13/08/2012

Mãos abertas


Tenho dois amigos queridos que decidiram abrir cada um as suas mãos para permitir que a vida se cumpra no espaço que formam. A meio de uma crise, encaram-na como oportunidade, como se fossem chineses acabados de desembarcar, e apesar das dores e das lágrimas, das dúvidas e dos tropeços, erguem-se em uníssono e caminham pela praia com leveza. Quase não deixam marcas na areia macia. Devem combinar percursos, só pode ser, porque parecem alinhavar os caminhos que percorrem lado a lado, e é bonito de ver o movimento de ambos, titubeante mas permeado de amor, escapando das ondas pequenas que querem refrescar-lhes os pés, como se voltassem a ser crianças dentro do espaço do seu sentimento. Estamos na praia, já se vê, esse lugar em que a atmosfera é mais clara e fresca, e onde os sentimentos e os sonhos são embalados pelo som das ondas ao longe. Eu me vejo melhor e vejo melhor os outros na praia, talvez por ter nascido quase dentro de uma, talvez porque o som das ondas ressoe na mata e não pare nunca.

Amor, há que explicá-lo. Este que se descobre diante de mim não é o amor que tolera e entende, mas o que se desdobra e respira o ar em volta a plenos pulmões. Amor que se constrói a quatro mãos, amor que se perpetua em outros que lhes servem de âncora e abrigo, amor que se espalha e ecoa nas árvores em volta, e é bom, e simples, e simplesmente é. Não há que dizer muito, e há mais de um tanto a calar, porque momentos assim são delicados e frágeis, qualquer palavra mal colocada assume um tamanho que não lhe corresponde, e desfazer os nós atados é uma tarefa cansativa e inglória. Melhor não os dar, os nós, já basta os que temos à nascença. Não há que inventar-se tristezas que não estavam no cardápio.

De tudo, neles, gosto especialmente da impressão de mãos abertas. Eles nem percebem, mas eu os observo, de dentro da minha própria solitária crise, e ao movimento das suas mãos, em vários momentos. Quando se esbarram num repente, quando se encontram sem terem combinado – e se abrem, em vontade de continência do que quer fazer-se seu. Fazem-me pensar no quanto é preciso abrir as mãos para receber o que a vida dá, o quanto fazem falta mãos que se estendam assim como as deles aqui sobre a mesa, abertas, para que as nossas individuais dádivas possam alcançar o seu porto. Triste, quando as ofertas são feitas e como chuva de verão escorregam para dentro dos bueiros das circunstâncias, mãos fechadas agarradas às próprias certezas e necessidades, todos os fantasmas encolhidos dentro delas, suplicando que não nos soltem, não nos soltem, deixem-nos no escuro onde nosso domínio é maior. Nada se guarda de mãos fechadas, e não tem a perder quem não as abre para ter.

Lavo as minhas mãos com cuidado, antes do jantar, limpando-as dos restos do que supus serem presentes – porque há presentes também que se recebem e não são nossos, e esses precisam deslizar pelo ralo da pia, lenta e decididamente. No fim de tudo há uma superfície de louça branca e limpa, recém lavada e ainda molhada. Por um instante, as minhas mãos estão tão limpas quanto a louça, dispostas a se abrirem virgens outra vez ao virar da esquina. Assim que as enxugo, porém, perdem um tanto da sua limpidez. Desço as escadas com elas à minha frente, para que meus amigos, e os amigos dos meus amigos, e deles seus amigos também, possam encontrar espaço para suas ofertas e conforto nas suas mazelas. E digo a meus amigos, mas sem usar as palavras de que tanto gosto e preciso, que nos demos as mãos, e que contem com as minhas, abertas, incondicionalmente. Para dar e para receber.

04/08/2012

Exercício: as aranhas de Isaura


De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.

É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.

Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.

Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.


03/08/2012

Dias curvos

Um dia curvo. Tal qual o define o dicionário: que não é reto, nem formado por linhas retas; que não é plano; inclinado para diante.

Curvam-se as horas, os tempos - nada de espaços retos e horizontes infinitos. Curva-se tudo o que vive, indisposto com as coisas que se estendem paralelas. Como se inadequadas.

Como as paredes que sobem retas, as grades dos portões que impedem passagens, as esteiras de um aeroporto infinito, avançando solitárias no meio de luzes sem cor da madrugada.

Um dia curvo. De sinuosidades da alma. De entregas sem respostas retas. Do futuro impregnado nos olhos,  às curvas pela montanha acima, desnorteado, em meio à neblina que transforma cada curva em espaço inóspito. Linhas curvas dos antebraços do passado, dobrados diante do que é inevitável no tempo. Linhas curvas das camisas que se dobram para guardá-las nas gavetas.

Por isso inclinar-se para diante: para que o abismo venha ao encontro e as curvas se transformem em retas, ainda que sejam daquelas que caem. Tudo, menos as linhas estagnadas e circunscritas: é disso que se fazem os dias em forma de curva.


29/07/2012

A quatro mãos

"Instável, mas com coragem", diz-me o amigo ao longe. Quase posso ver-lhe a alma inteira à escuta, na beira do caminho, recolhida atrás das pedras das escarpas, sempre à espreita, esperando ver se a ponte soçobra debaixo do peso das rodas de cada dia. 

Talvez seja mais fácil ter coragem ancorado em algum lugar, penso. E escrevo-lhe. Ele responde, lá no longe onde está: "o bom da âncora é que o barco pode deslizar um tanto...". Sem perder o foco, digo-lhe eu, o foco de onde está a rede que contém o peixe que alimenta o povo - mas eu queria mesmo dizer era da rede que contém o peixe que alimenta a sua alma. Mas fiquei tímida (inibida, se usasse as palavras que ele gosta de usar), mudei o fim, talvez fosse intimidade demais. Como é que se pode ter certeza de coisas assim? Ando receosa das palavras que escrevo aos outros.

Agora, aqui, ele fica sabendo. Que com ancoragem a coragem da alma se fortalece, nas âncoras em que cada um pode se segurar, cordas grossas e seguras onde se apoiar e descansar o peso quando a própria coragem faltar, manca como são todas as coragens quando o dia se põe. Âncoras em que confiar quando a maré levar o peixe pra longe, certo de lá estar quando ela de volta o trouxer. Âncoras que se agarram ao chão que não se vê, tão turvas são as águas que parece não haver mais lugar onde pisar sem cair. Âncoras que parecem nem ter peso quando descem ao fundo do mar, levando consigo a própria carga, trazendo consigo a vida alheia.

"Mas chega o dia em que se deve tirar a âncora, e retornar com as ondas à praia", diz ele, quase parece que me ouviu escrever nesta tela que não vê. A coragem que emerge, é ela quem fala através dos seus dedos que escrevem. Digo-lhe que não se esqueça de guardar a âncora dentro do barco. Porque sei o quanto a coragem se camufla e decide dormir quando menos se espera - quando menos se precisa. Assim:

Atravessa-se uma ponte, com a disposição certeira e a mente lúcida, a vida toda em forma de brilho, nítida e óbvia. Mas há uma curva, uma curva dentro do peito, tão igual à curva do braço de rio que revive na praia, tão do mesmo tom de verde dos lagos que não se mexem há muito. E a curva move-se, e num movimento de quem recolhe o lanço do trigo que afinal não se semeia, a curva recolhe a coragem daquilo que era tão certo, tão claro, tão firme. E aí a âncora. Aí retorna a âncora. Como um porto seguro. 

Há uma gaivota que veio entretanto sentar-se-lhe em cima - meu avô diria que para que me lembre de que há sempre quem nos cobice a fortuna (ele não gostava desses pássaros que roubam peixe aos pescadores). E o amigo diz "gaivota"; e a palavra primeiro não lhe desce, diz, agarrou-se ao cordame do barco, aos seus mastros, aos remos que usa para se manter à tona. E talvez porque lhe pressinta o tom enganador, a palavra não lhe desce, e a gaivota quase levanta voo. Mas não: meu amigo é um poeta em estado latente, e a gaivota dele vai na frente e a traineira atrás, pescadores de binóculo atrás da ave que sabe em que ondas se escondem os peixes. E assim a gaivota fica onde está, ornamento a preto e branco de uma âncora que permanece firme, ancorada no coração desse amigo que já foi, já dorme o sono dos justos e dos corajosos. Amanhã, que é sempre outro dia, lerá.


Da saudade, em estado bruto

Desloquei a minha vida de continente, várias vezes, e deixei perdidas, por entre idas e vindas, pessoas que não encontro mais. Um desterro perpétuo, uma inadequação absoluta por entre os passos dados.

Estou acometida do mais português dos sentimentos: saudade. Saudade específica, do que foi e já não é, de quem foi e já não está, dos que se foram sem despedida, dos que se despediram sem anteciparem o caminho do reencontro. Flutuam ao meu redor todas as Lailais, as Vanis, as Xinhas, as Anas, os Pedros, os Antónios, os Paulos, os Carlos, os Laranjos, os Césares - seres que a cada dia se tornam mais ficção na memória que lhes guardo. Não lhes encontro o rastro - ou é ténue como uma sombra.  E talvez seja melhor assim, porque serão outros, se porventura os encontro. Enquanto isso, enquanto adio a vontade quase incontida de revê-los, reedito-lhes as presenças, sinto-as lado a lado, com as tantas milhas náuticas exaustas de distância de por meio que me impedem um passo, um movimento, um ir ao encontro.

Entenderá o que digo quem se ausentou do próprio passado, quem se absteve de ficar onde estava e se decapitou para novas e longínquas paragens. É preciso inventar-se a si próprio, nessas mudanças, e a reedição nem sempre equivale ao que se perde, nem ao que se pensou que se era. E por isso a saudade, esse sentir atávico da alma que se desprendeu do seu substrato e que ao mesmo tempo sobrevive naquilo que reedita, como um arqueólogo numa expedição das coisas mortas. Em dias como os de hoje, de céu luminoso que não encontra similar dentro do peito, sobrevivem as células que se lembram. E todas elas doem, engolem-se a si mesmas procurando incessantes o que jamais conseguirão encontrar, diluindo ao mesmo tempo as saudades imediatas do que ainda é,  mesmo incompleto. E o amanhã, que não nos pertence e obedece à lei do tempo, de que cor tingirá o oceano quando amanhecer?

Foto do Carlos Marzagão da casa da rua Monte Olivete, em Lisboa

28/07/2012

"Do que em si não se conhece"


“Cada dia de filho que eu tenho descubro dois pais que não tinha.” 

Nem lhe pergunto o que quer dizer com isso, mas um dos filhos além-oceano escreve-me assim, um dia desses. E reconheço o quanto é verdade, porque eu mesma, ao espelho, descubro-me várias que não sabia. Às vezes, reedições. De vazios que imaginava puro preenchimento, espaços que pensei haver deixado atrás de mim, quem sabe resolvidos. Mas não: eles voltam, fantasmas feito plumas que insistem em acordar-me a meio da madrugada. Às vezes assumem nomes, transformam-se em pessoas de ficção, falam e falam e irritam-se porque não lhes entendo as intenções. E aos poucos, conforme me vejo descoberta nessa que pensava não ter mais em mim (essa que de repente meu filho intui existir), eles acalmam-se e deixam que durma. Quando já é dia claro, e os vivos e de carne e osso arrancam-me da cama porque é da sua natureza a fome e a vontade de me ver de pé. O sono, esse alívio, atrela-se com força aos dias em que o universo conspira que assim seja. 

É assim que uma destas noite, em meio à chuva que cai no rio logo ali embaixo, quando me decido a atravessar a ponte estreita que conduz à praia, procurando o sono que me foge, reencontro-me no pavor noturno de ser engolida pela profundeza marítima, no abandono insuportável de quem se esqueceu de me estender a mão. Coisa antiga, de menina ainda sem memória. Eu sequer conhecia, penso, e quase não sei para onde correr o pensamento, sou uma só inspiração aflita, buscando escapar dessa mim mesma desconhecida, em voltas desgovernadas em torno de um qualquer centro.

Aplaco o pânico como sei: dou-lhe palavra. Nome. Escrevo-lhe a história, em meio à chuva e à escuridão densa, à solidão absoluta de um mundo despovoado. E me desdobro em outra, que carrega as várias outras de mim, todas já acordadas e inquietas, para dentro de casa, e lhes dá banho quente para que parem de tremer diante da própria sombra. É assim que nasce, nestas noites de julho, a nova pessoa que andava escondida, que não se mostrava, só difusos sinais noturnos, sopros de partes desagregadas desintegrando-se em ar na noite. Metade do tempo que o sono não atravessa, ocupo-o com palavras, porque de repente ela quer dizer-me tanto, e diz-me, e eu preciso registrar para entender e voltar a dormir.

Quando acordo, dia seguinte, nada disso foi: só um sonho a meio de uma noite mal dormida. As anotações, ainda assim, estão a um lado da cama; ao outro, um espaço imenso vazio, ainda quente e moldado na forma do corpo longe e ausente.

Foto: Tai Ribeiro

25/07/2012

Exercício: uma explicação

Minha cara Júlia

Os móveis do meu consultório parecem ressentir-se da sua falta; quase me perguntam para onde você foi, que não volta.

Tenho recebido notícias de quem agora a acompanha, e gosto do que ouço. Talvez seja isso o que me faz sentir mais a sua falta: o sentimento de incapacidade de não tê-la ajudado quando pude. E perceber o quanto outros o podem fazer, e fazem. Agora, parece, nossos caminhos se bifurcaram e avançam cada qual em retângulos de traçados divergentes.

Sim, leio todas as cartas que me envia. Se não as respondo, é por um impulso imediato de não interferir no seu processo, de não saber de que forma guardaria as minhas palavras dentro de si, e do que elas poderiam fazer-lhe, se se aninhassem em algum lugar sem serem convidadas. Por isso, o silêncio. Como vê, nada mais distante do que a falta de interesse.

Pus a fotografia que me enviou diante de mim, à minha mesa. Gosto de olhar a serenidade de seu perfil e o mar ao longe. Quase ouço seu sussurrar e sinto a brisa marítima agitar meus cabelos como imagino aconteça com o seus, conforme os vejo agora, capturados por essa imagem estática a duas cores. Ao lado de seu retrato, nada além de uma cornucópia, de onde escorrem os meus dias, um a um, atravessando calabouços de brilho de pérola. Como se a sua imagem pertencesse também a esse mundo que escorre, serena e absorta dentro de si mesma. Tão diferente dos dias em que batia à minha porta com o desespero da insatisfação angustiada estampado em seus olhos difíceis.

Assim são os meus dias, quando penso em você: uma espécie de alegria tênue pelo encontro que vejo realizado nesse seu olhar tão distante a preto e branco; uma espécie de alegria entristecida, pela distância que se interpôs entre nós. Distância benfazeja, bem vejo. Necessária. Mas distância, assim mesmo.

Com amor e saudade,

P.

07/07/2012

A cidade nova XIV - Do telhado

Dizem-me que tome cuidado. Rio por dentro. Gosto dessa palavra, cuidado, parente tão próxima do verbo cuidar. É daquelas que não se sabe muito bem de onde vêm. Pode ser que seja de cogitare - quando pensamos, refletimos, consideramos. E pode ser que venha de agitare - quando conduzimos, dirigimos, instamos. Prefiro achar que seja uma mistura das duas, como se todo pensar levasse a uma direção precisa.  Cuidar  e tomar cuidado como formas de pensamento em estado de ação.

Em dias como os de hoje, que escorrem leves por cima das pedras que forram a vida, é fácil cuidar de quem está em volta. Pensa-se um pouco, a ação vem fácil. As horas passam como brisas de fim de tarde à beira do mar, diluem-se no que está em volta, as tarefas cumpridas sem sacrifício e, súbito, o dia acaba.

A meio da manhã, um estranhamento por dentro. Faço o que manda um dos mestres, Rubem Braga: subi aos céus. Quando tudo parece parado e os homens não se entendem, diz ele naquela crônica deliciosa que intitulou de "Torre Eiffel", o melhor é subir aos céus. Lá fui. Não porque os homens não se entendam, mas justamente porque parece que tudo pára. E eu subo aos céus antes que os homens se desentendam.

Meu céu é o telhado. Acesso fácil, graças à população de andaimes e escadas que nos rodeia por aqui. Logo me acompanham -  em pouco tempo somos 5 em cima da laje recém nascida. Dou mais uns passos, e passo ao telhado desta casa antiga, as telhas quebradas atestando os maus tratos dos seus últimos anos, os líquens desenhando os contornos do passar do tempo.

Nada como mudar de perspectiva. Não fosse a crônica do Rubem, e as aulas que o terão no centro na semana que vem, talvez não tivesse aliviado o coração desse dia tão leve que quase pesa. Talvez esquecesse que, de cima, afinal, tudo se parece bem mais com aquilo que o coração deseja. E de repente me acenam, para que tome cuidado. O sol nas minhas costas diz-me que é exatamente isso que faço: cuido para que a vida possa continuar leve assim, pelo menos de vez em quando. Por isso penso, e  me movimento. Com todo o cuidado que sei e posso.

03/07/2012

Do Carmo


Encontro a Maria do Carmo agorinha de tarde, ao virar uma esquina. Reconheço-a pelo andar oscilante, o mesmo que usava ao perambular por casa sem saber exatamente por onde começar o que. Seus métodos de limpeza primavam pelo radical; tudo a água limpava, ainda que fossem coisas nascidas para viver longe dela, como livros, essas entidades que ela insistia em guardar nas prateleiras com as lombadas viradas pra dentro, “para que se vejam as folhas todas”, dizia a sua lógica. Não foi um entendimento fácil o nosso, mas durou muitos anos. E deixou marcas em ambas.

Maria do Carmo sempre me pareceu bonita. Seus olhos, um deles abalroado pelo punho do marido num dia de desatino, eram bonitos justamente por causa dessa imperfeição. Conheci-a num ponto de ônibus, já se vão mais de vinte anos, sentada com os dois filhos e uma mala perdida entre eles. Jurava que aquele tinha sido o último soco. O olho esquerdo sobressaía-lhe da pele negra, um roxo azulado que tremia cada vez que falava. Senti-a tão próxima da minha humanidade que a levei para casa, a ela e aos filhos. Trabalhou comigo anos a fio, viu filhos meus nascerem, sempre com aquele olho desconjuntado arregalado diante da inconformidade de eu não querer visitar hospital. Falava pouco, quase nada; qualquer conversa que eu tentasse puxar, recebia uma gargalhada histérica em resposta, as paredes tremiam. Até que eu desisti e decidi comunicar-me só com os olhos e o sorriso. Deu certo.

Maria do Carmo parece igual, como se todos os anos se evaporassem no espaço pequeno que ocupamos na rua. Abraça-me com a força de sempre, seus braços longos em torno da minha alma à flor da pele. Estamos tão felizes de nos vermos que nossos olhos todos enchem-se de lágrimas, uma água rasa que não rola nem cai, tantas lembranças de tudo o que nos juntou em duas realidades tão diferentes. Quero contar-lhe, mas contar-lhe o que?

Esta cidade nova tão velha faz-me encontrar fantasmas todos os dias, tempos extintos, pessoas passado. Postam-se de repente à minha frente, lembram-se do meu nome, como se tivesse sido ontem e não outra vida. A umas, não consigo localizar-lhes nem tempo nem espaço. Mas a outras, como a Do Carmo, localizo-as dentro da alma, retrocedo anos, provo-lhes o travo de simpatia e calor que as fizeram criar raízes em mim.

Nunca mais fugi na vida, diz-me ela. Aprendi a fincar os pés no chão, mesmo que tenha de baixar a cabeça pra isso. O brilho de seu olho bom é o mesmo, e o outro é triste como sempre. Leva a mão ao rosto, sorri um sorriso desdentado e diz que é bom que continue assim, senão arriscava esquecer. O mesmo desamparo a acompanha, a mesma tenacidade desajustada que a faz atravessar a rua descuidada. Não sei como ainda não morreu atropelada. As crianças estão bem, cresceram, cada qual a sua vida. Eu estou a mesma, garante. Mas não é bem a verdade. Agora que a vejo de costas, descendo a calçada do outro lado da rua, há curvas a mais em seus passos, cicatrizes que marcam as suas costas encobertas, novos fardos densos que carrega sem que os outros precisem perceber. Quero correr ao seu encontro outra vez, mas é o passado que me acena lá de baixo, quando ela se vira tão lenta para me dizer adeus. E, de repente, acho que não a verei outra vez.


Imagem: "Canavial", Sérgio Torretta