05/08/2013

Las huellas

  1. Sabe aquelas palavras, as de difícil tradução? Como huellas, por exemplo.
Encontrar-lhes similares em português é tarefa ingrata. Às huellas, eu prefiro-as assim, na língua de Antonio Machado, e é dele que me lembro no momento em que me aparecem. Porque Machado é o poeta do caminho, e eu penso no caminho que segue adiante, no caminho que se solta no vento ao passar, nos caminhos aos lados que às vezes se trilham, às vezes se sonham, às vezes enganam. E tudo porque lembrei de que "Caminante, no hay camino/se hace camino al andar".

A quem caminha, o alerta do poeta: "son tus huellas el camino y nada más". Aí estão as huellas. Volta-se a vista atrás, sob o olhar do poeta sevilhano, e lá está, claro e nítido como o amanhecer da areia, o caminho desenhado a cada passo. "Golpe a golpe, verso a verso", porque é de golpes e versos que se constroem os homens.

Mas as huellas. Como traduzi-las? Pegadas? Impressões? Rastros? Marcas? É tudo muito pouco, nada diz diante das huellas: mais fundas que as pegadas, mais marcadas que as marcas, mais sutis que os rastros, mais sensíveis que as impressões.

São elas, as huellas, isto que permanece em mim nessa amálgama que não sei se chamo de caminho, se de tempo. Huellas construídas no compasso dos dias, espaço a espaço, galgando terreno por dentro de mim. São e ficam, espécies fossilizadas no chão do próprio caminho. "Todo pasa y todo queda", e de tudo o que os meus olhos veem, são as huellas o que fica, são as huellas o que resta.

Huellas, descubro, deriva do verbo hollar. Pouco usado, tanto significa pôr os pés sobre algo quanto abater e humilhar. Talvez romântico, esse Machado para quem o caminho seja o andar, e as huellas sejam o que resta desse ofício de andador que é o nosso. Estas marcas de pés sobre nós: abatem-nos? Humilham-nos? São essência? Ou existência?

Ouço Machado em vários destes passos que ando no continente da memória. Ouço-o na voz do aluno a meio do filme "La lengua de las mariposas", à porta da Guerra Civil espanhola que dilapidou a vida (também) de Machado. Ouço-o num quarto de hospital, último registro da voz de Miguel, a quem levei o único livro que tinha de Machado, porque Miguel estava indo, às portas do outro mundo, e achei ser-lhe boa companhia, eu que o conhecia tão pouco. Ouço-o dentro de mim nos versos que na minha boca têm gosto de espuma de mar: "Yo amo los mundos sutiles/ingrávidos e gentiles/como pompas de jabón".

Entre o primeiro livro publicado, Soledades, em 1903, e o último poema encontrado no bolso de seu casaco, em 1939 ("Estos días azules y este sol de infancia"), vive um poeta que vale a pena ler, na sua própria língua, saboreando esses encontros de letras que a nossa língua não tem. Porque permite que nos carregue ao domínio da linguagem antes dela ter sentido, como a vida às vezes não tem sentido, e é bom que a linguagem lhe faça companhia. Especialmente quando não se vê nem ouve o caminho, e os pés decidem aquecer-se na areia para desgastar suas dores caminhantes. Depois, então, dá-se outra vez a razão a Machado: "se hace camino al andar". Porque é preciso andar para tecer os caminhos.

29/07/2013

Localização: Mikladalur, Kalsoy, Ilhas Feroés

Para quem costuma olhar para as línguas latinas com mais familiaridade do que para quaisquer outras, encontrar uma língua a meio caminho entre o norte da Escócia e a Islândia, falada por 47000 pessoas, espalhadas por povoados que podem ter entre 20 e 150 pessoas, é um evento que marca o dia. A culpa, se é que uma coisa dessas é fruto de alguma culpa, foi a peça de Robert Wilson que o SESC tem feito o favor de colocar à nossa mão. "A dama do mar", na adaptação de Susan Sontag para a peça do norueguês Ibsen, provocou-me, entre anteontem que a assisti e hoje, que tenho tempo de pensar nela, o desejo de saber mais. Provavelmente porque a encenação impactante ficou alojada dentro do meu cérebro e precisava de expansão.

Por isso, fui à procura da lenda da mulher-foca que teve a sua pele roubada e ficou aprisionada em terra. Para os três, Wilson, Sontag e Ibsen, esse é o ponto nevrálgico, que os faz aos três incursionar pelos labirintos metafísicos e simbólicos dos elementos. Seria o mundo humano imperfeito porque se afeiçoou à terra em vez de ter ficado no mar, lugar de onde veio e talvez devesse nunca ter saído?

A lenda nasce (e vive) em Mikladalur, um povoado minúsculo de uma ilha que já se tornou o meu desejo de viagem-assim-que-der: Kalsoy. É a ilha mais povoada das dezoito ilhas Faroés, as tais entre a Escócia e a Islândia: 147 habitantes; Mikladalur é um dos seus quatro povoados, e em 2006 contava com 42 pessoas. Do seu percurso histórico e linguístico, sobre o qual acabei de ler sem pretensões de guardar nada a não ser o que soasse interessante, apreendi o norueguês antigo e a Dinamarca, de quem as ilhas são região autônoma de há algumas décadas para cá. Seu nome, que na língua feroesa (língua feroesa: vou repetir isso até anoitecer!) significa "ilhas das ovelhas", parece dizer quase tudo sobre a sua vegetação e serventia: pastagem para ovelhas. A riqueza, dizem, está no mar, nos peixes. E é do mar que as focas saem, na décima segunda noite, que vem a ser o dia 6 de janeiro, após o por do sol. Com as consequências que se verão.

Mesmo com tão poucas pessoas, a ilha Kalsoy conta com dialetos. Percebe-se, leio, as diferenças entre um povoado e outro, embora todos se entendam quando se encontram e contam as novidades uns aos outros. Os povoados estão ligados por túneis, para os quais um site turístico alerta serem imprescindíveis lanternas. O túnel mais a norte, que liga Mikladalur a Trøllanes, é estreito, frio, úmido e escuro, e tem 2 km de extensão. Atravessa a região de Trøllanes e raramento se vêm veículos no túnel, porque lá só vivem 20 pessoas. Como para essas coisas tudo depende de quem fala, diz o site que as temperaturas são "amenas": para essas latitudes, "ameno" é algo entre 0 e 11 graus centígrados, o ano todo. A média, 6,7.  Segundo o site: verões frescos, inverno suaves.

Nesse anoitecer em que as focas saem do mar, despem as suas peles de foca e divertem-se como humanos (uma orgia, dirá uma das personagens no palco). E quando amanhecem voltam ao mar, e aguardam o próximo ano. Mas, um dia, um dos Mikladalurianos, escondido em uma caverna para ver as focas-gente, encanta-se com uma bela foca-mulher e corre a roubar-lhe a pele. Quando amanhece, a pobre procura sua pele de foca, e desespera-se e pede ao jovem que aparece que lha devolva. Mas ele recusa-se, obstinado como está de que ela seja sua, e ela segue-o até a sua casa (lá, antes, ele já havia escondido, sob chave, a pele roubada). Casaram-se e tiveram filhos, e viveram juntos por muitos e muitos anos. Até que, um dia, o homem esqueceu-se de levar a chave que sempre carregava em seu cinto, e sua mulher pôde abrir o baú onde jazia guardada sua pele de foca. Sem hesitar, vestiu-a e retornou à sua vida e à sua família marítimas. Antes, porém, apagou a lareira e trancou todas as chaves, para que suas crianças terrenas não se machucassem - o fogo e o corte, a lâmpada e a faca. Haja simbologia. Desisto da lenda, quero mantê-la no ponto em que ficou dentro de mim, que não prestei atenção ao seu desenlace (algo terrível, uma maldição de morte que se abate sobre a ilha).

Fico-me com a imagem do mastro a meio do palco, a dividir o mundo em quadrantes, assim como a história de Élida, a personagem principal ("uma potência anfíbia", diz um dos críticos da peça), se divide entre lenda e realidade, nos quadrantes que a vida lhe oferece. A oferta que ressurge do passado, e coloca em cheque o presente, o mar e a terra, a declaração de liberdade que aprisiona, a neurose para onde todos (aparentemente) caminhamos: a minha vida está agora povoada por mais uma ilha deste planeta, que meus dedos desejam percorrer, onde imagino se escondam as histórias que precisam ser contadas ainda que a primeira vista pareçam não ser nada, e só estejam à espera de quem as invente para que ganhem vida. Um pouco à maneira de Allende, quando se aproxima do arquipélago chileno de Chiloé em "O caderno de Maya", que acabei de ler estas férias: "donde el océano se come la tierra a mordiscos y el continente se desgrana en islas".

À esquerda, na fotografia, a ilha Kalsoy.

24/07/2013

A louça

Para as pessoas de quem aqui se fala

Sertão de Alagoas, meados da década de 50. A louça acaba de chegar. Um conjunto completo de café, almoço e jantar, acondicionado em grandes caixas de madeira e envolto em folhas de papel de seda. As empregadas que desembrulham as xícaras não sabem o que fazer com tanto papel, tão fino. As folhas acumulam-se, dobradas com precisão, ao lado das caixas. E a louça equilibra-se em cima de todas as mesas da sala.

D. Maria corre de um lado para o outro, enlouquecida com tanta fineza. A da louça, a do papel e a do presente que lhe convinha a filha não visse ainda. Não antes do casamento. Quando encomendara, imaginara algo grandioso, mas agora estava aflita porque seria necessário comprar mais armários onde exibir tanto belezura. Nem tirem tudo das caixas, vai dizendo às empregadas que se ajoelham no chão. E elas param, atordoadas.

Agora, D. Maria examina cada pires, um legítimo Wedgwood, e o delicado desenho a prata e ouro e traços de vermelho. Pensa ter escolhido um outro, faz tantos meses que enviou o pedido para Staffordshire, na Inglaterra. Pensa na longuíssima viagem de navio, imagina o desembarque de todas essas caixas de madeira no porto de Maceió, e o seu translado em lombo de burro até à fazenda. Melhor que considere o enxoval finalmente completo. As arcas com as toalhas de linho, as colchas adasmacadas, o faqueiro de prata, e agora as travessas e as sopeiras e as saladeiras. D. Maria senta-se em sua poltrona forrada de flores de chintz e suspira entre um inspirar e um expirar.

O casamento passa, as festas acomodam-se na memória, as fotografias nos álbuns. Francine já está na casa nova. As paredes caiadas de branco, os sofás estampados com as grandes flores de que os ingleses tantos gostam, as janelas abertas de par em par - está quente demais, esse verão alagoano. Nem uma chuva no horizonte que abaixe a poeira e levante o ânimo. Esses são os pensamentos de Francine enquanto não se atreve a olhar para o futuro.

A recém-casada organiza a arrumação das coisas, atenta ao relógio e ao horário do chá. O marido prefere a limonada, mas sua mãe fez-lhe ver o quanto os hábitos que não são os nossos nos engrandecem. As caixas ainda sem desempacotar assombram as paredes, e Francine decide guardá-las no quartinho à entrada do porão. Usa a louça branca para o serviço de todos os dias, e quem sabe, quando precisar, virá buscar esta tão fina. Quando vierem os convidados, pensa enquanto alisa a manga de cetim da blusa. Francine sente o prazer que lhe darão os jantares e festas que organizará ao longo da sua vida de casada.

As filhas nascem, e o sertão fica para trás. Na mudança para São Paulo, as caixas são desenterradas daquele quartinho de onde nunca saíram. A louça ainda dorme dentro delas. A casa grande acolhe tudo, com espaço e conforto. Até o dia em que é grande demais para o vazio que se incorporou à vida. Francine olha para as paredes que forram a sua vida e vê o passo diante de si: é preciso mudar e arejar. Ainda não é hora de voltar pras Alagoas, mas é hora de sair desta casa. Diminuir os espaços conforme a vida diminui a importância das coisas que pareciam preciosas e, afinal, eram só enfeites.

As caixas espreitam do armário da garagem. É a filha de Francine que se encarrega de abrir cada grampo que prende as madeiras. Mergulha dentro do oceano de seda que envolve cada peça e volta à superfície com tigelas e pequenos pratinhos que vão abrindo um sorriso em seu rosto. Seus gestos são ternos e macios como os gestos que embalam e recolhem recém nascidos. É preciso prestar atenção a cada dobra e a cada recanto em seu primeiro encontro com o ar. Cecília precisa separar os conjuntos que as netas de Francine herdarão - é muito louça para uma pessoa só, decidiram em conselho familiar na noite anterior.

Cecília escolhe um dia de sol e prepara um café da manhã para seus companheiros de jornada. Escolhe as tigelas e os pires e as xícaras que usará; as pequenas travessas para os pães variados; os potes para a manteiga e as geleias que encomendou; as leiteiras e os bules para o chá e o café; as jarras para os sucos e a água aromatizada com hortelã. Só por último escolhe a toalha, cenário para tanta beleza e história. A louça sorri para o ar à sua volta, o tilintar dos talheres faz com que ganhe a vida que nunca teve. Que tristeza seria, pensa Cecília, esse serviço ser separado ainda virgem. E seus olhos brilham conforme os companheiros chegam, um a um, e olham assombrados para tanta delicadeza, tanto amor que se deitou nessa toalha. E a louça - ah, a louça... A louça canta, enfeitiçada pelos sons e cheiros e tatos que são a novidade da sua vida.


23/07/2013

Basta um verso

De todos os poetas que me encantaram quando primeiro me deparei com as literaturas africanas em língua portuguesa, Jorge Barbosa foi o que, de longe, mais me comoveu. E por causa de uns versos simples, quase inócuos; desses que se colam aos nossos ouvidos e que, entra ano, sai ano, ali permanecem, música suave a embalar a passagem do tempo.

Jorge Barbosa nasceu no arquipélago de Cabo Verde no começo do século XX, e pertence ao grupo da Claridade, que, como pode bem imaginar-se, significou um farolete aceso na literatura chamada então de "ultramarina" pelo regime português. O movimento, aglutinado ao redor da revista que lhe deu nome (ou vice-versa), antecipou tendências e modernidades com uma espantosa clareza. Talvez daí a Claridade, mesmo sem que ela própria soubesse disso.

O poeta teve uma vida circunscrita às suas ilhas; a fronteira marítima serviu-lhe de moldura ao longo dos seus anos, mas a sua poesia elevou-se acima das ondas e fez com que navegasse longe. O mundo caboverdiano vive espremido entre o desejo de ir e a vontade de voltar; o caboverdiano há décadas é expulso da sua terra pelas condições difíceis da vida, que ali se ganha palmo a palmo. Há mais caboverdianos emigrados que caboverdianos em seu próprio solo, mas o que se diz é que o sonho de todos os que estão fora é voltar à sua ilha natal. Tanto quanto o dos que não partiram é ter um navio que os carregue. Jorge Barbosa inventou-se um navio costurado com palavras.

Tanto na sua obra quanto, de resto, na de todos os escritores africanos que criam literatura com o suporte da língua portuguesa, o Brasil tem uma presença iluminada. O Brasil-colônia liberta, o Brasil-Regionalista, daqueles que conseguiam diferenciara sua escrita da matriz portuguesa, inventando-se e reconhecendo-se longe dessa espécie de patriarcado feroz. Imagino uma espécie de ante-visão de si próprios nos trópicos, para esses africanos todos que só deixaram de ser colônia em 1975. A política fazendo vibrar a alma de tantos guerrilheiros-poetas.

O verso que ressoa em meus ouvidos está dentro do poema "Carta a Manuel Bandeira". É de tal forma preenchido e embrulhado e tangido por ternura, que (outra vez) faz com que o meu dia ganhe distância desse cinza frio tenebroso para onde a minha alma tinha escorregado nas últimas horas. Ouço-o e a minha alma respira, liberta. E é só isto, coisa mais simples!, que quando dito em voz alta ganha espaço e corpo e tempo.

Aqui onde estou, do outro lado do mesmo mar,
Tu me preocupas, Manuel Bandeira,
Meu irmão atlântico.

Deve ter sido para escapar do intangível da vida, das coisas e das pessoas que os deuses inventaram a palavra poesia.

21/07/2013

Moustaki


Há muitos anos, aprendi algumas canções francesas. Aprendi a tocá-las ao violão, e cantava-as, a duas vozes, com meu inesquecível amigo Stéphane. Estávamos em Zinal, nas montanhas suíças, rodeados por pessoas que se procuravam a si mesmas e pouco mais - era muito. Numa noite, Stéphane chegou com seu violão e sentou-se como quem vai bater um papo. O papo durou muitos dias, entremeado por cifras e letras e descobertas de um país musical que eu desconhecia e ele me apresentou.

Entre essas descobertas, muitas delas tinham a assinatura de Georges Moustaki. Descubro hoje que Moustaki morreu há poucos meses, e não consigo deixar de imaginar um Stéphane ansioso à porta do céu, suando frio por poder receber o amigo antes de qualquer outra pessoa. E Moustaki deve haver chegado, com certeza de cabelos despenteados pela viagem e o mesmo olhar sonhador de sempre, e deve haver encontrado entre os braços de Stéphane o mesmo forte abraço que levou consigo.

Talvez tenham se sentado para ver o pôr do sol, se é que do céu pode ver-se o sol quando se despede da terra: um grego nascido em Alexandria, no Egito, entrelaçado às culturas judias, gregas, italianas, árabes, turcas e francesas, e um francês de Marseille, quase russo e cigano. Talvez Stéphane tenha começado a dedilhar "Portugal", versão em francês do "Fado tropical" de Chico Buarque. Talvez tenha começado a cantar os primeiros versos como se sem intenção, com a voz cristalina cheia dos veios escuros e densos que a Rússia lhe legou, e que lhe permitia dançar por entre culturas como o próprio Moustaki fazia. Talvez tenha se emocionado em algum momento, talvez haja nesse instante portugueses à porta do céu, e talvez eles se sentem por ali, porque as lembranças da sua encarnação ainda persistem em seus órgãos, e precisem de mais uns instantes antes de irem à fase seguinte.

Moustaki deve ter-lhe pedido o violão emprestado, para apresentar-se a si mesmo a São Pedro. Imagino que escolha a mesma música que levantava qualquer plateia em qualquer lugar - qualquer, de fato, porque Moustaki era um errante por natureza, e pouco tempo viveu em cada país por onde passou. Ainda que tenha se ligado tão fortemente à França, a Georges Brassens e a Edith Piáf. Cantaria Le Métèque antes de atravessar o umbral. https://www.youtube.com/watch?v=TbhN8tYKjoA

Apaixonaram-se ambos, no fim da vida, que de um foi longa e do outro nem tanto, pelo Brasil, pela bossa nova, pela Bahia, por Jorge Amado. Talvez o bahiano afinal esteja também à porta do céu. Se é para lá que os comunistas peregrinam quando esta vida termina.

Esse Brasil que depois se tornaria a minha vida, a minha escolha de chão, o lugar de privilégio da minha alma, chegou-me de várias formas, vários sentidos. Passados anos dessas semanas em Zinal, Stéphane  foi um dos primeiros a me trazer os trópicos do meu futuro -  Moustaki fez-lhe companhia, na capa do LP que Stéphane me mandou já não sei bem onde morava eu na época. 

E a porta do céu deve estar neste instante cheia, cheinha de gente, que chega de todos os quadrantes por onde ambos andaram, nessa aventura contagiante de descobrir o que mais gostavam de descobrir: pessoas. Só posso ser grata por ter sido uma delas, e porque cada um deles, à sua maneira particular, ter feito a sua aparição na minha vida, e me legado essa possibilidade de dor tão particular que é a saudade. Devem ser eles, e os coros dos anjos, que ouço cantar. https://www.youtube.com/watch?v=B_JXfpBRe5o


Ainda mais umas, para quem gostou:


La carte du tendre, Joseph e L'homme au coeur blessé


Águas de março

C'es Là



Ma liberté (um de seus últimos shows, em fevereiro deste ano)

19/07/2013

Macular

Em meio à revisão de um romance sobre livros, descubro várias coisas interessantes. Por causa disso, a revisão demora mais tempo do que deveria, enquanto eu me divirto vagando por universos que se descobrem diante dos meus olhos, paralelos e cada vez mais distantes da questão que me levou até eles.

Descubro a existência de uma expressão específica para os livros publicados entre 1450 e 1500, os alvores da imprensa. Em tipos móveis, essas publicações são chamadas de incunabulas - as provenientes do berço. Não deixa de causar-me assombro a quantidade de coisas que se desconhecem, e a sua capacidade de aparecerem quando menos se espera. Sempre me pareceu que berços e livros tivessem uma relação muito particular, mas não sabia que tinha nome.

Descubro também o que são máculas. Coisas bem mais interessantes e abrangentes do que a sua falta na Virgem Maria, que por ser Imaculada (supunha eu) não carregava em si nenhum pecado. Algo assim ficou em minha memória dos tempos de catecismo. Máculas, achava eu, eram manchas, sujeiras agarradas à nossa alma, às quais o padre N. dava o nome de pecado, com um olhar enviesado que me fazia olhar também de esguelha para a porta atrás de mim, preocupada que me agarrassem e me condenassem ao fogo eterno. Mas são muito mais interessantes do que isso: nos livros, são pequenas manchas amarronzadas provocadas por umidade ou falta de ventilação adequada, e constituem importantes sinais para qualquer colecionador de antiguidades livrescas.

São evidências da passagem do tempo.

E o tempo esvai-se enquanto penso nessa Virgem nova que me aparece sem essas novas máculas. Sem evidências de que o tempo passe por ela, e por isso não a manche. Esta é a Virgem que se renova a cada instante, porque o tempo para ela não passa nem existe nem causa sombra. Porque Ela é para além dele, como nossa essência. Prefiro-a bem mais do que à outra,  e parece-me fazer bem mais sentido.

Como os livros, também a pele tem as suas máculas. As causas são várias. A concentração de melanina produz máculas com excesso ou deficiência de pigmento; percebem-se a olho nu, como manchas mais escuras ou claras. Defeitos na microcirculação da pele também causam manchas (como o eritema, que desaparece sobre compressão e depois retorna, como me informa sisudamente o texto médico que leio), assim como as máculas hemorrágicas, as equimoses, que podem ser pontos, ou linhas, ou placas. Mudam de cor conforme a concentração de hemoglobina do sangue diminui, e por isso vão do arroxeado ao amarelado em alguns dias - e nelas se percebe a passagem do tempo, o envelhecimento das dores, o esquecimento cutâneo dos danos.

Dos livros à pele, e dela de volta aos livros: é preciso que a revisão termine, para que eu possa dedicar-me a ler a pilha de livros que guardo ao meu lado, sem prestar muita atenção ao tempo que terei (ou não) para acariciar cada uma das páginas-pele à minha espera. Poderia continuar perdida em pensamentos sobre o que faremos sem a pele dos livros quando a hecatombe virtual nos dominar por completo, e sucumbirmos à praticidade óbvia dos ebooks e aparentados. Mas não devo - porque o tempo começará a passar veloz entre os meus dedos e o fim da revisão, e é preciso terminá-la.


16/07/2013

Nerudianas

Para mi corazón basta tu pecho
para tu libertad bastan mis alas.

Penso que Neruda pode bem ter acabado de escrever estas palavras, como costuma, do seu baluarte diante do Pacífico, nessa sua opção de pescá-las conforme as vê formarem-se à sua frente. Talvez possa dizer, meses depois, quando o mar lhe falte e o céu se anuncie, que sente o fim do oceano diante dos olhos, a inexistência do arrastado barulho das ondas em seus ouvidos. A mesma coisa estampa-se hoje na areia da minha praia. Essa praia que são tantas e ocupam todas as paredes da minha morada.

Tenho a inspiração do poeta sentada ao meu lado, e com os seus olhos por dentro dos meus posso ler as palavras que evaporam de cada franja de espuma. Como se me escrevessem a mim mesma. Como se eu pudesse, a cada uma delas, transportar como desenho para adornar essa musculatura serena que tenho entre os dedos. A que os homens usam quando dormem. A que só se percebe por baixo de um lençol ténue, essa forma fugaz e branca e leve, como as nuvens que se formam na ausência e encobrem o horizonte aquático que ainda não existe diante dos olhos.

E aqui está o poeta, esse corpo feito todo inteiro de palavras.

Pergunto-lhe: se nos bastam peito e asas, para que os punhos fechados, os braços crispados, os olhos nesse arder acossado? Para que, se estão coração e liberdade à espera, e o peito aberto, e as asas estendidas? Do que estamos à espera? Nessa estrada que sabemos feita de nuvens? Como as que desenham as pegadas antes sequer que os pés se movam, antes que as ondas apaguem os rastros com os seus dedos de medusa? 

Talvez responda: a nossa geografia é feita de plumas, e a nossa anatomia do ar que encharca invisível a pele escassa dos pulmões. Talvez por isso o amor tardio, talvez por isso a capacidade pétrea de não nos arrancarmos de onde estamos por não saber onde cairíamos. Como se a vida fosse incapaz de ressuscitar os canais extintos.

Adormeço-me dentro das palavras, neste poente lunar que guardo entre os dentes, como se o apoiasse na língua e esta se compusesse de todas as palavras que penso para que o mundo se forme, úmido, à entrada da minha garganta.


15/07/2013

Vizinhos de rua

Aproveito o dia ensolarado pra levar minha xícara de chá a passeio. Do outro lado da rua, com o calor característico desta cidade logo às 8 da manhã, dona M. já está de mangueira em punho e vestido de alças, nesse cotidiano esporte local que constitui lavar calçadas. Em seu rosto redondo, dois olhinhos apertam-se querendo que eu acredite que ela sofre de vista difícil. Não consegue, eu já tenho provas suficientes do quanto M. é expert em ver as coisas do outro lado da calçada – no caso, as minhas janelas. É efusiva, ela, e dirige-me o cumprimento costumeiro, abraçando-me com seus braços largos.

‒ Ana, mas quanto tempo... desta vez fica o resto do mês?

Não lhe digo nem que sim nem que não, devolvo-lhe o sorriso e ouço-a reclamar da sujeira da frente de casa.

‒ Nada disso é meu, vê se pode... ‒ e vai varrendo hidraulicamente a tal da sujeira até o limite da casa do lado esquerdo.

‒ Novos vizinhos, dona M.? ‒ pergunto-lhe, percebendo o quanto eu mesma atravessei a rua querendo saber da vida alheia. Estas coisas pegam-se.

Pois é: novos vizinhos.

‒ Você não sabe o que eu estou passando, Ana.

Por acaso sei. Ouvi-os uns dias atrás, num pagode que durou o dia inteiro e insinuou continuar noite adentro, interrompido apenas (descubro agora) pela ameaça de dona M. chamar a polícia.

‒ Gente difícil, Ana, eu não merecia isso no fim da vida... Olha lá a janela do meu quarto, não consigo mais dormir...

Agora é dona L. quem atravessa a rua. Magra e baixa, de cabelo curto todo branco, parece um passarinho correndo através dos paralelepípedos. Tem um piano em casa, e, quando a filha vem visitá-la, a rua inteira ouve as sonatas que a sua memória recupera.

‒ Vi vocês lá da janela da sala! Um convescote em plena manhã, que beleza!

E dá-me dois beijos sonoros, um em cada bochecha, que é o que sempre faz quando me vê.

‒ M., minha filha, que barulheira foi aquela esses dias? Quase chamei a polícia pra você! ‒ e dona M. retoma o fio da reclamação do pagode vizinho, que lá pela meia noite já não concatenava o ritmo do surdo com as batidas esporádicas de um pandeiro perdido.

‒ E bebem, L., como bebem, ai que tristeza...

Dona S., do outro lado, abre o portão e torna a fechá-lo correndo. Minhas duas companheiras abrem ao mesmo tempo um sorriso mecânico, calam-se e entreolham-se como se tivessem combinado. E decidem querer saber como estou. Na verdade, não querem: querem saber é da minha convivência com dona S. Não sei a quê andarão prestando atenção, mas desconfio que esse sorriso automático tenha alguma relação com a calçada. Dona S. ainda não perdeu o costume de lavar a minha calçada quando a lava a própria, e me fazer saber do fato (coisa que acontece, pelo que sei, todos os dias). De pouco adianta eu lhe dizer que prefiro não a lavar, que gasto de água sem necessidade etc etc. Estas duas senhoras devem ter ouvido reclamações do lado de lá.

Para desviar do assunto dona S., elogio o muro de dona L., todinho recoberto de unha de gato, numas formações antigas e bem aparadas que parecem até desenhar silhuetas medievais por cima dos tijolos chapiscados. E digo-lhe que não vejo a hora dessa obra interminável de minha casa acabar para poder plantar pelos menos umas três árvores na frente dela – pata de vaca, ando pensando, uma de cada cor... Dona L. não perde tempo.

‒ Ah, Ana, boa sorte. O pobre do seu Ambrósio [defunto morador da minha casa] bem que tentou... As mudinhas sumiam toda vez que ele as plantava, de madrugada, ninguém sabe como – e, enquanto fala, seu olhar passeia entre as casas de dona S. e a de sua filha, cada uma a um lado da minha. Dona M. encolhe os ombros e dispara na direção de L.:

‒ Vizinhos a gente não escolhe, vai fazer o quê...

E L. cabeceia e marca seu gol de saída:

‒ Mas M., a Ana aqui foi premiada! Dos dois lados? ‒ e ri até dizer que está na hora de entrar, precisa caprichar no almoço, que a filha vem visitar. Vamos ter piano mais tarde no nosso quarteirão.


12/07/2013

Dia de pesca

O tempo tem andado bom, aqui na praia. Desde criança gosto de andar na areia, vou e volto vezes sem conta, tanto faz o sol, o vento ou o frio. Quando pequena, diziam-me que era hiperatividade, agora posso dizer que preciso de exercício, e ninguém parece incomodado. Às vezes, vou falando sozinha, dando-me conselhos que na maioria das ocasiões não sigo, ou conversando com quem está longe, fato que dificilmente me impede de ouvir respostas. Com tempo bom como este, a praia não está deserta, e convém que olhe na direção do mundo concreto, muito mais plausível. Deve ser por isso que reparo nesse casal que já ontem percebi pescando aqui na ponta da praia, um sentado ao lado do outro nas suas cadeirinhas baixas, as duas varas bem em frente, enterradas na areia, as linhas esticadas a perder de vista. Quando passamos, na ida, estão sentados, mas na volta a senhora de chapéu está sozinha. Sorrio daqui, sorri de lá, e enlaçamos conversa.

Dona Maria chegou há três dias, não pescou nada até então, mas isso é só um detalhe para essa senhora que faz amanhã 60 anos. Moradora de Santos, costuma pescar na Boraceia, ou na Barra do Una, mas tanto ela quanto o marido enjoaram de pegar peixe no rio e vieram pra cá, pra praia. É o que ela prefere, diz, com os olhos piscando pela luz refletida na areia. No rio não entra na água, aqui leva a linhada lá pra longe e volta nadando, devagar, só rindo do tanto de coisa que a vida ainda lhe reserva. Três dias de pesca e não pegar nada só pode ser coisa da lua – é lua nova, bom mesmo é lua cheia ou crescente. Digo-lhe que a lua ontem estava tão linda e sorridente que achei já estivesse crescendo, mas ela garante que não. Se não tem peixe, é porque não tem lua. E encolhe os ombros e nem se aflige, porque a lua continua seu caminho e ponto. Logo mais haverá peixe.

No dia das mães convidou filhos e netos (já são quatro) para uma moqueca, e todo o peixe que usou foi ela mesma quem pescou. “Feliz?”, pergunto-lhe eu, só pra que continue falando, que feliz é óbvio que ela está. “De todos os jeitos”, diz ela: “já plantei uma árvore, já tive filhos e netos, já comi o peixe que pesquei – só me falta o livro”. Tento ajudar, prometo-lhe a crônica. Os olhinhos piscam por detrás das lentes e da armação vermelha e pergunta: “É? Você escreve? Mas que beleza! E pescar, pesca?”. Decepcionada com a minha resposta, diz-me que é preciso paciência, mais nada. Tanto faz se vem peixe como se não vem, bom mesmo é ficar aqui, eu e o homem, fumando um cigarro sossegados e olhando as ondas que não vão pra lugar nenhum.

Na próxima folga vão até Paraty. “Só fico pensando na distância... o que é que os filhos vão fazer se precisarem de mim?”, diz ela batendo a cinza do cigarro enquanto acaricia a carretilha da vara de pesca. Diz que não gosta de ir muito longe, por medo de ser necessária e não estar lá pra acudir. Como da vez em que a netinha caiu da escada e só ela conseguiu acalmá-la pra costurar o corte. Ou como quando Mateus precisou arrancar um dente e declarou que só ia com a avó. Não pode mesmo ir pra muito longe, esta avó que enquanto fala comigo espia o marido dentro do mar, parece que só vai voltar quando nos formos embora, “é que ele não gosta muito de gente, sabe?”, num convite delicado para que nos retiremos.

Fica-me o sorriso de dona Maria dentro dos olhos, e essas ondas que vêm e vão – ou eu achava que viessem e se fossem, mas dona Maria tem razão: estão sempre aí, não tem idas e nem vindas. Não sei o que mais haverá na vida que tão inocente e absoluto se declare presente. Nem sei se, existindo, eu teria olhos para ver. Talvez eu tendesse a perceber as diferenças entre as gotas, mesmo sendo todas quase iguais umas às outras, e não conseguisse sucumbir à beleza que dona Maria vê nas coisas que não mudam nunca, e jamais o farão. Talvez seja preciso treinar o olhar para ver as semelhanças, e encantar-se com elas, tal qual fazemos com tudo o que é tão diferente de nós mesmos.