão todas escritas nos fundos das panelas, e são uma porção de jotas e mais nada.

As mãos de Januária levantam-se afinal da cama. E ela escova os dentes, lava o rosto, faz café, olha pela janela, chama os meninos. Depois varrerá o chão, depois pensará no almoço, catará o resto de farinha e pensará no peixe possível pra dar gosto ao pirão. Agora ela é da pilha de argila, e antes de mergulhar as mãos nessa matéria fria que lhe dá vida, demora-se tentando decidir se hoje a argila é mais amarela e ocre, ou mais cinza e azul, ou mais as duas coisas indistintas. Para combinar com essa manhã esquisita de teto mais baixo que o costume. A argila é o seu oráculo. E Januária fecha os olhos antes de se pôr ao trabalho.

Juvêncio chama de longe. Tou indo pro mangue, diz ele entre tosses. Era eu que queria ir. Tu tem que fazer panela, mulher. Deixe que eu vá. Não deixo, que mangue é coisa de homem. Então tu não devia mesmo era ir. E Januária ri com os dentes que faltam, e encolhe os ombros e a própria sombra diante do morro de terra molhada.

As mãos voam pela bola de argila. Puxam e repuxam, e abrem um oco de comida, sem cheiro ainda, mas já com consistência de moqueca de cação. Januária olha o longe, que ela mais imagina que sabe, e vê sonho, e vê miragem. A panela aberta como goela, e a tampa em perfeição de encaixe. Januária sorri de satisfeita e vai e volta com as cascas da rhysophora mangle e põe dentro d'água e a panela também, e fica repetindo esse nome estranho que é ao mesmo tempo simpatia e oração. E põe mais uma panela, e outra, e outra.

Eronildes chega da escola. Aprendiz de paneleira nessa terra de goiabas em árvore, no Vale do Mulembá. Os avós índios espreitam por dentro de seus olhos pretos. E as mãos como as de sua mãe, pássaros abrindo espaço para o lugar da comida. Como ela, puxam, e repuxam, e mais uma panela, e mãe estou com fome, que horas que vamos comer, o que tem pro almoço. E a mãe sacode os ombros, diz-lhe peixe, e ela mas de novo, não comemos outra coisa, dê graças a deus menina que tem gente que nem. E a menina termina a tampa e limpa a mão na calça de helanca estatal. E Juvêncio passa, e Januária levanta, e Eronildes dá graças a deus que a comida está no caminho, dentro de uma panela das que não se fazem, já nascem feitas, de alumínio, como manda a tv.

Foto: www.jornalfolhadosul.com.br

05/09/2015

Mais conversas de Vó Chica

Os olhos de Vó Chica, quando fala mansamente, fecham-se para verem melhor. Acho que a claridade do dia cria nuvens nas suas retinas. Seu hálito parece desfazer-se em açúcar, e desta vez deixou antes de ir-se um cheiro forte de alfazema. Vó Chica responde às pessoas como se o tempo nunca acabasse, como se vivesse num mundo em que tudo, até ela, é eterno e interminável. Num desses dias estava falando sobre o que se aprende nessa vida - e por que parece tanto, às vezes, que se demora a entender as coisas que parecem tão óbvias. Dizia ela assim:

"Nesta vida, filha, o que mais se aprende é  aprender. A vida inteira é aprendizado, mas não é dentro dela que se aprende - é quando se está pra sair dela, quando o parto do lado de lá se avizinha. Aí, sim, é que se aprende. O caminho da vida é só processo de saber aprender nessa hora. A vida é um lento preparo  para o dia de chegar-se pro lado de lá. Quando a vida está de partida, e as malas na mão de quem parte, o filme na estação é o de todos os dias, enfileirados como árvores na beira da estrada. De vez em quando, a máquina desacelera, e há mais calma pra reparar nos detalhes, pra encher os olhos de águas, pra encharcar o coração de gratidão e um pouco de saudade. Outras horas, a velocidade é tanto, que só o que se vê é uma coisa aqui, e outra acolá. Essa vida que desfila - é nessa vida que se aprendeu, e agora, assistida, é que se aprende e se entende tudo o que aconteceu. 

De pé, diante do nada, aprende-se que abismo é passagem. Que a vida tem qualquer coisa de fantasma: nada do que se pensa palpável existe para além do seu tempo. A luz que se abre depois, como uma fenda rasgada entre as nuvens, deixa escapar as águas desse nascimento ao revés. São as águas que descem do céu, e separam as membranas do que vive antes do que vive depois. Por enquanto, a vida ainda palpita; os caminhos podem ser percorridos; vão se juntando em cestarias as peças que são recolhidas. Mas o todo se contempla à distância, e de lá acenam os tons e as cores, as figuras se desenham sem fugir - isso, filha, só depois, e só se o traçado tiver sido pensado, medido, calculado, vivido e refeito quando preciso. Não há arrependimento quando se olha o todo que passa, na hora que a vida se escoe; é uma imagem que se compõe como cena, como o todo que foram todos os seus movimentos. E aí, sim, se aprende. E se festeja e se acertam as dores, as flores e os espantos.

Por isso não aceite, filha, enquanto do lado de cá, as coisas tal qual apareçam. Nem desastre, nem barbárie, nem falta alguma de humanidade que queira fazer morada em sua casa ou lance suas cordas sobre a terra. Desarmar é viver a verdade, é levantar toda vez de olhos novos, é ver o outro naquilo que carrega - mas não tinja, não orne, não omita. Se a barbárie está à solta no mundo - é porque o preparo pra aprender anda chamando. Sinta as dores do longínquo, e erga as mangas dos seus braços. Não se ausente, nem se cale, nem concorde: seja uma ponta de lança brilhando constelada com aqueles que querem verdade. É das luzes plantadas na terra que rebrota a claridade do mundo."


Imagem: flor de alfazema
www.learningbotanicalart.blogspot.com

Pessoas


se recorto,
me alegro
me altero
me somo.

descubro por dentro
do corte
o invisível ocupante do todo:

a curva, o lençol,
a dobra fina de vento
na parede amarela do prédio

tenho um todo na palma da mão
sou lugar de curva
dobra fina de lençol
mistura inconclusa de verbos
um grito solto na lateral do papel

recorto e
me alegro
me altero
me somo:

junto o teu ao meu peito em carne viva
guardo-te imagem feito tela de retina
recorto-te do meio do todo:
e agora és palma
és tempo
e eu sou minha


Fotografia: Giovani Ferreira

31/08/2015

Ser

No início, quando ainda nem sequer era o Verbo, pareciam muitos, e indistintos. Vestidos da mesma forma, sentados em carteiras iguais, ocupando salas idênticas. As horas pareciam as mesmas, as idas e as vindas idem, as saídas e as entradas repetições quase lineares.

Tentei aprender-lhes os nomes todos logo no primeiro dia. Frustrei-me, claro. A memória ainda não falha, mas tem limites. E afinal é disto que se trata: de limites que podemos galgar, atravessar qual areias de deserto, pedindo licença, com gentileza, para avançar mais um pouco, até começar a perceber uma espécie de trama fina de intimidade em processo de formação. Em pouco, pouquíssimo tempo. Não sei se haverá algo mais luminoso.

Tiramos os quês, as explicações, as palavras desnecessárias da escrita. Abriram-se os porões das propostas, e lá foram elas, acolhidas com destemor e abertura. Cada vez que acontece, eu me vejo nadando nas águas dos milagres humanos. Não tem coisa igual.

E bastou menos de um mês. Não para aprender os 360 nomes diferentes dessas pessoas novas que agora povoam a minha vida, nem de saber com certeza inabalável qual corresponde a quem. Mas bastou um mês para que a ilusão da aparência idêntica abrisse espaço para as diferenças e as peculiaridades - as grandes e pequenas coisas da identidade de cada um, esboçadas em gestos, em olhares, em tropeços aqui e ali, tudo quase invisível. Bastou um mês para que se estabelecesse, em meio a correrias de sala para sala e bons dias de sorriso aberto, um reconhecimento e um esteio de amizade e afeto. Daqueles que valem tudo na vida. Como, assim, não ser e se declarar feliz?


Foto: Giovani Ferreira






16/08/2015

Calma, vaca!

Sabe aqueles dias em que você chega à conclusão de que talvez a humanidade esteja perdida mesmo? Hoje é um desses.

Eu estranho, há anos, essa mania de energético. Cada vez parece mais impossível encarar a vida sem um estimulante qualquer. O paladar vai-se, e a noção das coisas junto. Assim, inocentemente, dentro de uma latinha charmosa.

Hoje dei de caras com o antídoto do Red Bull: a Relax Cow. Em vez de precisar de energia, e de se tornar um Touro Vermelho, você precisa relaxar e se acalmar? A salvação chegou: você toma uma Vaca Calma e tá tudo resolvido.

Eu sei que tenho amigos que se queixam de que penso demais, de que levo tudo ao pé da letra, de que às vezes faz parte deixar as coisas passarem. Pois eu parto do princípio de que, se está escrito, e é com letras, é para olhar para elas - e pensar. Essa faculdade tão fascinante que nos distingue dos outros animais, e nos permite fazer aquilo que Aristóteles resumiu numa frase que vou citar de cor: se você tem capacidade para fazer uma coisa, também tem capacidade para não a fazer. Depende é do que você pensa, e do que você decide depois de pensar nas coisas - mas, ó céus, como dói pensar! Como desacomoda, como incomoda, como fraciona, como nos desdobra diante dos olhos um mundo que preferimos não ver...

Para acalmar um Touro Vermelho, só uma Vaca Calma. E deixe pra lá todas as mensagens subliminares embutidas, das machistas às demais, aquelas que poderiam dizer-lhe que você é apenas um ser fácil e pateticamente manipulável.

Ou então preste atenção às linhas e às entrelinhas (faça um curso de Análise do Discurso se começar a se confundir), e faça escolhas a partir das suas conclusões. Os que prometem "esfriar a sua mente" em 296 mililitros de estupidez enlatada, prescindindo do seu esforço, da sua busca, da sua posição e do seu afeto, querem você assim: uma Vaca Calma que não incomode, que não dê trabalho, que se contente em seguir a boiada para onde ela for. Ainda que seja o matadouro.

03/08/2015

Presença e companhia

Ainda ontem me disseram que importante mesmo é cultivar o estado de presença. Gosto de observar a maneira como as palavras se dobram à vontade do freguês, rindo-se sorrateiras daquilo que nem vemos: que as maneiras de as usarmos altera, silenciosa e quietamente, a maneira como pensamos, como vemos o mundo, como nos oferecemos e recebemos o outro.
Estamos todos à procura de presenças – de estarmos presentes para nos sentirmos úteis, de querermos o outro presente para estarmos seguros, levantando a mão afoitos e quase que gritando “presente!” quando alguém duvida que não estejamos engajados. Queremos ser presentes na vida de nossos filhos, ensinar-lhes a importância de viver o presente, sabendo que o passado já foi e o futuro a Deus pertence.
Fui cavoucar a palavra, já tarde da noite. Presença deriva da palavra praesentia. Surgiu com a junção das palavras prae (à frente) e esse (estar, ser). Presença, portanto, é estar à frente. Ali adiante. Presença não é estar lado a lado. E nessa nossa obsessão moderna pela presença, pela busca incessante por estar presente nas coisas e nas pessoas, nem vemos que ficamos é distantes, separados por esse “à frente” que estabelece uma linha entre eu e o outro, feita de tempo e de espaço.
Talvez estejamos é necessitados de companhia. Em vez da miragem de uma mão estendida, dedos palpáveis e quentes ao seu lado. O que lhe parece?
Companhia também é uma palavra latina, e deriva de compania; está formada porcom (com) e panis (pão). Companhia é aquele estado em que as pessoas repartem o pão que têm. Imagino-as lado a lado, olhando-se nos olhos, agradecendo internamente por terem não só o que compartilhar, mas também o com quem. Não estão presentes, estão em companhia. Pode ser em silêncio, pode ser em conversa animada, diante de um por do sol ou dentro de um elevador apinhado. Quem seu pão coloca na mão alheia, e dela recebe o pão que lá existir, está em companhia, e nada mais é preciso.
Como dizia Einstein, só existem duas formas de viver a vida: ou você sabe que não existem milagres, ou você sabe que tudo é um milagre. Isso aprende-se, ensina-se, vive-se – sabe-se quando ainda se é criança, e desaprende-se com essas manias adultas de dar voltas às palavras para fugir ao que é essencial e deter-se no supérfluo.
Nunca é tarde para virar a esquina e decidir tudo ser diferente. Desistir do olhar vulgar que tudo cobre de tédio e insatisfação para vestir os olhos com a cor daquela pequenez que os enche de água agradecida. Talvez o milagre não esteja ainda nessa mudança de olhos – mas chegará, mais cedo ou mais tarde, porque as boas companhias chegam, por afinidade com esse seu novo olhar para a vida, e, de repente, você encontrará ao seu lado uma mão aberta cheia de pão. Aí, então, terá com quem compartilhar o seu pão sabendo que a sua mão e a do outro jamais estarão vazias.


Publicado originalmente no site http://paraentender.com.br/presenca-e-companhia/


12/07/2015

12.07


dentro do mar
anzol de pescador
na beira d'areia
coração rebrotou







06/07/2015

Manipulações, escrita e Dom Quixote

De todas as lições de escrita que recebi, aquela que me disse que o enredo e a trama vivem dentro da personagem, foi a que mais me modificou. Porque a vida imita a arte, e foi fácil ir registrando, em papéis aqui e ali: seja ficção, seja realidade, são as ações que determinam o caráter da personagem. As palavras que pronuncia, infelizmente, arriscam-se a ser ilusão bem (ou mal) tecida.

Aquilo que sabemos de cada personagem pode estar recheado de detalhes vívidos, que nos mostram quem e o que são, ou podemos receber apenas alguns traços gerais, um tanto abstratos, que nos sirvam para delinear um perfil - um perfil sem necessidade de interior. Como um saco vazio.

Tanto na vida quanto na ficção, é preciso criar uns e outros tipos, porque afinal não precisamos saber sobre todos tudo. É preciso, muitas vezes, que o seu Joaquim seja apenas o dono da padaria da esquina, que desconfiemos da sua nacionalidade portuguesa, e que saibamos que se levanta muito cedo para garantir o pão fresco à mesa do desjejum. Não afetará a nossa vida não saber nada além disso - mas certamente apenas esse conhecimento nos rouba a experiência do que é o seu Fernando, de fato e ao completo. Para fins de narrativa, não sendo seu Joaquim personagem relevante, nada a mais se faz necessário.

É isso que distingue personagens centrais de personagens secundárias. A questão é saber quem são umas e quem são as outras. E perceber que a maneira como as tratamos precisa, sim, ser diferente. Às ficcionais, nada acontece quando, ao fechar o romance, ainda temos algumas dúvidas. Quincas Borba, antes de ganhar um romance só seu, foi personagem secundária em outro romance machadiano. Nenhum problema até aqui - se o nosso domínio for a escrita. Se nosso campo for a realidade, pode iludir-nos a vida sermos conduzidos pela conversa vazia de quem se diz profundidade. 

As personagens secundárias precisam de poucos traços, porque a sua existência enquanto tipos nos basta - podemos chamá-las de planas, porque é aquilo: só têm perfil. As que têm relevância para a trama, ao contrário, demandam um preenchimento consistente, quente, pulsante, cheio de nuances psicológicas que nos permitam conhecê-las melhor do que a nós mesmos, ou quase. São as personagens redondas, cheias de conteúdos.

Sancho Pança e Dom Quixote podem ser nossos exemplos. Cervantes não escreveu apenas uma paródia humorosa aos romances de cavalaria medievais. Cervantes está atualíssimo, porque escreve uma paródia à importância que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas nos mostram de si mesmas.

Sancho Pança é a personagem da qual Quixote depende para estar encarnado. Raramente nos lembramos disso. Dom Quixote nos encanta: o sonhador, o visionário... Mas é Sancho quem lava, passa, cozinha e se preocupa com seriedade e constância das coisas "pequenas" da vida de seu amo. Amiúde não percebe a sua real importância, e mesmo exasperando-se com a testarudez de seu senhor, permanece junto a ele, fiel e amoroso como um cão perdigueiro. Conhecemos, de Sancho, não só o seu exterior baixo, gordinho e montado num burrico, mas também e sobretudo o seu interior - a sua bondade, a sua perspicácia um tanto tosca, a sua lealdade, a sua falta de senso de humor, a sua capacidade de enxergar as coisas da forma reta e lisa que são. Acreditamos em Sancho. E acreditamos porque a pena de Cervantes, lá nos idos do século XVII, nos faz acreditar. Acreditamos porque dele sabemos as coisas importantes que precisamos saber das pessoas nas quais acreditamos.

Também o que sabemos de Quixote é o que o autor espanhol escolhe oferecer-nos - e ele escolhe conduzir-nos engenhosamente a leitura e dar-nos apenas traços vagos de seu "herói". A visão descontrolada, as alucinações, a valentia questionável: não há traços internos reais onde possamos nos agarrar, porque tudo em Quixote é egocêntrico, desmesurado, ambíguo e abstrato. Somos jogados nos moinhos de vento e, embora não acreditemos, como Quixote, que combatamos monstros, aceitamos a sua megalomania. Não acreditamos em Quixote, até porque ele não nos dá nenhum motivo para isso, mas aceitamos, e gostamos da sua companhia, sentimos uma suave condescendência e solidariedade para com a sua "mansa" loucura, sem perceber o buraco para onde nos arrastam as alucinações mentirosas de quem se acredita acima da verdade do mundo.

Quixote é o império da ilusão. Nada do que diz e pensa é verdade, e pouco do que faz tem impacto real e duradouro sobre o mundo. Ainda assim, é a ele que voltamos os olhos e pensamos "ainda bem que existem sonhadores!". Porém, Quixote não é um sonhador, mas um ilusionista de si mesmo, um ser que de si pouco revela porque toda a sua parafernália delirante e entusiasmada é criação doentia de sua própria mente. Acredita ter o valor que não tem, ver o que não existe, lutar pelo que não tem validade. E nós aceitamos e meneamos a cabeça, entra século, sai século, granjeando a esse tipo de construção de pessoa (perdão, de personagem) o espaço e a importância que ela não tem. E, enquanto isso, os Sanchos permanecem sob luz secundária, elogiados de forma tímida pela sua dissolução no sonho alheio, ainda que nos incomode silenciosamente a sua dedicação canina e sua inamovível sensação de serem indispensáveis à manutenção da vida dos Quixotes. Por muito que saibam que Dulcineia não é dama e nem Rocinante maravilhoso alazão, é quase que uma condena que levem seus Quixotes a bom porto - ou seja, de volta ao lugar de onde saíram.




Imagem: