07/07/2014

Clarice, em carta

Provavelmente porque precisava de quem me oferecesse todos e nenhum caminho de entendimento ao mesmo tempo, fui em busca de Clarice. Porque a força da ficção vive na capacidade de não ser verdade mas poder impor-se como tal, nesse conceito cheio de letras que é a "verossimilhança": um ser semelhante à verdade, que está de acordo com aquilo que poderia ser, ainda que em desacordo com aquilo que se vê normalmente. Aí está uma discussão que adoro: o que é mesmo a verdade do que se vê?

Mas vamos à Clarice. Há uma carta, que se diz ser dela, a uma amiga incógnita, escrita em Berna em 1947. Uma versão conta que a teria dirigido a sua irmã Tânia, entre muitas outras que escreveu a todas as suas irmãs, nos mais de 15 anos que viveu fora do Brasil. Foi Caio Fernando Abreu quem publicou a tal carta, avisando que não tinha certeza de ser da escritora, mas que a ela se atribuía, e assim de fato parecia.

A destinatária da missiva devia passar por momentos de aperto, desses que fazem as mulheres se aproximarem umas das outras em busca menos de consolo que de compreensão. Às vezes, a realidade do mundo sobrepõe-se à verdade que se intui para lá dele mesmo, e é bom uma mão amiga, um ombro aberto, uma palavra de alívio, para que não se sucumba à impressão de endoidecer. Se a carta é ou não verídica, não sei. Mas é verossímil, e por isso leio-a como se de Clarice fosse, como se a amiga e a consequente amizade o fossem também, como se a congruência fosse (é) uma realidade palpável. Berna, 1947, parecia-se a uma fazenda, escrevia Clarice em outra carta, lamentando a falta de paciência para gostar de uma coisa assim. Não lhe foram fáceis esses anos, como não o foram para europeu algum do pós-guerra. Na verdade, não sei se a vida lhe foi fácil ou difícil, porque essa não era uma preocupação que Clarice aparentasse, essa de pensar na facilidade ou na dificuldade das coisas. Clarice era dada a agir sem muito pensar; ainda em outra carta, diz que desse método lucrou meio a meio: metade de fato intuição, a outra metade pura infantilidade. Preciso ser mais madura, dizia ela. Mas tenho medo de amadurecer demais, completava.

Não sei bem se Clarice era dada a aliviar os outros. Creio que não, tanto quanto creio que ela mesma raramente encontrava alívio a não ser na escrita, e ainda assim de forma muito leve. Mas essa carta em especial alivia, como alivia uma conversa em voz baixa à mesa enquanto se divide um jantar. Aquelas coisas profundas e simples que só podem ser entregues ao outro quando há tempo, espaço e interesse. Cartas, na falta de jantares, e quando a distância é marítima, sossegam o espírito.

A meio desses momentos difíceis pelos quais a amiga passa, Clarice aflige-se por vê-la enveredar pelo caminho fácil de ser o que não se é. Porque os outros pedem. Porque os outros suplicam. Porque os outros exigem. Porque todos dizem que. Porque todos fazem. Tanto faz. É preciso ser-se quem se é, e estar atento (não sei se leio ou penso) ao tanto que não se pode levar a alma no caminho da distração de si própria. É preciso estancar o fluxo. É preciso subverter a ordem que chega. É preciso com urgência resgatar os próprios defeitos, e tomá-los nas mãos com o mesmo carinho com que se tomam as virtudes. Clarice alerta: nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. E por isso cortar os próprios defeitos é ação perigosa.

E por isso é preciso ler Clarice e prestar-lhe atenção, atenção a esse sufocamento acre que lhe sobe pelas letras e nos incomoda os olhos. Que nos alerta para os desvios daquelas que são as nossas necessidades e expectativas, esse desviar-se desatento do caminho que a alma nos grita precisar percorrer. Sem prestarmos atenção equivocada ao que dizem, fazem, pensam, pedem, exigem, esperam, demandam, provocam, precisam - os outros. Ler Clarice volta-nos os olhos para dentro. Desconstrói-nos. E por trás de tanta cortina, lá estão reunidos os nossos esforços em mudar o que somos, esses esforços imensos de emoldurar o quadro que somos e descartar as sobras à sua volta. Como se algo em nós sobrasse.

O custo, às vezes, é alto. Outras, é alto demais. A alma esvai-se pelo meio, atravessa a vida como água que a areia absorve lenta. E perde-se a água, e a areia continua como sempre. Clarice fala da "comodidade da alma" e das concessões que se fazem em seu nome. Quando se abdica de si mesmo, das próprias faltas, dos próprios tropeços. Quando se abdica das necessidades mais básicas, e que são as nossas. Quando se abdica da própria verossimilhança. E quando, por fim, não se é mais nada.


Foto de Claudia Andujar, 1961

03/07/2014

Perseverar, teimar ou persistir?

Para você, que como eu se olha ao espelho, na dúvida cruel entre "será que estou teimando ou sendo perseverante?", duas explicações e uma solução.

Tudo é questão de ser severo, estabelecido ou firme. Simples assim.

Quando se persevera, ativam-se as forças estritas e sérias de severus. Aliás, por causa do per-, ativam-se totalmente. Perseverar é um ato de total seriedade reta. Não há deslizes, nem dúvidas, muito menos falhas. Acho até que há um cenho franzido plantado na testa. Muito arriscado - os cenhos franzidos afastam os outros e criam sulcos que em nada se parecem com as alegres rugas de quem vive a sorrir.

Já quando teimamos, seja lá a respeito do que for, temos um thema - um argumento, uma tese. Quase, quase, coisa de advogado. Partimos de um lugar no qual acreditamos. Nada provado, dirão muitos ao seu redor, mas você responde: você que não vê, tá lá. E podem tentar demovê-lo. Ali está, e ponto. Esse thema é forte desse jeito porque é antigo - antes do latim, já o grego o lançava, com significado levemente diferente: aquilo que se propõe. Portanto, uma proposta. E mais. A sua raiz é tithenai, palavra algo apocalíptica (experimente falar em voz alta), e significa, com uma naturalidade teimosa, "algo estabelecido". O verdadeiro teimoso, o convicto, teima a partir de uma tese proposta e estabelecida, fincada resoluta no chão imortal. Olho para a minha teimosia e dá até cansaço.

Mas, como para quase tudo, há solução. E hoje, agora, a solução que tenho chama-se persistir. Per+sistere. Persiste aquele que se mantém firme e em pé. Totalmente firme e em pé. Podem as tempestades e os raios cair a seu lado, as pedras do caminho serem maiores e mais numerosas que as flores: há aqueles que persistem. Que olham para a vida diante de si e dizem para si mesmos: mantenho-me aqui, porque é o que devo fazer. Com firmeza, em pé, e sempre.


(E as uvas, pergunta você olhando a foto? O que é que têm as uvas com isso? Secá-las, transportá-las ou reidratá-las? Escolha de cada um. De qualquer forma, as uvas se manterão uvas. São as atitudes que constroem as diferenças entre elas.)

30/06/2014

Desapego ou desprendimento?

Ora bem. Depois do post "Ser grato ou obrigado?" pedem-me à distância que escreva algo sobre desapego. Perguntam-me se me sinto desapegada. Se pratico o desapego. Se consigo.

Francamente, nem tento. Não posso. Dentro de mim vive um apego a tudo o que amo. Um apego que (tento) não me machuque quando decide insinuar-se por entre os muitos laços do ego, segredando-me que, se amo, e se me apego, terei. Bobagem. Apenas serei. Tento apegar-me dentro dos domínios da luz, e que essa luz envolva os demais com todas as vibrações que posso enviar de longe porque, afinal, estou apegada - e, por isso, trago o outro dentro de mim a cada instante, faz parte das fibras da minha alma.

A raiz primeira de desapego (antes da junção com o prefixo des-, que significa sempre o negativo daquilo que se diz depois), é apego; este, por sua vez, deriva da palavra pegar - picare em latim: trazer consigo, ter em si e (claro) pegar. Portanto: pratico o apego porque ele me faz trazer comigo tudo aquilo que amo. Graças a esse "a" agregado, o que estava bom fica melhor ainda: trago quem amo junto em mim. A toda hora, a todo momento, em todo lugar. E porque não quero desapegar-me, o que amo cria casa em mim. Habita-me. Entranha-se. Elabora-me. Decifra-me. Quem se apega, chega mais perto do centro.

O impulso de desapegar-se, neste poder etimológico que lhe outorgo, encontra-se de braços dados com a decisão (que vejo ao meu redor com frequência) de não se entregar, de manter a individualidade, de não se perder no outro, manter o controle, ser dono de seus atos. Mas sem entrega, sem comunhão de indivíduos, sem o se perder - como se achar, e como achar o outro?!

A esse amigo querido que de longe se pergunta sobre o desapego, o que posso oferecer é o meu desprendimento. O mesmo des- que negativa, junto ao prehendere latino. Prender significa também pegar, mas com uma pequena imensa diferença: prehendere é agarrar. E agarrar guarda dentro de si, escondida entre duas distraídas letras, uma garra. Uma coisa é pegar algo que chega à sua mão. Outra, diferente, é agarrar. É ser presa. É estar-se preso.

Pego o amor que me dão, e me apego. Quero apegar-me. É uma decisão, esse apego, porque amo o que amo e mantenho-o perto e dentro comigo. Amor não é agarrável. Amor é liberdade em expansão. É tempo fora do tempo. Espaço fora do espaço. Se tento agarrar, ele escapa. Amor só sobrevive ao apego. É o lugar mágico onde se nutre, cresce, transborda - amor é coisa que precisa de transbordamento, sejam lágrimas nos olhos, sejam bênçãos no mundo.

Agarrar responde ainda por ações polares: aprisionar e afeiçoar-se. Se uma palavra pode, ao mesmo tempo, aprisionar e criar afeição, é melhor procurar outro caminho. Apegar-se sem as garras longas que prendem. Por isso, pratico o desprendimento. Deixo solto o que pertence a todos. Deixo solto o que pertence ao outro. Deixo solto o que pertence a mim. Mas dentro, neste lugar onde entram aqueles de passos leves e olhar atento, vivem apegados a mim todos os afetos do mundo.

28/06/2014

Tempo, espaço e sonho

Mais dia menos dia, serei como essas pessoas que acordam e se lembram dos sonhos, e os anotam em cadernos que mantêm à cabeceira da cama. Por enquanto, fico feliz quando algumas imagens esparsas se agarram aos limites da memória, e, de repente, a meio do dia, no transplante de uma muda, ou no fluxo de água de uma mangueira que rega, beliscam-me com delicadeza o sentido da lembrança. Às vezes consigo deixá-las libertas à minha volta, símbolos que ainda não significam. Não sei então se me lembro ou se me crio, mas parece quase que sonho acordada o sonho que sonhei quando dormia. Num dia como esse de que falo, sonhei que era um cavaleiro andante, parado às margens escuras de um rio de caudal sereno. O cavaleiro que eu era, montado no cavalo que eu era também, virou-se por entre as árvores e disse-me assim:

"O que faço, o mais das vezes, é levar meu cavalo até um destes recantos, para que sacie sua sede e revigore seu espírito. Nada mais faço além: a tarefa desta minha vida é dar de comer e beber a este que em mim se apoia e de quem meu sustento depende. É ele quem decide para onde os nossos passos se encaminham. Anteontem, um moinho. Ontem, a campina vazia. Hoje, vejo ao longe a torre do campanário de uma igreja. Ao contrário do que pensas, os ninhos das cegonhas são recentes e estão vazios, porque o Tempo é fato concreto, e sob ele riscamos passos amplos. Creio que hoje pernoitarei sob um teto.

O dia de amanhã desperta lento. Retorço meu corpo no colchão de palha amarelada. As hastes duras marcaram-me as costas, sinto seus vincos desenhados ao espreguiçar-me. À porta, a fila de sempre. Há sempre quem acredite que por ser cavaleiro, e errante, me engano menos com o que se vê do mundo. Não sabem que eu propriamente nada vejo. Pedem-me conselhos, choram-me temores, entregam-me segredos, procuram-se dentro de mim consolo, esperança, esse brilho que perdem (dizem) a cada trovoada que lhes fustiga as costas.

Também esta é a minha vida. Andar sobre as vidas alheias, desembaraçá-las das teias que o Tempo sem uso vai desenhando nas janelas. É o Tempo que se despreza e ignora que lhes ensombrece as vidas. O Tempo não observado, o Tempo desalinhado, o Tempo que se diz passado quando já é futuro maduro. O que lhes falta, e a ti falta da mesma forma, é entrar dentro do Tempo e deixar-te possuir por ele.

Assim que a fila acaba (nunca haverá alguém que se vá sem ser escutado), olho com demora a minha montaria, a sela surrada, o conforto do trote no couro curtido, os olhos desse cavalo que sou eu e ele num mesmo espaço. Durmo ainda uma noite, se é preciso, ou duas, e faço-me à estrada quando é tempo de ir."


Imagem: Logunan (ou Oyá-Tempo), em http://www.teufilhosdaluz.com.br/

26/06/2014

Ser grato ou obrigado?

Muitos dos meus amigos hoje em dia respondem-me pequenos gestos que faço com a palavra "gratidão", em vez do costumeiro "obrigado". Se por um lado me agrada (gratidão é uma palavra bonita, e o sentimento de ser grato colore os lábios de sorriso), por outro me incomoda essa rejeição ao dizer-se obrigado. Triste, quando palavras correm risco de morte.

Gratidão deriva do latim gratus. Uma forma que vem lá de muito longe, quando oriente e ocidente ainda se fundiam na língua indo-europeia. Diziam eles gwer- quando queriam elogiar ou dar as boas-vindas. Gwer- transformou-se em gratus, e seu significado foi se transmutando até gerar o corrente: algo agradável que se agradece. Dá-se as boas-vindas a uma ação do outro que nos é agradável. Por isso o sorriso nos lábios, acompanhado do coração aquecido.

Obrigado também nos chega via latim. Obligare. Palavra composta por ob e ligare. Ou seja: unir (ou atar) a. (Assim como o re-ligare é ligar-se novamente a algo, e dele recebemos como herança a palavra religião.) Quando dizemos obrigado, unimo-nos a alguém, um alguém com quem temos agora uma relação de laço de retribuição. Pressupõe que aquela graça que recebemos (e pela qual somos gratos) se desdobrará em algo que entregaremos nas mãos de quem nos fez bem.

Eu gosto de dizer obrigada. Muito, até. Gosto dessa criação de vínculo, dessa sensação de que algo em mim se liga e ata ao outro, e me faz entrar em relação. Deixo a gratidão dentro de mim, naquele lugar luminoso onde vivem as boas-vindas àquilo que vem por bem, e expresso-a através do meu obrigada, que quer levar até o outro o mesmo bem que ele fez em mim. Ou então dar graças, pela existência minha e do outro, pela possibilidade do encontro - que nos faz criar esse vínculo em que estamos obrigados à construção de humanidade para não sucumbirmos num mundo sem forma. Por isso, em gesto de gratidão, eu digo: obrigada.


Imagem: http://www.imperiodarenda.com/maior-conselho-sobre-ganhar-dinheiro-na-internet/maos-dadas/


25/06/2014

Destinos dados

... mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)

Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.

Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e "brota é depois".

É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.

Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário...".




29/05/2014

Emancipar-se

Diz-me um amigo que a doença da sociedade é a sua incapacidade de emancipação, e não as variadas dependências que nos rodeiam. A incapacidade de pensar por si, de tomar posse da própria vida. 

Desconfio que seja uma espécie de semeadura de palavras. Funciona. Como toda semeadura, brota. Multiplica-se em palavras que já li, e em outras que quero ler. Hannah Arendt aparece-me com o seu pensar-condição-humana, essa complexidade imensa tão simples. Aparece-me Steiner e seu pensar-livre. Sócrates com a frase célebre... Vou deixando que se amontoem dentro de mim, sem lugares onde guardar, sem espaços a preencher. Como em receita clássica de bolo, é bom usar os ingredientes à temperatura ambiente. Espero que tudo se acomode a este dia ora quente, ora frio. Tudo isso ainda é só tempero. Faltam os grandes volumes, os espaços solenes.

Não bato demais a massa, esperando que me segrede o que é mesmo que falta. Não falta, diz-me ela, ele já te disse tudo. E tu esqueces-te de que é de uma palavra apenas que necessitas. Sorrio para a massa, pensando eu em outras coisas que precisam apenas de uma palavra. E só por ter me distraído, a palavra que já estava corre atrás de mim.

Emancipar. Ali, logo no começo, antes da poluição do resto, e eu sem dar-me conta. Resisto à vontade de procurar-lhe de cara a etimologia, todo cuidado é pouco ao juntar as claras em neve à massa. Converso comigo, como se conversasse com o bolo pronto fumegando em cima do fogão.

Emancipar, digo-me, pode ser uma extraordinária quantidade de coisas. Pode ser o grito do Ipiranga, o grito de alforria, o quaes-sera-tamen. Um brado, de qualquer forma. Coisa que se dá em um momento. Emancipar pode ser uma ação repousada e cautelosa, uma assinatura em um papel que confere ao outro a liberdade que não tinha. Pode ser desculpa vazia para o (des)encontro com outro: não, não, eu não quero vínculos, não quero amarras. E os braços desfazem os laços, as vozes silenciam as gargantas, os olhos não veem os sonhos, e a liberdade de ação por nós mesmos escorre de uma banheira cheia de possibilidades. Tememos os nós, como se arriscássemos perder domínio próprio, e ficamos nos eus. Todos esses eus que vivem dentro de cada um, lutando pelas suas pequenas sobrevivências. Tudo, como de costume, uma faca de dois legumes.

Agora sim, a etimologia. Suculenta além da conta. Veja: emancipar é uma derivação complexa da palavra mancípio. (Mancípio é uma palavra portuguesa, e significa escravo. Mancípio é também, diz o dicionário, dependente, seja pessoa ou coisa.) Mancípio chega-nos diretamente do latim: é a junção de manus (mão) e capere (tomar posse, agarrar). Sendo assim, um escravo (um dependente) é alguém que foi agarrado, possuído por uma mão que não é a sua. É quando se junta o prefixo ex a mancípio que chegamos a emancipar. Sair, retirar-se. Libertar-se da mão do outro que nos agarra.

Está certo este meu amigo, e pode oferecer comprovação etimológica: emancipar-se é a saída da situação de dependente. Um ato que pode ser brado de um grito só, mas é precedido por um trabalho colossal, doído e desgastante, e seguido por outro de igual tamanho. Porque de uma situação cai-se em outra, e é preciso vigilância para que esse eu que grita por auxílio não nos ensurdeça para o outro. Porque o outro somos nós mesmos refletidos na amplidão do cosmos. É preciso emancipar-se diária e eternamente. Discernir entre o que quer nos agarrar e o que queremos agarrar em nós mesmos, porque é nosso, porque nos pertence, porque em nós vive o conhece-te-a-ti-mesmo como fonte de força e luz, porque é a única forma que temos para nos darmos ao outro da maneira mais verdadeira que podemos. E aceitarmos o que o outro nos dá, sem nos tornarmos escravos, e sem sermos do outro mancípio.

27/05/2014

Saudades de pedra

De todas as saudades, as mais imponderáveis são as que começam quando ainda se vive o que representam. Penso com isso nas flores amarelas das azedinhas nas bermas dos caminhos, nas giestas a anunciarem a primavera nas estradas do Alentejo, nas margaridas-do-mar em sua contemplação indiferente do horizonte atlântico. Como eco de passos nas ruas de um bairro secular à meia noite, entram sorrateiras, estendem-se nas redes que encontram, constroem em silêncio seus caminhos em nós, e tudo isso sem que ainda lhes percebamos a existência. 

Há os silêncios a meio das conversas. E as conversas a meio dos silêncios. O que não é dito porque não é preciso que se diga, e o que se diz porque é preciso o ar encher-se de embriões de saudade.

Mais ou menos como aconteceu em uma tarde, igual a todas as tardes que reaparecem diante dos olhos, não como se fossem ontem, mas como sendo dias do hoje, eternos agora.

Nessa tarde, que já se anuncia distante porque as saudades estreitam os ponteiros do relógio, há uma mulher sentada à sombra dos beirais da casa. Ao seu lado direito, à distância de oito passos, há duas cadeiras de reclinar vazias. O sol atravessa os espaços que formam as folhas da oliveira próxima. As cadeiras murmuram como se preenchidas. As suas vozes trinam nos bicos dos pássaros acima delas. Brilham no reflexo do sol nas nuvens. Tornam-se matéria na linha do queixo da mulher sentada ao lado da mulher que vê. Na linha do queixo, na curva dos lábios, abertos nesse grito a dizer que nem mesmo quando morremos nos vamos. 

A mulher que vê, por não conseguir ver o que vê, fecha os olhos, e deixa que lhe suba garganta acima uma lágrima chamada gratidão. Nada lhe transborda os olhos, porque não sabe se o mundo terá tamanho para o tamanho do que vê. Nessa linha de queixo, nesses lábios em curva, vive ela mesma nas feições da outra, e nesta vivem as feições de quem partiu anos antes. Nesse encontro de tão poucas palavras há um apertar de mãos que as dispensam. São como eternas companheiras, com nada que haja além delas mesmas. Existem sem palavras neste espaço que, tanto quanto as separa, tanto as entrelaça. 

Esta é a terra que se agarra à mulher primeira com a força mais tenaz. Porque a quer para si, e porque ela morre-se por dentro em partes. Logo há de atravessar o oceano com o sabor do luto por entre os dentes, um luto que é antes de ser anunciado. Despedaça-se em aberturas d'água, porque é o fim de um começo novo, porque se afasta, dessa cidade e desse mundo que é tão seu que não o consegue conter dentro de si. Afasta-se do rio que a reflete, do mar que a acolhe, da luz que a ilumina, impalpável sobre essa cidade única que alcança o mundo da sua sombra.

E enquanto fecha os olhos e tenta medir o tamanho das coisas inalcançáveis, o tempo que se encolhe e escapa das suas mãos (umas vezes é muito, outras escasso), pede que a vida seja simples, e mais nada. Que as raízes se agarrem ao solo que se tenha sob os pés. Quer seja rocha, quer seja areia, quer seja água, quer seja qualquer coisa onde a vida germine quando parecer terminada.


Imagem - Margarida Pereira

19/05/2014

Malabarismos


Estou desde cedo à procura de um rumo de prosa, por entre a procissão de momentos grávidos de crônica que me acompanharam no fim de semana. Há uma multidão de palavras nascendo à minha volta, e para alinhavá-las procuro-lhes os elos. Em todas, a plasticidade com que se trata a vida. A disposição de mudança constante. A metamorfose ambulante. O moldar do cotidiano pelas mãos, como se a vida nos ofertasse vida sem jamais cansar-se.

Para começar, o filme curto (está logo a seguir a este texto) de Eric Aberg, e os Cubos Fantasmas que se transformam a partir dos movimentos das mãos. Mudanças de forma e de aspecto, parecem essências plasmadas em formas regulares. Eric é sueco, e parece entender e gostar bastante de malabarismo. De dentro de seus vários trabalhos, pesco alguém que se chama Paul Cinquevalli. Um polonês-alemão nascido Paul Kestner em 1859. Descoberto aos 12 anos numa apresentação de ginástica por um trapezista já famoso (de quem adotou o sobrenome artístico), Paul juntou-se à companhia, a despeito da vontade de seu pai de que fosse músico. Deduzo que fugiu. Vítima de um acidente no trapézio, que o deixou inapto para as façanhas aéreas logo aos 18 anos, Cinquevalli desviou-se na direção do malabarismo. Transformou-se em um dos primeiros malabaristas a se apresentarem em salões e teatros manipulando objetos do dia a dia, ora prosaicos, como garrafas, guarda-chuvas, pratos, copos, ora estranhos e pesados, como banheiras familiares, cadeiras, mesas. Em 1885 já fazia enorme sucesso em Londres (chegou a apresentar-se diante da família real), onde acabou por se fixar; lá morreu em 1918, no ostracismo que lhe rendeu a sua cidadania alemã. Eric Aberg dedicou boa parte de seu tempo à pesquisa sobre Cinquevalli. Proferiu inúmeras conferências e palestras a seu respeito. Esse, abaixo, é Paul Cinquevalli, fotografado em 1873.

Talvez seja a mobilidade aquilo que os une e que chama a minha atenção. A paixão por transformar o cotidiano e seus objetos e condutas em matéria plástica e moldável. Na mão de Aberg, cubos fixos e sólidos deslizam como água sobre si mesmos, como se a ousadia adormecida nas coisas fosse despertada pela vontade do homem. Desconfio que a máxima de Cinquevalli deva aplicar-se a Aberg também: "para ser malabarista, só existe uma maneira e uma regra. E a mesma coisa se aplica, tenho visto, a qualquer outra coisa na vida: quando a sua mente decidir fazer alguma coisa, mantenha-se nela até que seja feita."

O que poderíamos chamar de persistência ou perseverança. Algo que, de certa forma, nos impele na direção da esperança (isto é, de que os esforços empreendidos deem certo), o que por sua vez nos faz dar entrada nos domínios da fé. Essa, que move montanhas, é a que é capaz de nos fazer duvidar de nossas próprias dúvidas, e por isso mesmo nos mantemos nessa que, segundo o mestre malabarista, é a única regra e a única maneira: persistir até conseguir. Nada mais atual: nesses tempos de overdose de experiências e sensações e possibilidades, persistir e resistir à desistência é coisa vital.

Persistir une a raiz sistere (ficar firme, ficar de pé) ao prefixo pre (totalmente). Persistir é ficar totalmente firme, totalmente de pé. O tempo inteiro. Claro que cansa, claro que é preciso insistir, que nada mais é que repetir um esforço anterior. Perseverar junta o mesmo prefixo à raiz severus, que responde por sério, estrito. Seja nas coisas fáceis, seja nas difíceis, todas as palavras que contêm em sua formação essa raiz firme e de pé, sistere, são quase que imprescindíveis.

A intolerância, em todas as suas formas, põe à prova a nossa persistência, a nossa perseverança, a nossa fé. Está em todos os lados, dos mais expostos aos escondidos. Nasce da ausência do sentimento da fraternidade, da ausência do reconhecimento de nós todos como um único, um único cujo princípio é a existência da diferença como qualidade primordial. Como se eu aceitasse o outro ser igual a mim mesmo justa e especificamente por ser diferente de mim e eu dele. Quando tolero, recebo um estímulo e não tenho para com ele uma reação alérgica. Aceito-o e processo-o. Persisto na percepção da diferença do outro como garantia da minha própria diferença. Como se decidíssemos ler pelo avesso as palavras de Krishnamurti, aquelas em que ele diz que, ao nos nomearmos indianos, ou muçulmanos, ou europeus (ou corinthianos, ou evangélicos, ou umbandistas, ou cariocas, ou antropósofos), promovemos a nossa separação do resto da humanidade, e, ao nos separarmos dos outros por crença, nação, tradição ou ideologia, alimentamos a violência implícita de nos sentirmos em lugar distinto dos outros que não são ou pensam ou creem como nós. Delimitamos e isolamos o nosso espaço quando o nomeamos, e deixamos de pertencer à humanidade, porque a humanidade deixa de pertencer ao nosso espaço, ocupado tão somente por aqueles que são ou pensam ou creem como nós. Na realidade, quando restringimos o nosso espaço, restringimos a presença do outro em nós.

Uma mesa deixa de ser tudo o que poderia ser quando eu a nomeio: mesa. Da mesma forma, assim que me nomeio como forma definida, retiro de mim a existência de tudo que não nomeio para mim mesmo. Reflito-me num espelho esquecendo de que ele é apenas isso (um espelho), e de que apenas todos os espelhos, conectados e permeados uns pelos outros, revelam a humanidade à qual pertenço, e que, portanto, pode me definir. O que permeia os espelhos, e os conecta uns aos outros, é a essência onde se ancora a fé. A fé que persiste na capacidade da humanidade transformar-se a si mesma, a seus rumos e a seus paradigmas. A fé em que consigamos receber os estímulos uns dos outros reagindo a eles de formas novas e multiplicadas. Sem programações antigas e obsoletas, que nos limitem os caminhos de encontro que temos abertos à nossa frente. Todos eles.






Sobre Eric Aberg, além do filme ao lado: http://erikaberg.com/info/
Uma matéria sobre Paul Cinquevalli de um jornal inglês de 1897:
http://www.juggling.org/fame/cinquevalli/strand.html
Mais sobre Cinquevalli:
http://www.jongle-story.fr/jongleur.php?id=21
http://www.vam.ac.uk/content/articles/p/paul-cinquevalli/
A foto que abre o texto é de autoria de Ade Zeus, e encontrei-a no Flickr:
https://www.flickr.com/photos/ade_zeus/4660453343/