06/09/2012

Palavras perigosas


Avanço noite adentro olhando de soslaio para as tarefas que preciso cumprir – seja terminar o romance em mãos até o dia previsto, seja dar andamento à tradução com prazo. O olhar que tudo me devolve é esse: tarefas sem cor a serem cumpridas no tiquetaque do relógio. Por isso, faço uma pausa para inventar outra coisa, para que as horas que se aproximam me sejam produtivas. Palavras em forma de crônica às vezes servem para isso – para desempoeirar a noite, para temperar as horas de qualquer sabor que se invente mais colorido e transforme tarefas em alvos a serem atingidos alegremente.

Passei o dia com uma ideia em movimento dentro de mim: dos vários perigos que rondam as palavras, o maior deve ser o que ronda as que agregam no seu começo o prefixo sub. Tudo o que vem depois dele, antes mesmo que comece a ser, apresenta-se logo diminuído. Como uma maldição, uma sentença, um aviso em letras garrafais. Casas subavaliadas, por exemplo: moradias às quais não se presta a atenção devida. Palavras subentendidas: correm o risco de nunca serem realmente percebidas tal qual se queria, e tornam-se menores em importância. Atitudes subreptícias: esgueiram-se por onde não devem, e tornam-nos menores do que esperamos tornar-nos. Propagandas subliminares: atingem-nos sem que possamos nos defender, e esmagam-nos até sermos menos do que somos.

Estimar é gostar de alguma coisa, ou pessoa, e cuidar dela. Da maneira como ela precisa, que às vezes não é muito exatamente a nossa própria maneira. Uma arte, desapegar-se de si mesmo para agregar o outro, dar-lhe o valor que tem, partes diferentes confundindo-se num todo maior, sem subs de permeio. Quando se gosta menos do que o outro merece, e quando se cuida menos do que o outro precisa, subestima-se o que ele é. E ele diminui. 

As palavras podem fazer-nos definhar. Por isso o perigo.

Em momentos assim, é como se mergulhássemos o ouro que temos nas mãos em águas turvas. Perdem-se as mãos e perde-se o brilho. Desperdiça-se tempo, dedicação, atenção, pensamento. É preciso, a todo custo, equilibrar opostos, desviar de contradições, aproximar o que é diferente através da aceitação – e talvez a mais difícil seja aquela que nos diz respeito, a nós mesmos, as nossas pequenas diferenças, agulhas espetadas em nossos pontos mais sensíveis. Não somos iguais o tempo todo, mas não precisamos ser subnada: como vários eus que se encontrassem e transformassem o espaço entre si numa festividade alegre.

Às vezes antíteses, às vezes paradoxos, nossos sentimentos tendem ao inteiro, mesmo quando os tentamos converter em subprodutos da nossa matéria. Não se pode viver em subtração, em subdivisão, num subtempo que tenta a qualquer preço converter-nos em subpessoas, vivendo às metades cada parte do dia, deixando para logo mais o que deveria estar e ser, estendido em nossas mãos, a todo momento.

É preciso guardar o ouro no lugar em que brilha, e não nas profundezas do que subjaz. É preciso sobreviver. E as tais tarefas, que de longe pareciam submeter-me a uma prisão sem grades, reluzem diante de mim como a própria sobrevivência. Deixo tudo em mim em aberto, e avanço para cada uma delas como se de ouro puro se tratasse. Limpando os sub que se interpõem entre a vida e eu. Arejando os quartos onde a vontade mais profunda se detém, à espera.

05/09/2012

Exercício: a personagem, ao acordar

Como se a pele descamasse para dentro, lembra-se Isaura ao acordar. Como se todos os toques do mundo, os sutis e os mais densos, fossem absorvidos por uma camada de derme invisível, interna, que os microscópios insistem em não detectar. Deve ser assim, pensa, que as pessoas se compõem. Das marcas por baixo da pele evidente.

Isaura demora-se na cama. Procura dentro de si os toques mais antigos, aqueles que a fizeram nascer e brotar para a vida, os primeiros dedos que imprimiram as suas dobras infantis. Estão lá, pressente, como condições que outros impuseram ao tato que construiria durante a vida inteira. Lembra-se da mãe, dos irmãos, da vida de pequena, tão fácil de ser vivida enquanto sequer era pensada. Uma maciez que acoberta os bruscos redemoinhos da vida, todos eles prensados nessa pele de dentro, escamada, transparente.

O cheiro que cada tamanho de amor plantou por entre os seus poros está lá, nessa fina película de memória táctil. Encostam-se uns aos outros, esses cheiros feitos de poros alheios, filtrados e perenes. Descansam imóveis, numa forma quase intacta de memória. Isaura só pode vê-los de fora; perderam o aroma, são só formas estelares de escamas de pele que entraram dentro de si em vez de se espalharem no cosmos.

Não podem ser trazidos à tona, e é essa percepção que faz com que a presença morna do cobertor contraste com o frio de fora. Isaura deveria levantar-se, de um pulo, concretizar-se no dia de hoje. Mas demora-se, como raramente faz. A sua pele de fora ainda se ajeita no dia de hoje, incapaz de relacionar-se com a teia de vibrações antigas que a faz ser quem é. E sem querer, muito sem querer, Isaura incomoda-se. E sofre. Sofro de mim mesma?, pergunta-se de olhos fechados, resistindo à tentação de abri-los e perceber o quanto a sua pele de fora está dentro do presente.

Talvez se soubesse o que fazer com o seu tato de hoje. Talvez se as rugas que colecionou vida afora não a lembrassem da passagem inabalável do tempo, seus começos e fins anunciados. Talvez se houvesse viço nessa pele seca pela falta de chuva. Talvez se seus olhos tivessem a capacidade de ver através de todas as camadas. Talvez se conseguisse reter dentro do espaço que formam os seus dedos a presença etérea de Armindo, Armindo longe, Armindo não sabe onde, Armindo que a deixa de rastros, Armindo que se ausenta e lhe oferece com mãos quentes um vazio feito de luz e solidão. Mas a vida acorda toda sins e nãos, os talvez não têm espaço e Armindo, Armindo escapa por entre os dedos, desliza pela palma da mão e escorrega para o silêncio.

E Isaura levanta-se. Toma banho. Arruma as suas coisas, quase maquinalmente, preparando-se para vestir a pele com que o mundo a reconhece. E pergunta-se, enquanto fecha a porta à chave, se conseguirá suportar-se ainda muito tempo.

28/08/2012

Por causa do plâncton


Nos encontros de escrita criativa há exercícios que surgem, assim de repente, e que constituem surpresas linguísticas. Muitas vezes as palavras que os outros me aportam ficam na minha memória mais profunda – transformo-me em porto para dar-lhes guarida, esperando que se sintam em segurança e não me abandonem. Eclodem depois, também de repente, como se aguardassem numa paciência de gestação que eu as alinhavasse às impressões do cotidiano mais prosaico. Nessa troca de roupagem, o dia a dia esgueira-se para dentro da magia que as palavras contêm em si mesmas. Ilumina-se e ilumina-nos. Quase que à maneira de uma Orides Fontela: “A luz está/em nós: iluminamos”. Porque o que vem do outro ilumina-nos. E porque num passe de mágica, a realidade plástica das palavras torna-se movimento livre diante dos olhos. Foi assim, dia desses, com a palavra plâncton.

Graças a M., que estudava afincadamente para a sua prova de biologia, descubro (os demais já sabiam, a única biologicamente inculta era eu mesma) que plânctons não nadam contra a corrente. Permanecem em suspensão, algas e organismos minúsculos, deixando que o movimento das águas que habitam os conduzam, plenos de fertilidade. São seres errantes (plágchian, contam os gregos), e ainda por cima sintetizadores de luz. Iluminam-se. Aos nectons, peixes que acompanham o fluir aquático, acontece o mesmo: acompanham a corrente das águas, tão à vontade nessa entrega que lhes é destino.

Já os benctons (M. com certeza terá uma nota fantástica na prova!) são diferentes: associam-se ao que não se mexe para (talvez) não se deixarem levar pela correnteza. Agarram-se às rochas que encontram, e lá ficam, observando imóveis e previdentes o fluir da água. É bom que haja faróis atentos ao movimento em volta, como guardiões. Talvez os benctons o sejam, e assim plânctons e nectons fluam com mais tranquilidade por entre a espuma e as ondas. 

Todos vivem na água, seu elemento de base. E é pela água que eles me interessam: vejo-a por todas as partes, até nas mais sólidas do corpo dos outros. Enquanto escrevem, estes meus alunos tão aplicados e plenos de entusiasmo, nem percebem que os observo, procurando por entre seus gestos, por entre as pausas que fazem enquanto procuram no ar a palavra que lhes falta, a presença da água que trouxeram para dentro da sala, com seus plânctons, seus nectons, seus benctons, todos esses seres dóceis e sensíveis ao toque do elemento líquido na sua constituição. As mãos fluem pelo papel, vejo-as tornarem-se menos densas, brincando com as palavras que escorregam dos dedos para dentro da folha em branco. Uma ri, sozinha, naquele alheamento de quando as palavras nos fazem cócegas; outra, escreve e apaga, num meneio de cabeça que indica que não, ainda não é assim que quero dizer o que quero dizer; um outro está absorto, e é ele quem mais parece procurar as palavras que ainda lhe faltam. Porque os tempos são diferentes e este, que precisa do seu próprio tempo para desentocar as palavras das cavernas em que brincam de esconder-se, sorri finalmente e começa a escrever com um brilho aquático por entre os olhos. Eu mesma estou mais líquida, da cor das lágrimas que escorrem por dentro, como sempre fazem as minhas águas internas quando as palavras assumem seu lugar ao leme desta sala em que se escreve.

27/08/2012

Benvinda


Num certo momento da sua vida, meu pai tomou a decisão de, em vez de comprar uma casa, abrir uma loja de material esportivo. Revendedor exclusivo da Tretorn, marca que patrocinava a sua carreira de tenista, em poucos meses confirmou-se o vaticínio do meu avô: encordoamentos de graça para o amigo querido que nunca lhe negara o ombro, bolas distribuídas pela rapaziada que amava tênis mas não tinha dinheiro para comprá-las, demonstrações de produtos que pouco rendiam – o tino comercial do meu pai abria um rombo incompreensível nas finanças familiares. 

Meu pai viajava, e eu muitas vezes com ele, para torneios e campeonatos. Não conseguia decidir-se: o que era ele afinal? Um jogador em competição ou um vendedor em busca de negócios? O jogador invariavelmente ganhava. E o vendedor esquecia-se de vender, e preferia distribuir faixas de cabeça para divulgar a marca e deixar os outros felizes com o presente. Não sei quanto tempo a loja durou, mas tivemos bolas e raquetes e bolsas Tretorn espalhadas pela casa durante décadas.

Numa dessas viagens a campeonatos, creio que ao Algarve, lembro-me de uma senhora, rosto emoldurado por uma espécie de capacete de cabelo louro, olhos azul cobalto e imenso entusiasmo com o tênis. Chamava-se Benvinda. Eu era pequena, e fiquei encantada com esse nome. Aprendi, com ela, a diferença entre substantivos próprios e comuns: próprio era o nome dela, Benvinda, invulgar e cheio de esperança, ela mesma uma pessoa invulgar, de hábitos diferentes da maioria das mulheres que me rodeavam. Andava sozinha, fumava uma longa piteira de prata e tratava todos os homens por “tu”, numa desenvoltura e alegria que insuflava vida a qualquer ambiente a que chegasse. Sentava-se nas arquibancadas com um chapéu branco imenso, e chamava-me para sentar-me ao seu lado. Ria, apertava-me a mão e comentava cada lance a um lado e ao outro da rede. Não tinha favoritos: eram todos seus favoritos.

Comum, especialmente para ela, era sentir-se bem-vinda. Contagiava-me, o espírito de Benvinda, e era também bem-vinda que eu me sentia por entre raquetes e redes, divertindo-me mais com a observação do público do que com o jogo em si, em liberdade quase absoluta enquanto meu pai jogava e torcia pelos amigos que também jogavam. 

A sensação de ser bem-vindo é poderosa. Uma espécie de sentimento de adequação, de certo no certo, um aquecimento interno que desenha um sorriso leve nos lábios. São horas preciosas, quando nos sentimos assim. Podem ser as cores de três vasos de flores simples que pousam anonimamente em cima da mesa da sala. Ou o pão de mandioca deixado à porta, embrulhado num paninho bordado, com dois galhinhos de flores lilases e o bilhete sem assinatura: “Bem vindas”. Ou o bem-vinda que se ouve, num sussurro quase em silêncio, a meio da noite, como a morada de um reconhecimento, um aquecer que adormece de sorriso interno. Desconfio que andei sonhando com o chapéu esvoaçante de Benvinda pairando por cima dos campos de saibro. Sorria-me, ainda de longe, e acenava-me com a mão, num movimento aéreo de “vem sentar-te comigo, sê bem-vinda!”.

23/08/2012

Hiatos e ditongos



Hiatos, diz-me Aurélio (Buarque de Holanda) são encontros – de duas vogais, uma no fim de uma sílaba, outra no começo da próxima. Criam-se, penso, a partir de um vazio, de um vácuo, uma falha no tempo comum – uma questão de tonicidade, dir-me-ão alguns, mas é muito mais do que isso. É um pulo no desconhecido, breve e rápido, quase imperceptível. As sílabas sentem-no, mas o nosso falar apressado quase que consegue suprimir a falta. E pensa-se que há som sempre, e o silêncio tênue dos hiatos não se escuta.

Usa-se falar de hiato também na anatomia dos corpos: aqui, o hiato é uma fenda ou abertura no corpo humano, um espaço entre duas realidades da carnadura concreta. E é ainda aplicável a qualquer campo semântico: uma lacuna, um intervalo. De onde vejo, um espaço de tempo dentro do tempo, onde quem sabe se respira melhor, onde quem sabe se vê melhor, onde quem sabe se sente com um sentir mais sentido. Isso, se há espaço para o silêncio, porque seja de som ou forma, um hiato é sempre sempre intervalo, fenda, abertura, vácuo. Quanto mais penso neles, mais eu gosto dos hiatos, espaços vazios imperfeitamente perfeitos. Como se uma perfeição feita de mil pequenas imperfeições – as nossas lacunas e falhas e intervalos e silêncios reunidos e em encontro uns com os outros.

Às vogais que se juntam numa mesma sílaba, unidas visceralmente, dá-se o nome de ditongos. Por vezes crescem, por vezes diminuem. Uma questão de entonação, de sonoridade, de ordem das coisas dentro do mundo próprio da palavra. Cresce-se ao dizer o ditongo que contém a palavra “quando”; e diminui-se (paradoxalmente) ao vocalizar o ditongo presente em “mais”. 

A poesia lida de forma livre com os ditongos: cria hiatos para conseguir o tempo e o ritmo certos. Camões assim fez - expandiu ditongos em hiatos, num processo a que tecnicamente se dá o nome de diérese. O poeta clássico, num de seus muitos sonetos, expande a palavra saudade para nos tornar mais palpável a distância que existe entre os olhos de quem ama e o seu objeto de amor. No terceiro verso (veja logo aí embaixo), expande o ditongo da palavra saudade para nos preencher  justamente de mais saudade, para que ela seja mais e maior do que parece à primeira e ditongal vista: primeiro, sau-da-de, depois, sa-u-da-de. Uma percepção sutil e fina do tamanho da falta que sente aquele que ama e está apartado do seu amor, em sílabas que só são 10, como deve ser um soneto, porque a saudade recebeu ar dentro dela.
                   
                     Têm feito os olhos neste apartamento
                     um mar de saudosa tempestade,
                     que pode dar saudade à saudade,
                     sentimentos ao próprio sentimento.


A vida embrenha-se numa sucessão de hiatos e ditongos. Às vezes, espaços que se abrem no vazio, e nos separam em sílabas que se juntam apenas pelo silêncio que se faz entre elas, a supressão do que é comum abrindo espaço ao divino. Outras, espaços que caminham juntos, alicerçados, amalgamados como vogais que não queiram largar-se jamais, mas onde a mão de poeta em cada um de nós escolhe inserir um tempo, um breve segundo de respiração suspensa, um hiato que se esgueira para dentro da cômoda vida dos ditongos, abrindo-a e fazendo-a respirar em liberdade. Porque o mais provável é que a perfeição resida mesmo no que é (ou parece) imperfeito.



O soneto de Camões, na íntegra:

Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.

Em dor vai convertido o sofrimento,
em pena convertida a piedade;
a razão tão vencida da vontade
que escravo faz do mal o entendimento.

A língua não alcança o que a alma sente.
E assi, se alguém quiser em algüa hora
saber que cousa é dor não compreendida,

parta-se do seu bem por que experimente
que, antes de se partir, melhor me fora
partir-se do viver para ter vida.

13/08/2012

Ainda a cidade nova...

As férias de julho de dona S. começaram bem. Uma sequência de bingos na paróquia perto da casa da sua amiga D., lá longe, outro bairro, distante do dia a dia. Abre um sorriso assim que me vê, espantada com as ausências maiores que as presenças. Viajo muito, reclama, como é que vou virar sua amiga... Vai bonita, arrumada, atrasada porque precisou fazer a unha. Se vai aproveitar pra namorar? Ora, minha filha, pra que isso? Tou melhor sozinha do que com outro igual meu marido. Gritava, irritava-se com qualquer coisa, queria tudo a seu tempo - seu tempo, e não o tempo do tempo. Muito menos o tempo alheio. Vejo-a andar apressada pela calçada sombreada, enérgica sob a ilusão dos cabelos todos brancos, até virar e desaparecer na esquina.

Queria que eu fosse com ela. Mas eu prefiro ir até o cemitério. Além de não morrer de amor por bingos, prefiro olhar para o tempo que escorre devagar por entre os túmulos, como se água calma que não espere nenhum meandro mais, sequer o desaguar no oceano.

Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria  seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.

Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.

Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.



Mãos abertas


Tenho dois amigos queridos que decidiram abrir cada um as suas mãos para permitir que a vida se cumpra no espaço que formam. A meio de uma crise, encaram-na como oportunidade, como se fossem chineses acabados de desembarcar, e apesar das dores e das lágrimas, das dúvidas e dos tropeços, erguem-se em uníssono e caminham pela praia com leveza. Quase não deixam marcas na areia macia. Devem combinar percursos, só pode ser, porque parecem alinhavar os caminhos que percorrem lado a lado, e é bonito de ver o movimento de ambos, titubeante mas permeado de amor, escapando das ondas pequenas que querem refrescar-lhes os pés, como se voltassem a ser crianças dentro do espaço do seu sentimento. Estamos na praia, já se vê, esse lugar em que a atmosfera é mais clara e fresca, e onde os sentimentos e os sonhos são embalados pelo som das ondas ao longe. Eu me vejo melhor e vejo melhor os outros na praia, talvez por ter nascido quase dentro de uma, talvez porque o som das ondas ressoe na mata e não pare nunca.

Amor, há que explicá-lo. Este que se descobre diante de mim não é o amor que tolera e entende, mas o que se desdobra e respira o ar em volta a plenos pulmões. Amor que se constrói a quatro mãos, amor que se perpetua em outros que lhes servem de âncora e abrigo, amor que se espalha e ecoa nas árvores em volta, e é bom, e simples, e simplesmente é. Não há que dizer muito, e há mais de um tanto a calar, porque momentos assim são delicados e frágeis, qualquer palavra mal colocada assume um tamanho que não lhe corresponde, e desfazer os nós atados é uma tarefa cansativa e inglória. Melhor não os dar, os nós, já basta os que temos à nascença. Não há que inventar-se tristezas que não estavam no cardápio.

De tudo, neles, gosto especialmente da impressão de mãos abertas. Eles nem percebem, mas eu os observo, de dentro da minha própria solitária crise, e ao movimento das suas mãos, em vários momentos. Quando se esbarram num repente, quando se encontram sem terem combinado – e se abrem, em vontade de continência do que quer fazer-se seu. Fazem-me pensar no quanto é preciso abrir as mãos para receber o que a vida dá, o quanto fazem falta mãos que se estendam assim como as deles aqui sobre a mesa, abertas, para que as nossas individuais dádivas possam alcançar o seu porto. Triste, quando as ofertas são feitas e como chuva de verão escorregam para dentro dos bueiros das circunstâncias, mãos fechadas agarradas às próprias certezas e necessidades, todos os fantasmas encolhidos dentro delas, suplicando que não nos soltem, não nos soltem, deixem-nos no escuro onde nosso domínio é maior. Nada se guarda de mãos fechadas, e não tem a perder quem não as abre para ter.

Lavo as minhas mãos com cuidado, antes do jantar, limpando-as dos restos do que supus serem presentes – porque há presentes também que se recebem e não são nossos, e esses precisam deslizar pelo ralo da pia, lenta e decididamente. No fim de tudo há uma superfície de louça branca e limpa, recém lavada e ainda molhada. Por um instante, as minhas mãos estão tão limpas quanto a louça, dispostas a se abrirem virgens outra vez ao virar da esquina. Assim que as enxugo, porém, perdem um tanto da sua limpidez. Desço as escadas com elas à minha frente, para que meus amigos, e os amigos dos meus amigos, e deles seus amigos também, possam encontrar espaço para suas ofertas e conforto nas suas mazelas. E digo a meus amigos, mas sem usar as palavras de que tanto gosto e preciso, que nos demos as mãos, e que contem com as minhas, abertas, incondicionalmente. Para dar e para receber.

04/08/2012

Exercício: as aranhas de Isaura


De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.

É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.

Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.

Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.


03/08/2012

Dias curvos

Um dia curvo. Tal qual o define o dicionário: que não é reto, nem formado por linhas retas; que não é plano; inclinado para diante.

Curvam-se as horas, os tempos - nada de espaços retos e horizontes infinitos. Curva-se tudo o que vive, indisposto com as coisas que se estendem paralelas. Como se inadequadas.

Como as paredes que sobem retas, as grades dos portões que impedem passagens, as esteiras de um aeroporto infinito, avançando solitárias no meio de luzes sem cor da madrugada.

Um dia curvo. De sinuosidades da alma. De entregas sem respostas retas. Do futuro impregnado nos olhos,  às curvas pela montanha acima, desnorteado, em meio à neblina que transforma cada curva em espaço inóspito. Linhas curvas dos antebraços do passado, dobrados diante do que é inevitável no tempo. Linhas curvas das camisas que se dobram para guardá-las nas gavetas.

Por isso inclinar-se para diante: para que o abismo venha ao encontro e as curvas se transformem em retas, ainda que sejam daquelas que caem. Tudo, menos as linhas estagnadas e circunscritas: é disso que se fazem os dias em forma de curva.